O show deve continuar?

Por Amanda Diniz. “Criamos uma indústria da moda onde as pessoas morrem e o show continua”, disse Marina Colerato, editora do site modefica. Após a morte do modelo Tales Cotta no dia 27 de abril, que passou mal durante o desfile da marca Ocksa na São Paulo Fashion Week (SPFW), diversos questionamentos sobre posturas no mundo da moda contemporânea começaram a surgir.

Muito se cogitou sobre o ocorrido, mas não se sabe, ainda, o que causou a morte de Tales, um jovem de apenas 25 anos. Entretanto, a causa de seu falecimento não é o aspecto central do que ocorreu naquele desfile.

Queremos chamar atenção para o fato de que alguém desmaiou e caiu no meio de uma passarela e o show não só continuou como foi recomeçado, como se aquele acontecimento fosse muito menor e menos importante do que o desfile. Os vídeos mostram que o rapaz não foi prontamente atendido, demorou alguns minutos até que o corpo de bombeiros o socorresse. Ele foi levado para o hospital e uma hora e meia após o acontecimento, foi noticiada a sua morte.

Essa situação pode suscitar importantes reflexões. O quanto vale a vida dentro da indústria da moda? Tudo deve ser totalmente perfeito custe o que custar? Até quando continuarão a passar por cima de tudo e todos que estiverem em seus caminhos para alcançar a imagem ideal? Essa é a moda, aparentemente imutável, que deve ser contestada por mudanças; a moda que construiu uma imagem e uma aura que em hipótese alguma pode ser abalada, mesmo quando o que está em jogo é a vida de uma pessoa.

A não interrupção do desfile exemplifica a moda como construção imagética e comportamental que perdurou e ainda perdura em nossa sociedade. Durante dois séculos a moda construiu entendimentos sobre padrões de vida, modos de agir e formas de se apresentar para que possamos fazer parte dela. Porém, já passou da hora de que esse pré-conceito da moda seja desconstruído.

Tudo aquilo que vemos nas revistas, desfiles, editoriais e semanas de moda é apenas a “superfície” da indústria da moda. Por trás de tudo isso estão as pessoas que trabalham no backstage, que produzem as roupas, que criam as coleções e que, como fazia Tales, desfilam com as peças que todos querem ver. Entretanto, temos acesso somente à dimensão superficial e glamorosa da moda, e, dessa forma, somos condicionados a entender que o que estiver além disso não importa. E assim, apenas quando acontecem acidentes, como a morte de Tales, que então paramos para refletir se estamos ou não dando valor para aquilo que realmente é relevante.

Até quando precisaremos que vidas sejam tiradas, como a de Tales e de mais de 700 trabalhadores no desabamento do Rana Plaza, para entendermos que a moda não é só o glamour?

De fato a moda está entrando em uma nova era. Vivemos um momento em que temas como a moda sustentável, política, inclusiva e consciente estão em alta na sociedade. Campanhas como o Fashion Revolution mobilizam milhares de pessoas todos os anos com o objetivo de incentivarem as marcas a fazerem uma moda mais transparente. Ou seja, mostrarem ao público quem produz suas roupas e quais são as condições de trabalho dessas pessoas. Todos esses são assuntos urgentes e inovadores que já começaram a ser pauta no mundo da moda contemporânea, porém, a forma superficial e distante como são pensados e repassados à população, infelizmente, continuam as mesmas.

Enquanto a indústria da moda continuar a usar das mesmas estratégias que sempre utilizou para impulsionar suas criações e inovações na sociedade, nada mudará. Se não deixarem de reproduzir os modelos vigentes de desfiles e semanas de moda, as coleções, as campanhas, as fast fashions, as fotografias de modelos seguindo sempre um mesmo padrão e estereótipo, o público nunca irá se conscientizar a respeito das atuais prioridades do mundo da moda. É preciso que essa indústria comece a criar um novo olhar sobre as novas temáticas para então deixarem de reproduzir aquilo que já conhecemos.

Contudo, se a moda está realmente entrando em uma nova fase, é imprescindível a criação de uma nova forma de pensá-la e fazê-la que ultrapasse práticas antigas, ainda presentes. É necessário pensar a moda para além do dinheiro e do lucro, levando em consideração inclusive o bem estar das pessoas que estão trabalhando em fábricas, muitas vezes em condições insalubres, para confeccionar as roupas que a grande maioria da população compra sem ao menos pensar da onde vieram.

Desse modo, a partir da incorporação desses novos conceitos pela indústria da moda, será possível, a longo prazo, transformar o pensamento conservador e ultrapassado da sociedade a respeito do fazer e pensar moda. É essencial não só elevar o nível de sua discussão como também mostrar ao público que as pessoas importam mais do que a imagem e que o show não deve continuar.

 

 

Amanda Diniz é monitora do Centro de Crítica da Mídia e graduanda em Jornalismo pela PUC Minas.

 

Referências:

ANJOS, Nathalia. Para Mudar a Moda Precisamos Transcender o Sistema Predominante. São Paulo: 2018. Disponível em: <https://www.modefica.com.br/novos-mind-sets-moda/#.XMct2Dv_qM8>. Acesso em: 02 maio 2019.

Redação Marie Claire. Morte de modelo detona crise na São Paulo Fashion Week e fashionistas se posicionam sobre indústria da moda. São Paulo: 2019. Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Moda/noticia/2019/04/morte-de-modelo-detona-crise-na-sao-paulo-fashion-week-e-fashionistas-se-posicionam-sobre-industria-da-moda.html>. Acesso em: 02 maio 2019.

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