Liberdade para quem? Investigação da BBC revela que marcas de perfumes de luxo estão envolvidas com trabalho infantil

Por: Larissa Gino 

Você provavelmente já viu uma linda propaganda de algum perfume de luxo que exaltava a beleza da(o) modelo que participava daquela publicidade. Mais ainda, provavelmente ela te passou uma ideia de que, ao usar aquele produto, você poderia se sentir leve, sensual e, muitas vezes, livre. As empresas comumente investem em passar a mensagem de que, adquirindo aquele perfume, o público teria ainda mais força e liberdade para conquistar seus desejos idealizados. 

Nesse imaginário, na cadeia de produção desse produto, existem milhares de pessoas em péssimas condições de trabalho, em sua maioria crianças. Elas claramente não sentem o cheiro da liberdade, como apresentam as propagandas dos produtos que elas infelizmente contribuem na fabricação. É este o assunto tratado no documentário da BBC News “Marcas de perfumes de luxo estão envolvidas com trabalho infantil, revela investigação da BBC”, que apurou o processo do comércio de jasmim do Egito, revelando a triste realidade de quem trabalha na base da cadeia de fabricação dessas fragrâncias. 

A investigação é produzida por mais de um profissional, porém quem participa do documentário visitando a produção de jasmim na região de Al Gharbia (localizada a 120 km do Cairo), no Egito, é a ativista e influenciadora de beleza Mirna El-Helbawi, que resolveu pesquisar como era a cadeia de produção de alguns de seus perfumes favoritos. Todas as características da produção do vídeo nos fazem sentir impotentes como espectadores, até mesmo culpados, pontos extremamente positivos da obra, uma vez que constantemente consumimos produtos advindos de uma mão de obra como aquela representada.

Quando o sol se põe, a indústria de perfumes esconde a realidade de famílias como a de Heba, matriarca da família em destaque no documentário. Ela e seus filhos se levantam por volta das 3 horas da manhã e saem de madrugada para trabalhar no campo de jasmim, que deve ser colhido nesse horário, pois murcha com o calor e a luz do sol. Maryam (15 anos), Basmalla (10 anos), Rawda (8 anos) e Anas (5 anos) acompanham sua mãe nessa jornada de trabalho que os coloca em diversas situações de vulnerabilidade. Eles desenvolvem alergias do jasmim, são ameaçados a se machucar no trabalho, têm poucas horas de sono e perdem diversos direitos que deveriam ser a eles assegurados.

O documentário explica didaticamente ao espectador o processo do comércio de Jasmim do Egito. Quando o sol nasce, as famílias que trabalham nos campos levam as flores para algum dos pontos de coleta. Nestes locais, os jasmins são pesados e levados às fábricas, também no Egito, que extraem o óleo do jasmim, que em seguida é vendido para casas de fragrância em todo o mundo. 

Mesmo com o trabalho árduo de Heba e seus filhos, seus esforços não são recompensados financeiramente. Todos os jasmins colhidos por eles (no dia em que a BBC documentou a rotina da família), deram 650 gramas quando pesados. Obviamente, esta é uma quantidade muito grande, visto que as flores são extremamente leves e, para atingir este peso, milhares de jasmins foram colhidos. Apesar disso, o valor pago aos colhedores é revoltante, uma vez que 1kg de jasmim vale 45 libras egípcias, ou 1,40 dólares. 

A influenciadora e ativista Mirna El-Helbawi conversa com algumas pessoas em sua investigação, além da família que ela acompanha em todo o processo. O documentário então apresenta um homem que diz: “quatro pessoas trabalhando para ganhar 30 a 35 libras egípcias (1 dólar) por dia. O que você consegue comprar com 30 libras egípcias quando uma única melancia custa de 50 a 60 libras egípcias (1,50 a 2 dólares)?” Com essa baixíssima remuneração, Heba afirma que tem dificuldade de alimentar seus filhos, e claramente não consegue comprar alguns alimentos que eles desejam, como peixe e frango.

É muito interessante notar como Mirna vai se emocionando conforme ela assistia a realidade desses colhedores. Ela utiliza, inclusive, uma câmera escondida em um campo de jasmim no qual ela visitou, perguntando às várias crianças que encontrou, suas idades e o motivo de estarem ali. A maioria delas tinham entre 12 e 14 anos e responderam o que já era esperado: que trabalhavam naquele local para ajudar seus pais. 

Christophe Laudamiel, perfumista com experiência em marcas de perfume de luxo, mas que atualmente trabalha de maneira independente, revela com propriedade na investigação a realidade das empresas nas quais ele já atuou. De acordo com ele, existem os “mestres” da indústria de perfumes, ou seja, o topo da cadeia dentro das marcas. Para eles, “interessa (…) obter o óleo mais barato possível para colocar no frasco e vender o mais caro possível no mercado”, afirma Christophe. 

Como consumidores, podemos escolher diversas marcas de perfumes. Cada marca existente não é independente, com sua própria indústria e funcionários. Elas pertencem a conglomerados de marcas, uma camada oculta que engloba os “mestres da indústria”. A investigação da BBC em estudo revela o uso do jasmim egípcio em alguns dos perfumes de dois desses mestres, a L’Oréal e a Estée Lauder, especificamente suas marcas Lancôme e Aerin Beauty. 

O documentário apresenta um esquema, feito por especialistas do setor de perfumes, que divide detalhadamente a estimativa do valor de cada etapa da produção do frasco de um perfume, vendido por 100 dólares (a imagem anexada abaixo apresenta esses dados). Apesar de ser uma indústria em crescimento e que está constantemente “em alta”, os produtores de jasmim do Egito passam longe desses lucros, o que é muito comum na distribuição de renda nas grandes indústrias no sistema capitalista. 

Além de não terem acesso a uma renda digna e à garantia dos seus direitos, principalmente as crianças, as famílias que colhem jasmim passam por outras dificuldades, como por exemplo a de Heba. Ela leva sua filha, Basmalla, ao hospital durante o período da investigação da BBC e a médica, na ocasião, descobre que a criança tinha uma alergia ocular do jasmim. A menina, com apenas 10 anos, já havia desenvolvido inflamações que, se ela continuasse trabalhando sem tratar a alergia, poderia ter sua visão prejudicada.

Todas as camadas de produção da cadeia de perfumes dessas empresas assinaram uma carta de compromisso da Organização das Nações Unidas, a qual todas elas assumiam o compromisso de promoverem práticas de trabalho seguras e eliminarem o trabalho infantil. Mas, os responsáveis pelo documentário levaram os relatos gravados ao professor relator especial da ONU sobre formas contemporâneas de escravidão, Tomoya Obokata. Depois de analisar os textos de compromissos com o combate ao trabalho escravo e infantil, escritos pelas grandes empresas de perfumarias, ele afirma: “(…) eles não estão fazendo as coisas que prometeram fazer. Não há consideração em relação à segurança. Eles não são capazes de receber educação, e seu bem-estar físico e mental é afetado com o resultado disso.”

Tomoya Obokata também diz algo que é fato: os mais velhos não têm outra opção a não ser colocar seus filhos para trabalhar junto a eles. Ou seja, a renda obtida pelo jasmim não é suficiente sequer na realidade na qual quatro pessoas de uma mesma família trabalham, quem dirá se as crianças não participassem da colheita junto aos pais. Para mim, esse trecho do vídeo explicita, de maneira ainda mais honesta e clara, que ninguém deve julgar os responsáveis das crianças por precisarem do trabalho dos filhos, uma vez que todo o sistema é o culpado pela baixa remuneração fornecida à mão de obra. 

A última cena gravada com a participação de Mirna El-Helbawi é a apresentação de um perfume que contém o jasmim que Heba e seus filhos colhem. Mirna espirra um pouco da fragrância na mão de Heba e das crianças e às pede para que todos dessem sua opinião sobre qual seria o valor cobrado pelo frasco daquele perfume. Após descobrir que ele custava 300 dólares, a matriarca da família, surpresa e indignada, diz que não é justo que ela e seus filhos recebam tão pouco para, no final, o perfume com o ingrediente que eles colheram, ser vendido em um valor tão exorbitante. “Não me importo que as pessoas usem perfume, mas quero que as pessoas que usam este perfume, vejam a dor das crianças nele e se manifestem, para que os donos das fábricas e seus clientes possam ver a dor das crianças. Não é certo que explorem as crianças pelo preço do perfume.”

Ao final do vídeo, a BBC News coloca os relatos das empresas L’Oreal e Estée Lauder a respeito do que foi descoberto sobre a cadeia de produção de seus produtos, se comprometendo novamente com a transparência da cadeia de produção, com a investigação de como acontece o trabalho advindo dos seus fornecedores e repudiando o trabalho escravo e infantil. Relatos nos quais eu pouco acreditei, pois considero que seja difícil que a mudança de comportamento ocorra, por parte das empresas, de maneira voluntária e efetiva. Não apenas as empresas deveriam monitorar a condição de trabalho da mão de obra em todos os setores e em todo o mundo, mas também os governos e representantes, que precisam proteger e estabelecer leis que assegurem os direitos do povo. 

Concluo dizendo que, através de investigações como essa, percebemos a importância do jornalismo para que haja uma amplificação na visibilidade dos fatos sobre as mais diversas injustiças que ocorrem em todo o mundo e, quem sabe, algum expectador desse tipo de conteúdo contribua para que haja uma possível mudança na realidade de famílias como aquela apresentada no documentário. 

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