Como as mudanças temporais influenciaram nas disparidades entre o episódio de estreia da versão primária e do remake de Vale Tudo

Por: Ana Paula Valentim

A primeira versão da telenovela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, foi exibida em 1988 pela Rede Globo e se tornou um grande sucesso da época pós-ditadura militar. Atualmente, em 2025, um remake da obra escrita por Manuela Dias está sendo transmitido na mesma emissora e, já no primeiro episódio, é possível identificar diferenças entre a trama original e a sua adaptação. 

Em 1988, o episódio de estreia da teledramaturgia se inicia com o casal de classe média baixa Raquel (Regina Duarte) e Rubinho (Daniel Filho) se desentendendo, principalmente pela indignação de Raquel ao ver seu marido chegar em casa fora de si, após gastar seu dinheiro com álcool enquanto ela e a filha deles, Maria de Fátima (Glória Pires), passavam dificuldades financeiras em casa. A menina acaba presenciando uma cena na qual seu pai agride sua mãe com um tapa no rosto, ato que deixa a mulher imóvel e assustada e, o homem, leva a mão ao rosto entendendo que cometeu uma atitude desumana – entretanto não pode ser revertida. O casal se separa, Maria de Fátima e sua mãe se mudam para Foz do Iguaçu para viverem com Salvador, o pai de Raquel. Em 2025, o mesmo episódio da novela também ilustra a cena de violência doméstica na qual a filha (Bella Campos) vê o pai (Júlio Andrade) agredir sua própria mãe (Taís Araújo), porém, em contrapartida à primeira versão, agora Raquel revida a bofetada que levou de Rubinho e esbraveja “eu nunca apanhei nessa vida e não vai ser agora que isso vai acontecer”, ilustrando o empoderamento feminino e um posicionamento de resistência à violência contra a mulher. Assim como em 1988, Raquel se divorcia do marido e se muda com sua filha para Foz do Iguaçu, sendo exemplo de mãe solteira, trabalhadora e corajosa – representando inúmeras brasileiras. 

Outra distinção entre as obras é que naquela versão, apresentada na década de 80, a personagem Leila, ex-esposa de Ivan, se mostra indignada com a possibilidade de trabalhar numa loja de roupas já que fez faculdade de psicologia. A mensalidade da escola de seu filho, Bruno, aumentou e ela precisa ajudar a arcar com as despesas, contudo ela não demonstra satisfação para conseguir algum emprego. Por outro lado, na obra atual, Leila aparenta estar melancólica com seu desemprego e, inclusive, envergonhada por deixar a impressão de que está dependente de seu ex. Ela demonstra esperança ao citar a vaga de vendedora existente na loja de roupas e acredita que receberia um alto valor nas comissões de vendas caso seja contratada, fator que indica sua humildade para enfrentar adversidades financeiras trabalhando honestamente. Vale ressaltar que a profissão de vendedor é uma das mais comuns no país; a desigualdade social no Brasil é grande, por isso muitos cidadãos não conseguem realizar uma graduação ou até mesmo possuírem o diploma do ensino médio, então são admitidos em serviços que não requerem muita qualificação, mas que também não remuneram o funcionário com um bom salário e, portanto, maximizam a exploração trabalhista e a predominância de muitos indivíduos endividados e com uma qualidade de vida indesejável ou insuficiente. 

A personagem Raquel é guia turística no passeio de turistas às Cataratas do Iguaçu, os viajantes embarcam no passeio de ônibus na versão original e, no remake, embarcam de van. Quando Maria de Fátima entra em cena, há uma trilha sonora com a música em inglês de Chloe Qisha chamada “I Lied, I´m Sorry”,  lançada em 2024, portanto não foi tema da personagem inicial, o que reforça a influência da cultura estadunidense no Brasil e no mundo na contemporaneidade.

Na atuação de Regina Duarte, ela volta do passeio com os turistas durante a noite, ajuda uma senhora a descer do ônibus e diz a Maria de Fátima “se eu não segurasse, a velha ia se esborrachar no chão”; no remake, não há a personagem idosa e o passeio se encerra durante o dia. Naquela época, alguns termos como “velho” eram usados despretensiosamente, o que não poderia ocorrer hoje, pois caracterizariam expressões pejorativas e desrespeitosas para se referir ao idoso. 

Maria de Fátima, por Bella Campos, tem relações íntimas com César (Cauã Reymond) após se conhecerem no hotel em Foz Do Iguaçu, exibindo a normalização de encontros casuais sem rótulos, mas claro, considerando, o consentimento e o desejo mútuo ligado ao desejo e à sexualidade. Tal cena não aconteceu em 88 nesse capítulo, haja vista tabus e visões mais rígidas sobre relacionamentos, muitas vezes com a interferência da religião, existentes naquele tempo. Agora, temas como amor, sensualidade e prazer são tratados com mais abertura, instrução e educação; são mais livres, autônomos e menos dogmáticos. 

Fátima, por Gloria Pires, almeja pela carreira de modelo. Já Fátima, agora, anseia mais pela carreira de influencer do que modelo. O conceito de influenciador digital surgiu com a popularização das mídias sociais nos últimos anos.

Rubinho, em 1988, tenta apoiar Raquel após ela perder seu pai, e questiona se ela aplicou o dinheiro do PIS, porém a mulher está muito abalada para lidar com essa questão. De forma estratégica, o homem diz que teve gastos  financeiros com a passagem aérea para Foz, despesas e que o país está vivendo momentos de inflação e, portanto, pede a ex-esposa dinheiro emprestado no valor de cem mil cruzados para pagá-la 20% ao mês – o que a faz comentar com deboche e indignação com a filha instantes mais tarde. Rubinho, em 2025, não visita sua ex-mulher após a morte de seu pai, então não há o pedido de empréstimo de dinheiro – vale ressaltar que a moeda oficial do Brasil é o Real no momento. 

Outra mudança notada é o avanço da tecnologia. Originalmente, quando Raquel descobre que Maria de Fátima vendeu a casa onde as duas moravam e se mudou para o Rio de Janeiro sem avisar, a mãe procura a filha no quarto para entender melhor a situação que aparenta ser um mal-entendido, porém, ao chegar ao cômodo, ela vê que a menina não está lá e que seu guarda-roupa foi esvaziado e está ocupado apenas pelos cabides. No remake, após a descoberta da venda do imóvel, Raquel pega seu smartphone e liga para a filha, entretanto ela percebe que o celular de Fátima está no quarto, com o guarda-roupas também vazio e uma mesa de canto com alguns acessórios e um computador. Anteriormente, não havia computador e celulares no cenário. Nos anos que antecederam esse período, as chamadas eram realizadas em Telefones de Uso Público, conhecidos como orelhões nas ruas.

Os episódios se passam em épocas diferentes, sendo que na primeira Vale Tudo a Constituição Federal foi promulgada e, um de seus artigos, estabelece o racismo como crime inafiançável inclusive. Naquele ano, as protagonistas da novela eram de pele branca e, atualmente, as protagonistas têm pele negra, o que contribui para a representatividade e valorização da afro-brasilidade combatendo ao racismo estrutural que contribuiu, em muitas novelas aliás, para que pessoas negras estivessem ligadas a personagens que prestassem o ato de servir pessoas brancas. O episódio de 1988 se inicia com um aviso de que a obra reproduz comportamentos da época na qual foi escrita e, assim como foi dito pelo filósofo George Santayana, “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

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