Por Clara Pellegrini.
Filme de abertura da corrente Mostra de Cinemas Africanos 2021, o longa documental Pare de nos filmar (Stop filming us, 2020, Joris Postema) vai até Goma, cidade do nordeste do Congo, com a intenção de não apenas retratar aquele território, mas investigar questões que tradicionalmente marcam a produção de imagens na e da África: quem tem o direito de filmar, qual a forma como se filma e quais as consequências disso? São essas indagações que movimentam o filme e o próprio filmar; o longa de Postema tenta se debruçar sobre si mesmo tanto quanto tenta se debruçar sobre o mundo.
O documentário é uma coprodução entre os Países Baixos e a República Democrática do Congo. A equipe é composta por profissionais congolenses e holandeses – entre esses últimos, o cinegrafista e o próprio diretor (logo, quem escolhe o que vai ser filmado e quem de fato filma). Apresenta-se aqui a principal problemática da obra: como esse homem branco europeu pode mostrar a África sem reproduzir imagens e estereótipos nocivos e recorrentes? As raízes dessa problemática se confundem com as raízes do documentário africano: antes da década de 1950, o cinema no continente era usado como propaganda colonial, instrumentalizado para a “educação” dos africanos. Os filmes eram feitos pelos colonizadores, que detinham os meios de produção e disseminação dessas imagens. A partir dos anos 50, alguns cineastas europeus, como Jean Rouch, passam então a produzir documentários que pretendem se opor a essa alienação colonial.
Este é um importante ponto de virada, especialmente porque esses documentaristas ditos anticoloniais, além de fazer filmes, contribuíram diretamente para a formação de alguns dos cineastas que viriam a se tornar canônicos no cinema africano – Safi Faye, por exemplo, foi aluna de Rouch. Entretanto, essa nova abordagem não deixou de ser, em alguma medida, problemática: os documentários desses europeus eram marcados por um olhar fortemente etnográfico e exotizante. A reiteração da alteridade dos africanos a partir da construção dessa imagem antropológica dos nativos locais como selvagens exóticos, que os enclausura em estereótipos e homogeniza suas existências, fez com que os cineastas da África buscassem, então, tomar as rédeas da produção imagética de si, em um esforço de desafiar as estereotipias e libertar-se das imagens coloniais através do desenvolvimento de linguagens, estéticas e estilos próprios.
Esse contexto histórico se relaciona intimamente com o filme de Postema, ainda que Pare de nos filmar exista em um mundo com 70 anos de diferença do mundo em que essas questões começam a ser delineadas – e o longa se propõe a encará-las frontalmente. As primeiras cenas de Goma (e sobretudo a narração de Joris que as acompanha) dão a ver conflitos que marcam a região – violência, problemas de infraestrutura e questões humanitárias – mas essa construção imagética negativa passa a ser tensionada antes mesmo de estar completa; “Eu, como ocidental, posso retratar esse mundo?” O filme perturba a representação que constrói, em um movimento que simultaneamente produz imagens e questiona essa produção. As discussões se desenrolam na frente da câmera, fazem parte do tecido do filme: Joris, Gaïus, TD Jack, Ganza e os outros integrantes da equipe constantemente conversam entre si e com outras pessoas, indiretamente envolvidas na feitura do documentário, sobre as imagens que fazem e as questões que surgem a partir delas. O gesto de refletir sobre o que se faz torna essa construção imagética oscilante, ora negativa, ora positiva, movimentando-se de acordo com as questões ponderadas e colocadas em cheque, e sempre aberta: não existem respostas prontas, concretas, apenas perguntas, considerações e tentativas de análise. A movimentação se dá também pelo que objetivamente se escolhe filmar, o que constitui concretamente as cenas. Assim, facetas negativas e positivas do retrato de Goma aparecem distribuídas ao longo dos 95 minutos, costuradas de acordo com o tom das inquirições.
A investigação movida pela pergunta inicial de Postema encontra três personagens locais que estimulam no filme outras questões; mantém-se a relação com o fio condutor (o que se escolher representar, quais as consequências dessa escolha e quem deve fazê-la), mas apresentam-se outras perspectivas a partir do encontro com essas figuras: o artista Mugabo Baritegera, a cineasta Bernadette Vivuya e a jornalista Ley Uwera. Todos os três produzem, eles mesmos, imagens do Congo, mas suas produções imagéticas são muito diferentes, em contexto e conteúdo. Mugabo vai às ruas de Goma e, através da fotografia, conta uma história positiva da cidade, não se restringindo aos conflitos; suas lentes registram a vida cotidiana e a cultura de seu povo. Bernadette está em processo de feitura de um filme, no qual discute a herança colonialista da região e os impactos desse colonialismo que reverberam até hoje, mas o que Pare de nos filmar acompanha é, sobretudo, sua busca por financiamento do projeto – a implicação econômica de fazer imagens é colocada em evidência. Ley, por sua vez, enquanto jornalista fotográfica, trabalha ocasionalmente para ONGs ocidentais, retratando vítimas do genocídio em Ruanda que buscam abrigo em campos de refugiados na região de Goma. Aqui, a questão econômica é confrontada com o peso e as consequências da representação: em que medida esse trabalho reitera a colonização das imagens da África?
Essa é, aliás, outra das grandes problemáticas com as quais o filme de Postema se depara: a incessante exploração neocolonialista do Congo. O maior sintoma dessa manutenção da dominação colonial, que se dá a partir de novas formas estruturantes, é a presença esmagadora de ONGs estrangeiras (só na cidade de Goma são 250) que se imprime também nas cenas do documentário: vemos constantemente carros, trabalhadores e as sedes dessas muitas organizações, de maneira destacada ou ao fundo dos quadros, como componentes indissociáveis da paisagem. Ainda que esses grupos forneçam algum tipo de suporte à população insuficientemente amparada pelo governo local, seu trabalho oferece apenas um assistencialismo que resolve as urgências pontualmente, sem que haja mudanças concretas a longo prazo – e isso apenas alimenta o ciclo de dependência: não havendo políticas públicas que garantam soluções duradouras, a presença das ONGs (europeias, em sua maioria) como paliativo imediatista será sempre necessária.
Essa exploração neocolonialista se dá também em nível simbólico, operando sobre as imagens e representações de forma a alimentar esse imaginário das populações africanas como carentes de suporte externo. A iniciativa da Netflix (abordada no documentário) de gravar um filme sobre o ebola enquanto a epidemia acontecia no Congo é representativa: uma empresa ocidental explorando economicamente imagens da África que reforçam estereótipos reducionistas. É da consciência dessa problemática e da origem histórica dessas questões que surgem as reflexões de Pare de nos filmar sobre a própria produção imagética. A escolha de expor constantemente o dispositivo fílmico para pensar sobre aquilo que se faz é um caminho que permite que a abordagem de Postema se distancie em algum grau da reprodução dessa colonização simbólica. A representação que ele constrói não é, afinal, concreta, fechada; pelo contrário, muda constantemente e permanece aberta, inacabada.
Mas apesar do gesto questionador, essa tentativa de mudança de posicionamento é posta em cheque – a começar pela escolha do título: Pare de nos filmar. Quem realmente diz isso aqui? A população de Goma, sim, e de forma enfática quando, reiteradamente, resiste a ser filmada pelas lentes de Wiro, o cinegrafista holandês. São várias as cenas ao longo do documentário em que vemos pessoas cobrindo o rosto, reclamando de serem gravadas ou encarando desafiadoramente a câmera; sintoma das consequências concretas que essa exploração simbólica, imagética, impõe sobre esses indivíduos. Mas quando esse imperativo é colocado como o nome do filme – no qual, vale lembrar, quem olha e quem direciona o olhar (inclusive na montagem) são homens brancos europeus – ele deixa de fazer sentido. E se a construção da obra se dá guiada pelo debate sobre as imagens que são feitas da África, pensando o direito e a forma de produção dessas representações – mas, principalmente, os níveis de poder implicados nessa ação, é questionável que aqui essas estruturas ainda se mantenham. Apesar do esforço de deslocamento, não há, fundamentalmente, nenhuma mudança: a possibilidade, inclusive econômica, de fazer esse filme permanece nas mãos do realizador ocidental, e ele o faz para um espectador também ocidental; o espaço dado aos congoleses de participar ativamente das discussões instigadas pelo longa é mera ferramenta da própria construção fílmica. A clara intenção do realizador de não reproduzir um comportamento neocolonialista, por mais louvável que seja, não chega a se concretizar no resultado final. Pela consciência disso, talvez, alguns dos personagens locais que Joris escuta dizem que não, ele não deveria ter ido a Goma fazer o filme – mesmo depois de assistir as imagens e entender que o diretor pretende com elas.
A janela de exibição de Pare de nos filmar na Mostra de Cinemas Africanos já acabou, mas há ainda outros filmes disponíveis que merecem ser vistos. A edição de 2021 acontece até o dia 22 de março, e as obras podem ser acessadas de forma gratuita pela plataforma Spcine Play. Todos os programas de curtas já estão disponíveis, permanecendo acessíveis até o final, e há ainda a estreia de quatro documentários em longa-metragem: Sakawa (Gana, 2018), Descobrindo Sally (Etiópia, 2020), Vamos Conversar (Egito, 2019) e Me Chamo Samuel (Quênia, 2020), filme de encerramento da Mostra. Vale lembrar que depois da estreia, sempre às 19 horas dos dias programados, os longas ficam disponíveis por apenas 72 horas e têm limites específicos de visualizações; assim, é importante consultar a programação para se organizar quanto à exibição. Além do site, vale conferir também a página do Instagram da Mostra de Cinemas Africanos, que oferece informações diversas sobre os filmes e o funcionamento do evento.
Clara Pellegrini é monitora do CCM e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.
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