São várias as formas da economia. Uma delas é a economia da cultura. A Inglaterra tornara-se uma potência na música, muitos países especializavam-se na filmografia. Ainda mais quando anunciou-se o início da era digital.
O Brasil tinha tudo para se tornar uma potência cultural. Tem a melhor música do planeta e os demais atributos capazes de encantar a juventude: colorido, festas populares, modo de ser brasileiro.
Hollywood foi fundamental para o soft power americano. A música teria que ser para o Brasil, arrastando consigo outros aspectos culturais.
Comecei a escrever sobre o tema assim que o país acalmou, após o impeachment de Fernando Collor e o interinato de Itamar Franco.
O tema convenceu o então Ministro da Cultura Francisco Weffort. Constituiu um Conselho da Música Popular para opinar sobre o tema e me convidou para membro. Recusei, para não confundir com minha profissão de jornalista, mas aceitei assistir e reportar as reuniões do Conselho.
A primeira reunião foi no Rio de Janeiro. O conselho era presidido pelo grande Edino Krieger e tinha como membros músicos ilustres, como Paulo Moura e outros. Mas a única voz prática na reunião era de uma moça que trabalhava no mercado financeiro.
Edino abriu a reunião dizendo que, a partir daquele momento, o Conselho opinaria sobre as verbas da cultura – não era bem assim. E alguém opinou que em vez de gastar dinheiro com bandinhas do interior – como o Ministro da Cultura de Itamar, Aluizio Pimenta – iriam gastar com os verdadeiros artistas.
Ai o carro emperrou. Como admirador incondicional da cultura do interior – e, ainda mais, Aluízio Pimenta que, ao lado de meu pai, participou da criação do Conselho Federal de Farmácia – levantei dois argumentos.
O primeiro, que não se poderia ver a cultura do ângulo exclusivo do Rio de Janeiro – que ainda não mergulhara na decadência das décadas seguintes. O segundo, se aquela conclusão – do controle sobre as verbas – vazasse, não haveria uma segunda reunião do Conselho.
Não houve.
Continuei escrevendo sobre o tema. Nos 80 anos do Banco do Brasil, me convidaram para falar na abertura sobre a importância da música para a economia e a diplomacia brasileira. Foi um evento majestoso. Na plateia, políticos, diplomatas, grandes clientes do banco. No palco, uma orquestra do conservatório de Tatuí (que, a propósito, está sendo destruído pela gestão Tarcísio de Freitas).
Sugeri aos organizadores que terminassem o show de forma simbólica: colocando Zé Ketti, apenas com um violão, cantando “eu sou o samba”.
Assim foi. Quando Zé Keti entrou no palco, sentado em uma cadeira, e carregado por duas pessoas (estava com problemas de locomoção) foi uma emoção geral. As luzes do palco apagadas, apenas uma luz incidindo sobre ele, e Zé Keti mostrando a contribuição essencial do negro para a música e da música para o sentimento de país.
O único inconveniente é que ele gostou tanto do momento que não queria mais sair. Saiu carregado pelos dois funcionários, sem parar de cantar.
Continuei com minha defesa da economia da cultura, até que foi eleito Lula e escolheu para o Ministério da Cultura Gilberto Gil. O Ministro chegou acompanhado de um grupo de “malucos belezas” da melhor estirpe, liderados pelo grande Cláudio Prado, neto de Caio Prado Junior. Cláudio conheceu os baianos em seu exílio londrino e montou shows memoráveis, aproximando-os da cultura pop. E era um visionário da nova economia digital. E, organizando a banda, Juca Ferreira, um furacão gerencial, conseguindo colocar em pé todas as ideias do mais criativo Ministério da Cultura da história. Os “pontos de cultura”, material audiovisual para comunidades isoladas, foi um feito extraordinário.
Foi nesse campo fértil que, finalmente, minhas ideias conseguiram plantar algumas sementes. Fui convidado, inicialmente, para uma palestra para os conselhos de música que estavam sendo instalados.
Assim como no caso do Conselho de Weffort, foi uma conversa difícil. Alguns músicos já falavam em cadeia produtiva da música, absorvendo o conceito. Um deles, se não me engano o pianista Antônio Adolfo dizia que o elo mais importante, na cadeia produtiva da música, era o músico.
Em minha fala, ousei discordar. Músicos de qualidade eram insumos abundantes no país. O elo mais relevante da cadeia produtiva da música era o elo escasso: os produtores musicais, os que conseguissem transformar a música em produtos para conquistar o mundo.
Fui além. Já tinham surgido as primeiras redes sociais. Minha sugestão foi o Ministério criar um portal com as músicas brasileiras e convocar jovens com domínio em inglês para começar a levar a bandeira da música para redes sociais internacionais, que estavam se formando.
E repeti os argumentos de minhas colunas. O Brasil tinha a música de qualidade e a imagem de país colorido, voltado para a natureza. E o modo de ser brasileiro – informal, alegre – estava conquistando o mundo, especialmente após sair de um período tenebroso de ditadura e ter eleito um intelectual seguido de um operário.
Na época, aliás, tive uma discussão pela Folha com meu colega Clóvis Rossi, um pessimista incorrigível. A última moda das praias da Europa era o verde e amarelo. Escrevi que simbolizava a nova imagem do Brasil no mundo. Clóvis rebateu que era apenas porque a combinação de cores era agradável. Sempre ouvi críticas à combinação do verde-amarelo, que tem grande simbolismo apenas como símbolo do Brasil.
Na época, almocei com um executivo francês e, logo depois, com um italiano. E ambos confirmaram a consolidação da imagem do Brasil, o país mais querido da época, antes de mergulhar na década do ódio seguinte.
Para avançar na definição da política da cultura, no entanto, faltavam números. Pediram a ajuda da Agência Dinheiro Vivo, que eu presidia. Cheguei a conversar com a FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP), mas o Ministério não conseguiu suplantar a burocracia pública e conseguir verbas para a pesquisa.
Nos anos seguintes, a Cultura continuou a ter papel relevante nas políticas públicas, com a redefinição da Ancine, o início de uma nova era para o cinema. O ponto alto foi a ida de Gilberto Gil à ONU, cantando e sendo acompanhado pelo Secretário Geral Koffi Anan.
Naquele ambiente de otimismo, mal se sabia que, nos anos seguintes, o país ingressaria em uma guerra fratricida, o ódio se espalharia por todos os poros da Nação, o virus do negacionismo levaria um miliciano anti-ciência, anti-cultura ao posto de presidente.
Mas os malucos belezas de Gil mostraram que é possível.
Postado originalmente no site Geledés, por Luis Nassif no dia 28 de julho. No link: https://www.geledes.org.br/o-desastre-nao-e-natural-e-politico/