Por: Letícia S. Góis
Lucrécia Martel é uma cineasta do cinema moderno e contemporâneo que possui características bem marcantes. Após a experiência com os três primeiros filmes da realizadora, as obras O pântano (2001), A menina santa (2004) e A mulher sem cabeça (2008), uma questão se destaca sobre todas. Lucrécia se debruça sobre a formatação familiar da classe média e retrata de maneira complexa as mazelas relacionais dessa classe na Argentina. O estilo da diretora costuma revelar outras facetas em seus filmes, ela trata também da questão do clima, muito chuvoso e quente, utiliza planos e enquadramentos fragmentados, o medo, o silêncio…, porém o que sobressai em suas obras, em especial na trilogia, é aquilo que motiva a autora: a questão biográfica. O cenário de suas tramas é sua terra Natal, suas personagens principais são mulheres e os argumentos são sobre a vida da classe média, na qual a realizadora cresceu. Ela revela várias questões relacionais que apenas alguém de dentro dessa lógica poderia saber. Seu olhar, além de ser o olhar feminino, é um olhar clínico, atento e familiar. Um olhar que se reconhece e se coloca à disposição de retratar a realidade de sua gente, de sua época.
A cineasta se dedica a desnudar as facetas veladas da desigualdade social e o estado de letargia constante da classe média, fazendo isso de maneira própria, como uma característica autoral. Seus filmes se tornam uma trilogia não pela conexão e continuidade de suas histórias, mas pelo desejo e relação da autora com a temática. Os filmes se ligam e se completam em um único ponto específico, ponto esse que é a própria Lucrécia Martel. Ela dá a dica, revela de maneira sutil o que quer que o espectador veja ao assistir seus três filmes. Ela contextualiza: O pântano é o ambiente, o lugar físico, o estado letárgico da classe, um filme que coloca seus personagens em estado de naufrágio em uma água barrenta, com medo e feridas que marcam a superfície, a pele. A menina santa é a revelação escondida, o desnudo do desejo, daquilo que almejam os componentes da família, aquilo que a moral nega que deseja, o filme é o véu sobre o sentir carnal da família cristã. E A mulher sem cabeça é a justificativa das ações dessa classe, a mulher que não tem culpa, que não desejava o que aconteceu, a classe que se apoia na dúvida, que é vítima, doente, louca, que não se
responsabiliza, que não levanta e age por si só, que permanece letárgica. Esse é o elo, a relação familiar para Martel e o espectador.
A questão familiar percorre as narrativas de Lucrécia em suas estruturas, vemos por diversas vezes os elementos narrativos nos dizerem muito mais que os próprios personagens, há uma ausência de falas. Tal ausência nos permite aflorar os sentidos e observar que cada gesto, movimento de câmera e cenário nos dizem sempre mais. A intenção com a classe média nos filmes de Martel, deseja revelar a superficialidade desse contexto social. Em entrevista, ela nos diz que o grande problema da classe média é que ela nunca se preocupa em olhar para o presente, está sempre buscando algo para o futuro. Tal comentário me conduz a encontrar diversas nuances nas realizações que me proponho comentar. Em todos esses três filmes citados a superficialidade se dá de uma maneira diferente, porém se mantêm presente. Vemos as personagens se desvencilhando, sempre evitando assuntos − claro, já não falam mesmo! − ou está escondendo algo. Há sempre um segredo, há sempre a necessidade de manter a aparência. A necessidade de revelar essa distância que existe entre a classe média e as demais classes, se transfere para a distância ensaiada entre os
conflitos dos personagens e o espectador. Quando digo “distância ensaiada” quero dizer um afastamento que pretende enganar, se disfarçar, pois é na realidade uma distância que nos mostra não apenas sua própria existência, mas também sua origem. O trabalho nos revela as dinâmicas, a intenção de esconder e o porquê dessa distância. Nós, espectadores de Lucrécia Martel, estamos na verdade bem próximos, estamos dentro de sua casa, estamos testemunhando, ao assistir seus filmes, a confissão das problemáticas sistêmicas da classe social retratada.
A classe média é retratada como essa classe que não se relaciona com as classes mais baixas, no entanto, está cotidianamente em contato direto com elas. Não vemos as personagens de classe mediana se relacionando com pessoas ricas, é sempre a dinâmica dessa primeira se relacionando consigo mesma ou com seus subalternos.
Uma dinâmica explorada a partir desse complexo que não aceita sua realidade, que busca ser mais, que se julga diferente, melhor, daí o comentário de Martel. A classe média não olha para o presente, pois não repara suas condições reais, não vê suas feridas, não interroga seus erros.
Existem alguns elementos imagéticos nos filmes da realizadora que aparecem com frequência e funcionam como imãs de nossa atenção e também como a materialização daquelas mazelas que falamos antes. Na metáfora de Martel, o ambiente e ambientação que nos dizem mais. A superficialidade é a questão que mais aparece nas tramas, tudo está sempre nas entrelinhas, nada é muito verbalizado. Vemos que a diretora tem uma certa fixação por piscinas em seus filmes, da mesma maneira que os elementos da natureza se esbarram com as tramas das personagens. A água, parada, depositada em um quadrado de cimento, cavado artificialmente no chão, nos mostra a ausência da fluidez. Seus personagens estão sempre dentro dessa pausa, no interior da imobilidade. As piscinas dão a dica da morbidez da classe média, aquele estado letárgico citado antes. Em um dos filmes, “O pântano”, há a presença de uma piscina suja e várias pessoas ao redor tomando sol. Em um outro, “A mulher sem cabeça”, as personagens femininas falam sempre sobre não molhar o cabelo na piscina. Essa água parada, impedida de ter fluidez e vazão, é uma água que representa um lugar inexplorado. Representa a falta de profundidade, a indisposição de limpar tal água, bem como a inutilidade dessa piscina que por estar tão suja é óbvio que não se pretende entrar. Também não vão mergulhar nessas águas, submergir suas cabeças para ver o que tem debaixo, vão sempre permanecer na superfície, olhando de fora, esperando um subalterno limpá-las.
Outro elemento que ajuda a trabalhar a construção da vida de aparências dessa classe, é o medo e as formas de ilustração dele. Há sempre uma ameaça, um barulho desconhecido que é ao mesmo tempo reconhecível, um movimento de câmera lento que nos revela gradativamente, marcando o receio que a câmera tem de ver o que há no próximo plano. A ameaça é presente não só dentro do argumento da história, mas no fio condutor das realizações de Martel. Há uma ameaça em desnudar os costumes e caráter da classe média, um perigo eminente como se a realidade do filme temesse a autora, ou como se ela mesma tivesse a intenção de assustá-los. A complexidade de Lucrécia Martel surpreende. Ela se identifica como uma cineasta que não liga para o mercado. A crítica a descreve como a cineasta que não é esquecida, pois está sempre ativando o exercício da memória. Lucrécia está sempre buscando remexer a realidade, iluminar o contexto de sua origem e revelar como ela mesmo diz os “tumores” que são as personagens da vida real, mas que ela pega emprestado para suas histórias. Uma cineasta que se move pela verdade, pelo realismo, que pretende conquistar o apelo de uma massa espectadora, quer mesmo é deixar pulgas atrás da orelha. Quer que o espectador faça sua parte também, que entre na água suja, que deixe para trás a superfície, que desnude aquela realidade que ela
vestiu de cinema.