“Homem com H”: a sensível vida e obra de Ney Matogrosso

Por: Davi Neiva

“Para Ney Matogrosso, por ousar ser livre”. Esta é a frase que encerra a cinebiografia de Ney Matogrosso, “Homem com H”, lançada no dia 1 de maio, e resume a forma como o cantor se transformou ao longo de sua vida e carreira, tornando-se uma lenda da música brasileira com um legado duradouro. Interpretado por Jesuíta Barbosa e escrito e dirigido por Esmir Filho, a obra percorre por 7 décadas da sua trajetória, desde sua infância até o seu apogeu no cenário musical brasileiro. 

Logo nas primeiras cenas do longa, é apresentado Ney quando criança ao lado de sua família, uma época marcada pela violência física e verbal do seu pai, Antônio Matogrosso (Rômulo Braga), um militar do Exército que não compreendia as expressões culturais de seu filho como a pintura e a música, reprimindo qualquer desejo do jovem garoto de seguir uma profissão artística. Movido pela rebeldia e pelo desejo de se libertar dos conflitos familiares, ele deixou sua casa aos 18 anos após se assumir homossexual e se alistou na Aeronáutica, onde prestou serviços por dois anos. A partir de então, ele passou a viver em diferentes capitais ao longo das décadas de 60 e 70, no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, trabalhando como artesão e se envolvendo com corais e grupos de teatro, assumindo um modo de viver associado ao movimento hippie. Mas foi em 1972, ao conhecer o cantor João Ricardo (Mauro Soares) e integrar a banda Secos e Molhados, que sua história mudou para sempre.

Com um estilo singular de cantar, Ney Matogrosso desafiou as normas comportamentais da sociedade em plena Ditadura Militar ao utilizar, figurinos, adereços e maquiagens considerados andrógenos e ousados para a época, quebrando padrões de gênero com uma postura que viria a marcar toda a sua carreira. Por desavenças internas, a banda se desfez em 1974 e o filme passa a abordar, nas cenas seguintes, os momentos mais marcantes de sua jornada, com foco nos projetos individuais e em seus relacionamentos com o cantor Cazuza (Jullio Reis) e o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone), com quem namorou por treze anos.

Com um olhar delicado, o filme estabelece uma conexão entre a vida de Ney Matogrosso com a natureza. Desde a cena inicial, é apresentado o vínculo do artista com o que é natural, algo que se manteve presente em seus trabalhos. Isso se reflete nos figurinos, nas letras e nas apresentações ao vivo, como em “Homem de Neandertal”, que se destaca no longa por retratar sua versão “homem-bicho”. 

Paralelamente, “Homem com H” retrata a evolução da relação do cantor com sua própria sexualidade. À medida que conquista mais independência e se afasta de ambientes que antes o oprimiam, ele passa a se explorar com mais liberdade, vivendo experiências sexuais e afetivas com homens e mulheres. As cenas de nudez e sexo não são exibidas de forma vulgar ou gratuita, mas sim de maneira poética e sensível, reforçando sua narrativa de libertação. O filme também evidencia como o artista passou a expressar seu corpo como um elemento central de sua arte e performance, algo que permanece presente até hoje.

O longa não evita expor os momentos frágeis de vida de Ney Matogrosso. Além de retratar os altos e baixos de seu breve namoro com Cazuza, mas de grande importância na sua vida, a obra retrata com uma visão respeitosa e emocionante a luta de seu parceiro, Marco de Maria, contra o HIV, que resultou em sua morte. Essa parte do filme, talvez a mais comovente, evidencia o peso devastador da Aids sob pessoas homossexuais entre os anos 1980 e 1990.

De forma implícita, a narrativa revela como Ney sempre esteve em confronto com tudo aquilo que ameaçava restringir sua autonomia: os conflitos com o pai, a censura durante a Ditadura Militar e as dificuldades em suas relações amorosas. Esses elementos sutis no roteiro funcionam como fio condutor do enredo, posicionando-o como uma figura que, ao longo da vida, enfrentou inúmeros obstáculos em nome de sua liberdade.

Diferente de outras cinebiografias que destacam momentos específicos da vida de um artista, “Homem com H” acerta em passear por diferentes épocas. Esse resultado foi possível graças a visão de Esmir Filho como roteirista do projeto, que contou com o apoio do próprio Ney Matogrosso. Em pouco mais de duas horas, o filme consegue reunir os momentos mais essenciais e marcantes de sua carreira.

Em entrevista durante a coletiva de imprensa da pré-estreia, Ney Matogrosso revelou que muitas falas e cenas não ocorreram exatamente como mostradas, mas que, diante do contexto, ele facilmente teria dito e vivido aquelas situações. Isso demonstra como o escritor foi capaz de transportar situações reais vividas pelo cantor para a ficção, utilizando a licença poética para adaptar os acontecimentos ao contexto do filme, ainda assim sendo fiel e verdadeiro à biografia do artista.

Nesse sentido, Esmir Filho também realiza um excelente trabalho como diretor, dando profundidade e emoção a cada trecho da longa-metragem. Com maestria, ele conduz a trama sem cair no óbvio, atribuindo a cada cena um significado e uma função essencial para o conjunto da narrativa. A direção acerta ao utilizar os elementos técnicos: a luz, as cores, as roupas, a trilha sonora, como recursos figurativos, especialmente nos atos musicais, onde cada apresentação tem uma importância especial e representa um capítulo diferente da jornada de Ney, demonstrando sua evolução, como nas performances de “Bandido Corazón”, “Pro Dia Nascer Feliz” e “Açúcar Candy”.

Um dos grandes pontos altos do filme, sem dúvidas, são as brilhantes atuações do elenco, especialmente de Jesuíta Barbosa, que interpreta Ney Matogrosso. O ator incorpora com profundidade as expressões corporais e trejeitos do cantor, se aproximando fisicamente e emocionalmente dele. Para alcançar este resultado, Jesuíta contou com o incrível apoio de caracterização da produção, que desenvolveu figurinos, acessórios e maquiagens com uma riqueza de detalhes impressionante, incluindo peças originais. Além disso, o ator perdeu 12 quilos e passou por um intenso processo de preparação de 3 meses para o papel.

Isso revela não apenas a dedicação do intérprete, mas também a sensibilidade da direção, preocupada em abordar fielmente a imagem de Ney Matogrosso. Cenas musicais como “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima” evidenciam esse cuidado. Além dele, os atores de Cazuza (Jullio Reis), Marco de Maria (Bruno Montaleone), Beíta, a mãe do cantor (Hermila Guedes) e Antônio, o pai (Rômulo Braga), se destacam com suas atuações vivas e comoventes, ao interpretarem figuras tão profundas e complexas a partir da visão e memória do próprio Ney.

Em geral, “Homem com H” se destaca no cenário audiovisual brasileiro como uma das melhores obras de 2025, e se diferencia de outras produções biográficas graças à sua sensibilidade com que descreve a narrativa de um artista brilhante e profundo como Ney Matogrosso, cujo impacto na cultura brasileira, desde os anos 70 até hoje, é imensurável. Sem dúvidas, este filme é indicado a qualquer brasileiro que valorize a música, arte e cultura nacional.

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