Por Júlio Martinez.
Atlantique (2019), longa-metragem de estreia de Mati Diop, fez história no Festival de Cannes, sendo a primeira obra dirigida por uma mulher negra a entrar na competição pela Palma d’Or e, ainda, levar o Grand Prix. O filme se passa no Senegal, na cidade de Dakar, onde acompanhamos um amor proibido entre Ada (Mame Bineta Sane) e Souleiman (Ibrahima Traore). A garota está prometida a Omar, um homem rico; o jovem trabalha em uma grande obra, mas está há três meses sem receber. Na primeira metade do filme, acompanhamos as injustiças que acometem Souleiman, que, não vendo oportunidades em Dakar, resolve ir com os outros trabalhadores para a Espanha. Após a introdução desse personagem, somos apresentados a Ada, a protagonista do filme, uma mulher de 18 anos que se recusa a seguir a vida que lhe foi imposta.
Nesse primeiro momento, Atlantique parece seguir uma tendência do cinema contemporâneo que aposta em um drama sobre a extrema pobreza, como Cafarnaum (Nadine Labaki, 2018) e Ayka (Sergey Dvortsevoy, 2018), em que Diop trabalha alguns temas como a desigualdade socioeconômica e a injustiça social. A personagem de Ada, por exemplo, é oprimida por uma sociedade pautada em valores religiosos e machistas; a partir da história de Souleiman, é possível pautar a questão da imigração, já que ele tem que sair de sua cidade natal na tentativa de conseguir melhores condições de trabalho na Europa, porém acaba enfrentando adversidades comuns aos sujeitos que buscam, precariamente, esse tipo de oportunidade. O barco que o levaria para o outro continente acaba naufragando e o jovem perde sua vida.
Entretanto, no meio do filme, há uma virada na narrativa e Diop introduz um elemento sobrenatural a seu filme: o transe tropical. A partir desse momento, algumas pessoas, predominantemente mulheres, começam a sentir uma febre intensa assim que o sol começa a se pôr. Isso acontece porque, à noite, os espíritos dos homens que morreram no acidente de barco, que vitimou Souleiman, entram nos corpos de algumas pessoas e reivindicam os salários atrasados com o patrão.
O jovem entra no corpo de Issa (Amadou Mbow), o inspetor que está investigando um incêndio causado no casamento de Ada e Omar, em que o principal suspeito é Souleiman. Essa escolha de Diop é interessante, pois tanto Issa quanto Ada estão procurando por Souleiman, que possui o próprio inspetor e, ao mesmo tempo, ela foge de Issa. A introdução desse elemento sobrenatural é o que diferencia Atlantique positivamente.
Essa é a primeira vez que o sobrenatural é mostrado explicitamente no filme, ainda que se figurassem alguns indícios de certo realismo fantástico: a trilha sonora de Fatima Al Qadiri que sugere certo mistério, uma fotografia acinzentada que deixa tanto o mar quanto o céu sem cores e uma espécie de névoa que paira sobre a cidade. O longa-metragem dirigido de Diop também flerta com o suspense. As cenas de mulheres possuídas pelos espíritos dos homens cobrando o dinheiro do patrão trazem uma atmosfera densa e aterrorizante. Além disso, para transmitir o desconforto de Ada com o rumo que a sua vida está seguindo, a diretora opta por uma câmera que está sempre em movimento; ela só se torna estática no último plano do filme, quando a personagem está finalmente plena.
Em Atlantique, há um abundante uso de espelhos durante todo o tempo. O primeiro uso é em um diálogo entre Ada e Mariama, em que são utilizados apenas planos dos espelhos. Todavia, o grande momento desse recurso é quando as mulheres estão possuídas pelos homens que são refletidos por esses objetos. O uso dos espelhos apresenta, ainda, uma função narrativa para o desenvolvimento da personagem de Ada, já que ela não enxergava sua destinação na vida e apenas no momento em que consegue controle sobre ela é que pela primeira vez se enxerga.
Atlantique é um filme sobre a quebra da ordem natural. Ada escolhe sair da vida tradicional senegalesa, abdica de uma vida fácil para ser independente e ficar com quem ela realmente ama. Souleiman e os outros trabalhadores retornam da morte para se vingar do patrão que os condenou, fazendo com que ele pague o que lhes deve e ainda seja humilhado tentando cavar as covas dos homens que ele matou. Esse é um ato simbólico de uma obra que sugere que, assim como na realidade, não dá para saber quantas pessoas realmente morreram pelas injustiças do tempo ali retratado. No entanto, na ficção não há impunidade.
Por fim, Atlantique é um trabalho singular de Mati Diop que mostra ousadia em utilizar elementos sobrenaturais em sua narrativa.
Júlio Martinez é monitor do CCM e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.
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