Por Marco Souza
A cada exibição, Ilha das Flores (1989) se consolida cada vez mais como uma das realizações audiovisuais mais polidas do documentarismo brasileiro. Eleito em 2019 como “o melhor curta-metragem brasileiro da história” pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o filme escrito e dirigido por Jorge Furtado destrincha a complexa existência do ser humano em uma sociedade capitalista, recorrendo a uma estratégia única: o diretor faz uso dos parâmetros e símbolos das linguagens publicitária e documental para confeccionar um produto que retorce a realidade e coloca a noção comum de “verdade” em xeque.
O texto e a narração estoicos e hiper-racionais, com a ocasional piscadela ao cômico, têm o intuito de imediatamente desarmar o espectador. Esse caráter didático não julga a capacidade do público de entender conceitos simples, mas sim pinta uma clara narrativa e linha temporal a ser seguidas. A linguagem é, na realidade, muito similar em tom à do documentarista norte-americano Michael Moore que, em diversos renomados trabalhos que sucedem o curta em questão, se volta ao lúdico e ao irônico para se conectar com o espectador, ao mesmo passo que lentamente afia sua escolha de palavras para que a mensagem ao final da exibição seja cirúrgica.
Quanto à estética em si, os diversos gráficos feitos de recortes de revista e os inúmeros insertes de filmagens do “real” – que mais remetem a imagens de arquivo – nos transportam para o que seria uma versão cinematográfica do movimento pop art. À primeira vista, vemos as paletas saturadas dos tomates e famílias que facilmente se adequam ao famigerado “sonho americano”, e apenas pensamos na comercialidade dessas imagens. Porém, sob segunda inspeção, notamos como os visuais corroboram com o sarcasmo do texto, ao apresentar uma realidade que é alheia a do brasileiro, mas profundamente difundida entre a mídia anglo-saxônica e seu culto ao artificial.
Mergulhamos tão profundamente no universo de Ilha das Flores, entre conceituações inúteis sobre as composições dos cérebros de humanos e suínos, e romantizações super idealizadas dos diferentes setores trabalhistas, que até esquecemos o título do curta. Temos noção que o filme possui um largo diálogo com a sátira – afinal, não se coloca imagens chocantes do holocausto no meio de um curta vibrante e carismático sem considerar o contraste de tom que é criado – mas somos entretidos e distraídos pelas criativas maneiras com que o roteiro consegue dar voltas sobre si mesmo, adicionando ainda mais elementos no caminho. Eis que, depois de mais da metade da duração do filme, somos finalmente introduzidos à infame Ilha das Flores.
Para o curta, a Ilha das Flores representa um mecanismo de subversão final do arco narrativo construído até então. Ao mesmo tempo que confirma as impressões do espectador, de que um propósito maior estava lentamente sendo tecido por detrás do humor levemente ácido; o clímax do filme também revela que a realidade desse local quebra as regras já estabelecidas no universo em que fomos imersos. Subitamente, nos é revelado que crianças e mulheres da Ilha das Flores, que são tão humanas quanto qualquer um, são tratadas aqui como inferiores aos porcos. Entende-se imediatamente que essa população representa uma mazela da sociedade, e que os conceitos previamente definidos sobre as condições humanas e suas interações entre si são nulas ou irrelevantes quando vistas sob uma lente capitalista.
Pode-se argumentar que essa crítica social não é bem desenvolvida e fundamentada ao ser brevemente introduzida ao final de um produto já tão enxuto, quase que suavizando uma temática de grande importância para a contemporaneidade, com o tom irônico da narração. Ilha das Flores, porém, apresenta um trabalho conciso. Todos os elementos apresentados anteriormente (as pessoas, o trabalho, a economia, os animais) retornam para um ciclo final, que agora, em uma realidade menos idealizada, se mostra mais como uma espiral do que um círculo.
Furtado não tem o intuito de negligenciar uma mensagem sombria ao montar imagéticas reconfortantes, que puxam das estratégias de cativação publicitária. O que ele faz é potencializar sua própria voz ao remover o público do aconchego da linha de fluxo conhecida, quebrando a magia do imaginário para que a dureza da realidade possa realmente ser assimilada e confrontada. É um exemplo do poder da sátira e de como o humor e a estilização da estética podem contribuir para a construção de uma obra que outrora poderia ser maçante e desgastante para o espectador, caso estivesse nas mãos de um realizador que fosse apenas focado na clareza imediata do tópico abordado.
A Ilha das Flores apresentada a nós reside em um limbo entre a ficção e a realidade. Embora todo documentário discutivelmente ande por essa mesma tênue corda bamba do “real”, o curta de Furtado se orgulha em mesclar o que é fabricado ao que é verídico, ao ponto de que é impossível distinguir um do outro por completo. Enquanto os trechos de Dona Anete (Ciça Reckziegel) e sua família parecem ser provenientes de um banco de imagens, por sua alta polidez, com larga iluminação e precisa direção de arte, descobrimos nos créditos finais que os tais segmentos foram orquestrados pela própria equipe de Furtado.
E é também ao final dos créditos, após toda a equipe, atores e locações por detrás do projeto serem por fim transparecidos, que o filme brada: “o resto é verdade”. Mas a “verdade” em questão aqui não é sobre uma representação fiel do que se passa na Ilha das Flores de nosso mundo, que sequer foi a principal localidade da maior parte das gravações. Se alguém argumentasse com a já finada cineasta belga Agnès Varda que assiste a documentários quem apenas busca uma transposição exata do real para a película, a mesma provavelmente riria de uma constatação tão ingênua. Nem todo plano ou enquadramento é natural, muito menos as ações das pessoas retratadas nele, e muito provavelmente nunca saberemos se os momentos mais importantes para as pessoas/personagens ali realmente acabaram no corte final do filme, caso os editores e a equipe envolvida façam um bom trabalho em moldar uma narrativa coesa com o material disponível.
Ilha das Flores é o exemplo máximo de como o capitalismo falha em prover significado para palavras como “igualdade” e “liberdade”. No papel, quando analisado a fundo, o local que titula o filme não é nada menos do que um artifício para se chegar ao ponto desejado. Porém, quando se distancia dos detalhes, para focar no todo, percebe-se que os recortes e colagens da pop art de Furtado são exatamente o que parecem a princípio: uma abstração do produto.
A relativização da inteligência humana, através de um racionalismo tão literal, apenas aliena o cidadão comum e torna o erudito “burro”, ao ser inalcançável em suas demandas, de similar forma ao que acontece com populações economicamente carentes, quanto às demandas de um cenário global hiper-capitalista. Dessa maneira, um filme fidedigno à “realidade” não é aquele que repete o real, mas o que nos faz sentir a sua conclusão da mesma forma com que as personagens na grande tela. Toda a angústia, insatisfação, raiva e depressão ao entender que meros conceitos são subjugados e relativos a quem os está constantemente ditando e reescrevendo.
Isso é o que realmente se passa na Ilha das Flores.