Leonardo Péricles: Os muros são altos, mas a rebeldia é barulhenta

“Eu quero falar da nossa história para falar de revolução […] Vamos falar do Brasil, Brasil tem experiência de revoluções vitoriosas. Primeiro vamos falar de Palmares, Palmares no seu auge chegou a ter 20 mil pessoas no século XVII, na mesma época de Palmares o estado do Rio de Janeiro inteiro tinha 8 mil pessoas, isso não é qualquer coisa. Ele sob cerco do império, sob incursão permanente armada, com um exército muito superior ao dele, eles existiram por 100 anos […] Nós precisamos estudar essa experiência porque nosso povo fez isso aí. Zumbi e Dandara são representações do povo rebelde, que ousou trilhar outro caminho que não era aquele do nosso país dependente e exportador de matéria prima.”

Eram sete e meia de uma noite quente e abafada em Belo Horizonte. Imediatamente após uma longa reunião, chegamos, mesmo que às pressas, atrasadas no auditório do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas, mas conseguimos assistir aos momentos finais, em duas cadeiras vazias na primeira fila, a fala de um ativista por justiça. Esse que com a camisa do partido e um microfone em mãos, exprimia toda a sua revolta em forma de palestra. Seu instrumento eram as palavras que, mesmo com a garganta seca, sensibilizavam os universitários que o ouviam. Alguns fios grisalhos em sua barba e no seu cabelo black disfarçavam sutilmente o sopro juvenil, embaraçado na vontade de mudar o mundo.

Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio e o desejo de libertação.
Solano Trindade, Cantares ao meu povo, 1961

Trata-se de Leonardo Pericles Vieira Roque, político e ativista, filho de Lourdes Rosária e de Francisco de Assis, casado com Poliana Souza, pai da Luana e do Pedro. Nascido em 26 de agosto de 1981, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Conta que mergulhou ainda jovem no universo da política e da busca por justiça social, inspirado pelos atos grevistas de “Seu Francisco”, filiado ao Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro), e cativado, de forma disfarçada ainda na infância, por palavras e traços do renomado cartunista mineiro, Nilson Azevedo, cujas charges ilustravam os boletins e jornais do sindicato, que ecoavam a realidade do Brasil na era das privatizações e dos assédios aos direitos dos trabalhadores durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

“Meu pai levava os boletins pra casa e eu fiquei lembrando desse negócio, eu falei ‘caramba, eu fiquei minha infância toda lendo o boletim.’ […] rapaz, é claro que isso me influenciou, ficou aqui guardado em algum lugar e fora isso meu pai ia para a greve. Eu me lembro de uma cena em 1987, 1988, uma gigante greve que teve na cidade industrial, […] e aí minha mãe assistindo o jornal de meio dia, ela liga a televisão, e aí o jornal entrou ao vivo mostrando a greve, e aparece meu pai com a cabeça pra fora do ônibus assim ‘é isso greve, é greve’ aí minha mãe olhou e falou ‘meu filho seu pai ali, meu Deus’ e eu não esqueço essa cena.”

42 ANOS CONTRARIANDO A ESTATÍSTICA

Leonardo cresceu em Contagem, precisamente em Ressaca. Foi nesse lugar onde teve seu primeiro contato com uma realidade repleta de desafios enfrentados diariamente por seus moradores. Em reflexão sobre as dificuldades presenciadas ao seu redor no ambiente em que cresceu, Péricles reforça sua visão sobre a luta dos jovens pretos e moradores de comunidade de ir contra a falta de perspectivas, referências e oportunidades, além do esforço de não se tornar um dado da ausência organizada do Estado.

“Haja vista a quantidade de pessoas que conseguem acessar um curso superior, a quantidade de pessoas que conseguem um emprego digno, que conseguem estudar, inclusive, até fazer um curso técnico, sabe?”

A presença do Estado nas comunidades é marcada pela ação policial, muito mais do que qualquer outro órgão. A falta de perspectiva é capaz de embrutecer a população e, pensando sobre esse cenário, Leonardo se recorda de uma conversa marcante e sentimental que teve com seu irmão, na qual eles pensaram em amigos que morreram em decorrência dessas adversidades e, com um teor emocionado, os irmãos conseguiram listar, em média, 12 amigos.

O abandono parental faz parte da realidade de muitos jovens, a dor e confusão de viver sem um pai presente é comum na periferia, assim como o resultado desse cenário na vida de quem sente essa negligência na pele. Contrariando as estatísticas, o político teve seu pai em sua vida durante 16 anos repletos de apoio, motivação para os estudos e amparo em momentos de sofrimento causados pelo racismo, vivido em inúmeros momentos. O Sr. Francisco de Assis faleceu com a felicidade da aprovação do filho no Senai, onde estudou mecânica de manutenção de máquinas operatrizes. A personalidade dele foi moldada de forma marcante pelos conselhos de Francisco, que perduram até hoje em sua vida e refletem na criação de Luana e Pedro.

É triste ver que os moleque da minha quebrada Não teve a mesma sorte que eu
Um pai presente
No país onde o homem que aborta mais
Vai entender, né?
Djonga, Bença, 2019

A história de Leonardo não poderia ser contada sem citar Dona Lourdes Rosária, que viveu grande parte de sua vida em meio a muita luta e dedicação à criação dos filhos. Durante sua longa e debilitante batalha contra a rara doença ELA — Esclerose Lateral Amiotrófica-, Lourdes foi cuidada, chegando a ser acolhida na casa do filho por 6 anos e meio, até o seu falecimento no dia 6 de junho de 2023. A devoção do ativista por sua mãe pode ser vista com um olhar de carinho e amor, considerando sua gratidão por todo o esforço feito em vida por Dona Lourdes para cuidar dele e dos irmãos da melhor maneira que conseguiu.

Logo após o curso do Senai, ainda na juventude, um curso técnico de eletrônica desencadeou sua nova versão. Naquele ano, o Ministro da Educação, Paulo Renato, planejava reformar a Lei da Filantropia, que concedia isenções fiscais e bolsas de estudo para os estudantes noturnos, o que incluía Leonardo. Sob esse plano de fundo de mudança, surge um espírito de justiça nos estudantes, o desejo de afronta e de luta por seus direitos, iniciando um movimento para que todos conseguissem concluir o curso.

Dúvidas e inquietações invadiram aquele cenário. As palavras preocupadas de sua mãe e o receio o levaram a refletir sobre seu comprometimento naquela organização. No entanto, o risco de perder a bolsa de estudos o convenceu a participar pela primeira vez do movimento estudantil. Foi nesse ponto que cruzou o caminho da União da Juventude Rebelião (UJR). Sobrepondo todas as expectativas, o que parecia ser uma utopia tornou-se uma realidade, até o último estudante concluir seu curso, a mensalidade permaneceu inalterada. Esse encontro se transformou em um completo divisor de águas.

O presidente nacional da UP viu sua história ser traçada por um caminho infestado de injustiças, mas com ideais nobres e ouvindo muito Racionais MC ‘s para sobreviver no inferno.

A influência dos Racionais é uma peça chave no quebra-cabeça sobre tentar entender quem é Leonardo. A influência do grupo de rap brasileiro foi indispensável no entendimento dessa miríade de injustiças e, o mais importante, na compreensão do que significa ser negro e viver na periferia. Mano Brown lança a luz sobre os desafios enfrentados por comunidades marginalizadas. É a fagulha que constrói a premissa do entendimento da luta, de classes.

“Comecei a refletir sobre isso tudo e falei, poxa, e tem solução? Aí alguém me disse: ‘tem, a gente precisa se organizar e lutar’. Opa, então é isso aí.”

A partir da conclusão de que era preciso criar um partido que lutasse por reais interesses da classe trabalhadora, organizações como o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) — do qual ele é um dos líderes nacionais desde 2011 pela reforma urbana –, o Movimento Luta de Classes, o Movimento de Mulheres Olga Benário e a já mencionada União dos Jovens e Rebelião (UJR) levantaram o partido que hoje se denomina Unidade Popular (UP). Apesar de tantas burocracias e cláusulas de barreira, decidiram o nome e reuniram -se a partir de 15 estados que tinham movimentos e organizações. Fizeram um congresso de fundação e, desse momento em diante, foi a mão na massa e a cara na rua. Eles precisavam de 500 mil assinaturas; e deu certo.

A UP é uma sigla de esquerda e se revela como um partido conectado com o trabalhador, do cotidiano, palpável à comunidade e de perspectiva revolucionária. Um partido que não organizou movimentos, pois esses o fizeram. Organizações de 12, 15, 20 anos que lutam e se uniram para estabelecer as condições de um novo partido que busca romper com a exploração do sistema. É um coletivo que se manifesta, que implode, que vai para a rua. Leonardo, durante nossa entrevista, enfatiza o fato de serem muitas pessoas envolvidas e ser algo coletivo. Argumenta a todo momento que não acredita em ações individuais. Ele está no todo e não quer ser diferenciado disso. Os “camaradas” são a base e o complemento para construir um partido que propague a consciência de que o povo é mais forte, mas é forte junto.

“Rua! Força do povo e da esquerda é povo na rua, é manifestação, greve, luta, mobilização.”

Leonardo Péricles se candidatou pela primeira vez representando o partido Unidade Popular, de número 80, à presidência da república em 2022 e recebeu 53.519 votos. De maneira franca, expõe a dificuldade do partido de propagar suas ideias e fortalecer sua voz no cenário político. Ao perguntarmos sobre a corrida eleitoral e a ausência dele nos debates na grande mídia enfatiza que, contrariando a Constituição que garante a ampla liberdade de organização partidária, as cláusulas de barreira são feitas para que novos partidos como a UP não existam e, se existirem, tenham muita dificuldade de se apresentar para a população. Embora não tenha tido direito a tempo de TV e rádio no horário eleitoral gratuito e pouquíssima renda para a campanha, a UP poderia participar dos debates. Só que a lei deixa essa decisão sobre quem convidar para os eventos a critério da emissora. A presença nos debates televisionados foi, sobretudo, de pessoas brancas.

“Porque tem um imaginário, uns debates que fica assim ó: ‘um dia a gente vai ter um presidente negro’. Ah é? Mas se não tiver nem candidato, como é que vai ser? Não tem, nem candidato a gente é. Quando tem um, não pode falar, não pode ir para a TV para se expressar.”

O presidente da UP delineia a quebra do estigma arraigado e argumenta que político não é tudo igual. Péricles denuncia o que classifica como uma política incoerente e que distancia o discurso da prática. Ele faz questão de dizer que usa o Sistema Único de Saúde (SUS) e o transporte público e acredita que deveria ser a norma, que os políticos deveriam ter esse tipo de atitude e que isso evitaria o declínio e o sucateamento desses serviços públicos.

“A gente vai diminuir, nosso objetivo é diminuir essa distância. Até o seu discurso seja a sua prática. Na política é isso. Eu não posso pregar pra você algo que eu não acredito. […] Eu não entendo essa política. Essa que tá aí é pra enganar o povo.”

Assim como Léo Perícles conheceu os movimentos sociais ainda jovem, esses são a imensa maioria que pediram ingresso na UP após a sua candidatura nas eleições presidenciais de 2022.

Péricles considera que a juventude tem capacidade de engajamento e disseminação, possuindo um notável poder de influência sobre seus familiares, amigos e o círculo social que os envolve. Por uma perspectiva histórica, ele constata que, ao longo do tempo, são justamente esses jovens visionários que protagonizaram as grandes revoluções e mudanças sociais que marcaram a trajetória da humanidade. Eles, para o pai da Luana e do Pedro, são os responsáveis por um caminho em direção a um futuro mais promissor e alinhado com os ideais que tanto anseiam.

“[…] Eu busco ser um pouquinho também esse jovem.”

Aos 42 anos, Péricles se mostra um jovem com cabeça de 18. Com a mesma energia e vitalidade de quando se uniu ao movimento UJR, reafirma uma constante esperança por um mundo impulsionado por justiça e igualdade.

Na mesma palestra em que tivemos o primeiro contato com o perfilado e na entrevista propriamente dita com ele, realizada na ocupação Maria do Arraial, no centro da cidade, Péricles abordou a possibilidade da sua candidatura à presidência da República em 2026. Em nenhuma das vezes foi muito direto na sua resposta. Na entrevista disse que a prioridade era ir para a rua e crescer o partido, construindo uma base sólida de apoio. O que o futuro reserva para a possível candidatura de Leonardo Péricles em 2026 é incerto e deixa margem para suposições e expectativas de seus — jovens eleitores.

De mão fechada que acompanha o punho erguido, Leonardo Pericles Vieira Roque representa a resistència do Movimento Negro por todo o país. Suas referências vão de Malcolm X à Dandara dos Palmares, mas a diretriz que dá poder ao se orgulhar da cor da pele se enraíza nas histórias contadas por seu pai, Seu Francisco, que sempre ao ser alertado ironicamente por seus colegas de trabalho de que se tomasse seu café ficaria “mais preto” respondia firme e orgulhoso que tomava seu café para nunca descolorir.

Perfil produzido por Náthaly Escobar, Maria Eduarda Abranches, Luiza Gomes e Ana Clara Torres na disciplina Apuração, redação e entrevista, 2o período do curso de Jornalismo, PUC Minas.

Foto por: Ana Clara Torres, Novembro de 2022.

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