Por Ana Paula Valentim
Upile Chisala é uma escritora africana que relata em seus poemas a vivência de uma mulher negra em uma sociedade que ainda reproduz comportamentos e padrões racistas. Em um de seus escritos do livro A alegria espera por você (2023), ela diz: “Eu sou uma mulher negra e africana num mundo que desvaloriza essas três coisas”. Infelizmente, Chisala tem razão e muitas mulheres e meninas brasileiras afrodescendentes enfrentam diariamente essa desvalorização, sobretudo no campo afetivo.
Desde a infância até a fase adulta, somos ensinados a ver beleza em determinados tipos de corpos e não ver em outros, e isso molda nossa concepção do que é belo ou não; ou seja, não desenvolvemos naturalmente um certo “gosto” por aparências físicas, pelo contrário, somos influenciados externamente a tê-lo. Na TV e na internet, eram referenciadas como exemplo ou padrão de pessoas bonitas aquelas que tinham pele branca, cabelo liso e um corpo magro, fato que afetou negativamente a autoestima de muitas meninas que não tinham essas características. Há alguns anos, propagandas na televisão exemplificavam o cabelo com prancha e escova como “bonito” ou “ideal”, já o cabelo crespo, como “feio” e “exótico”. Esses comerciais racistas podem ser considerados uma violência psicológica que levou muitas pessoas negras a alisar o cabelo para não se sentirem feias, pois corpos como o delas nunca eram representados como atraentes ou desejáveis midiaticamente.
Gradualmente, a sociedade vem avançando e combatendo a ideia limitada e retrógrada do que pode ser considerado “beleza”, trazendo mais pessoas negras para ocuparem espaços e não serem mais associadas a elementos negativos. Porém, durante a história, modelos, protagonistas de novelas e apresentadores de programas foram papéis produzidos por pessoas de pele clara, figuras que reafirmavam o fato de que o Brasil estabeleceu um padrão estético baseado em uma visão eurocêntrica, ainda que o país seja efeito de uma forte miscigenação e mais de 50% de sua população seja negra (ou parda).
Na página 26 do livro de Upile Chisala, há um poema que retrata um sentimento e um grito que ecoa dentro de diversas mulheres negras, o qual diz: “Será que não posso ser apenas uma mulher negra que ama a si mesma em paz? Sem ter que explicar por que minha pele (seja ela da cor do mel claro ou do melado) é um sonho? Por que meu cabelo (crespo ou liso) é uma coroa? Será que não posso apenas ser uma mulher negra? Sem ter que pedir desculpas, ou ser humilde, ou ser bem-educada por isso. Que droga! Quem mais tem que justificar amar a si mesma assim? Quem mais tem que lutar pelo direito de chamar a si mesma de bênção? Meu Deus, será que não posso ser apenas uma mulher negra que ama a si mesma em paz?”
Lamentavelmente, mulheres negras estão inseridas num sistema capitalista preconceituoso que tenta fazer com que elas não gostem de si mesmas, não se considerem bonitas ou dignas de serem amadas e, quando uma mulher negra se conscientiza e refuta essa discriminação, tem amor próprio, autoconfiança e não se diminui perante os olhares nada discretos para seus cabelos volumosos, narizes largos e bocas grandes, essa mesma mulher é considerada agressiva. Contudo, ela está sendo resistente à opressão contra pessoas como ela que, durante muitos séculos, não foram sequer consideradas vidas que mereciam respeito.
Nas relações de poder, mulheres negras adoecem e são preteridas; em muitos casos, são objetificadas e rotuladas como aquelas com quem se pode “ficar” secretamente ou somente para satisfazer desejos sexuais, mas não como aquelas a serem apresentadas para a família de seus parceiros e assumidas como namoradas.
“Quando você me vê – a mim com os olhos cor da noite, a mim com os cachos e com o nome que ordena à sua língua que dance uma dança que ela nunca soube -, quando você me vê amando a mim mesma, me deixe ser. Eu sou uma filha preta aprendendo o amor outra vez.”, escreveu Chisala. Nesse poema da obra A alegria espera por você, a autora declara sua vontade e desejo de liberdade de ser quem é, sem julgamentos, em um mundo no qual pessoas negras são anuladas socialmente e vistas como agressivas. Tal estereótipo de “grosseira” atribuído à mulher negra é mais um elemento de uma sociedade estruturalmente racista que tenta estigmatizar a sua imagem quando essa se posiciona em um mundo que não quer que ela tenha amor próprio e esteja sempre agindo de forma pacífica, escondendo uma mágoa da qual a própria sociedade preconceituosa causou a ela.
Desde a Grécia Antiga, existia um padrão de beleza criado pelos gregos para determinar o que poderia ser belo e, esse padrão, influencia o Oriente e o Ocidente até os dias atuais. Historicamente, o padrão estético exaltava os homens e depreciava as mulheres que, inclusive, não eram valorizadas socialmente. Posteriormente, um padrão feminino baseado no masculino e inspirado na deusa Afrodite se difundiu, o qual ditava que as mulheres deveriam ter a cintura fina, o rosto simétrico, cabelo loiro e comprido e a pele clara, pois esse fator estava associado à riqueza e à aristocracia; enquanto a pele bronzeada era associada à escravidão, por conta dos escravizados trabalharem sob forte sol
É de fundamental importância analisar a origem histórica da construção do “gosto pessoal” que determina a aparência física que será considerada atraente para os homens (e até mulheres), pois, caso contrário, mulheres negras irão permanecer sendo excluídas de relacionamentos amorosos ou de amizade sob a justificativa de que não são o “tipo” dos demais e, tal fala simplista, diminui a complexidade da violenta solidão afetiva da mulher negra, a mesma que cresce vendo mulheres brancas sendo, na maior parte dos casos, as únicas amadas e escolhidas.
Estamos inseridos em uma cultura que nos ensina a desejar determinada aparência e rejeitar outra, pois muitas mulheres negras não tiveram representatividade de personagens como elas na infância. Para exemplificar, há as princesas da Disney, as quais são majoritariamente brancas, símbolos da beleza. A ausência de princesas negras causa uma sensação de inferioridade em meninas afrodescendentes que, consequentemente, podem se comparar com suas colegas de classe semelhantes às princesas e que despertam sentimentos dos meninos que também foram afetados pelos produtos midiáticos que não deram visibilidade à identidade preta como ícone de beleza. A infância negra é repleta de referências brancas oriundas de um sistema que tenta apagar a negritude e (des)politizar as pessoas para que achem só os indivíduos brancos bonitos.
Essa visão, que entende a beleza a partir de um padrão eurocêntrico, reproduz racismo e interfere no amor de maneira que ele não seja direito das mulheres negras. Essas não têm o corpo, o cabelo e o tom de pele que foram moldados como “belo” numa estrutura de poder colonizadora.
É necessário que a sociedade se conscientize acerca dessa problemática para que as mulheres negras sejam livres para se amarem e se curarem de tantas mágoas herdadas por si mesmas e seus ancestrais. Assim como enfatizado por Upile Chisala: “VIDAS NEGRAS SÃO BELAS E ELAS IMPORTAM”.