Anne, uma protagonista a frente de seu tempo

As pautas feministas são um dos pontos centrais da série. Foto: Reprodução/Netflix

Por Julia Portilho.

A série “Anne With An E”, baseada nos livros de L. M. Montgomery, conta a história de Anne, uma menina órfã que, após um erro no sistema do orfanato, é adotada por engano por um casal de irmãos que buscava ajuda para o trabalho na fazenda. Ambientada na zona rural do Canadá do século XIX, o enredo explora diversos temas em evidência na época e que continuam relevantes, como o preconceito e o machismo estrutural incrustado na sociedade. Mesmo após quase dez meses desde seu cancelamento no final de 2019, a série canadense continua movimentando as redes sociais. Isto porque inúmeros abaixo-assinados em prol de sua renovação para uma quarta temporada circulam pela internet e buscam conquistar seu objetivo a todo vapor.

Em uma petição criada no site “Change.org”, o notável número de 1 milhão de assinaturas foi alcançado no final de julho e conta, hoje, com mais 300 mil participações. A marca, nunca antes alcançada por outro seriado, mostra a força e o apelo existente por meio de seu público. A divulgação continua acontecendo por parte dos fãs, tendo estes, inclusive, alugado banners e telões na famosa Times Square, em Nova Iorque, no mês de janeiro, com o intuito de chamar a atenção de novos espectadores para o tv show.

Divulgação na Times Square pedindo o salvamento da série. Foto: Chantel Erin

A série demonstra uma sensibilidade ímpar ao tratar assuntos como a homoafetividade em diferentes fases da vida de modo natural e cuidadoso. Cole é colega de classe de Anne e desde cedo sofreu bullying por ser diferente. No entanto, sua vida muda após acompanhar Anne e Diana a uma festa na cidade e conhecer Josephine, tia de Diana. A idosa é a representação de progresso e liberdade, tendo passado a vida inteira ao lado de sua companheira sem medo do julgamento da sociedade. O fato era oportuno somente porque tinha condições financeiras avantajadas, já que na época a temática era considerada um tabu. 

A descoberta faz com que a aproximação entre os dois personagens se torne algo único. Cole ganha força e ressignifica sua vida ao fugir e ser acolhido por Josephine. O jovem se espelha na mulher e se liberta das pressões e amarras do preconceito que sofreu. Hoje, a mentalidade das pessoas tem evoluído e, a passos lentos, caminhamos em direção a um mundo mais tolerante. A legalização do casamento gay e a criminalização da homofobia são algumas das conquistas que os deixariam com orgulho.

O racismo é abordado de maneira simples, mas tão real que provoca desconforto no telespectador. Em uma cena, Sebastian, ou Bash, leva Gilbert para conhecer a mãe que ainda trabalhava na casa de seus ex-senhores em seu país natal. Apesar de, na teoria, ser liberta, a senhora ainda se vê como uma escrava e com obrigação de cuidar da família branca a qual sempre serviu. A condição de submissão é tamanha que ela, tendo priorizado os filhos da patroa ao seu próprio durante toda a vida, se nega a ir embora com o filho e deixar os patrões. A mágoa e o sentimento de abandono de Bash são escancarados por meio da atuação de Dalmar Abuzeid.

Em busca de um novo começo e deixando para trás o trabalho braçal em um navio, ele parte então para Avonlea junto a Gilbert, agora como sócios na fazenda da família do garoto. O preconceito se faz presente logo quando Bash tenta embarcar na estação de trem e é impedido por outro negro. A situação é quase surreal, embora muito comum: o modo como um indivíduo se rebaixa e aceita seu lugar como inferior aos demais.

A chegada na cidade apenas traz mais desconfianças quanto ao caráter e integridade de Bash, afinal, a vista de todos, um branco dificilmente seria amigo de um negro. Frente a tanto menosprezo, ele é atraído para o gueto, local precário e com pouca infraestrutura onde os negros viviam quase reclusos. Mais de um século separam os acontecimentos entre ficção e realidade, contudo pouco mudou. O preconceito e a desigualdade social continuam segregando, sobretudo, as minorias, como os negros.

Bash e Gilbert constroem uma relação de irmandade durante a série.
Foto: Reprodução/Netflix

A construção da personagem de Anne, por sua vez, está diretamente relacionada a muitas tramas da narrativa. Com um histórico marcado por abusos e traumas de seu tempo no orfanato, a menina chega a fazenda de Green Gables insegura e desesperada por uma família e um lar. Como forma de fugir da realidade, ela encontra na literatura e na imaginação um modo de sobreviver. 

Sua presença movimenta e, de certa forma, muda a cidade e seus habitantes. Para os irmãos Cuthberts, Anne leva amor e alegria, sendo responsável por uní-los e dar um sentido a vida pacata a qual estavam acostumados. Seu ingresso na escola é complicado e, por muito tempo, foi julgada por sua personalidade extremamente expressiva e por sua aparência. Ao longo das temporadas, ela vai se conhecendo e construindo sua identidade. Anne ganha confiança e maturidade, se mostrando uma figura empoderada disposta a lutar por igualdade e justiça.

Conhecida por suas perguntas incessantes a respeito de tudo e de todos, Anne está ciente das mazelas sociais e sempre questiona os valores da comunidade ao seu redor. A personagem pode ser considerada uma feminista à frente do seu tempo; logo no primeiro episódio faz um discurso convicto de que seria tão capaz quanto um garoto de fazer o trabalho pesado de uma fazenda.

O machismo e o patriarcado característicos do século XIX influenciam diretamente na vida das garotas de Avonlea. Prissy é uma das alunas mais velhas e, em certo ponto da narrativa, se vê dividida entre seguir seu sonho de ir para a faculdade e se casar com alguém que ama (no caso, o pretendente era seu próprio professor). O blog “Psicologia em Séries” faz uma análise de seu dilema e de como quebrou o padrão de dedicar sua vida exclusivamente a satisfazer o marido e cuidar dos filhos ao fugir de seu casamento e escolher sua liberdade e seus estudos.

O aspecto interessante é que Prissy é irmã mais velha de Josie, uma das amigas de Anne, e que, após uma conversa entre todas sobre o assunto, a garota ganhou uma nova perspectiva sobre suas escolhas. Na mesma linha, Diana é outra que teve toda a vida planejada pelos pais. Seu futuro é ingressar em uma escola de etiqueta em Paris para aprender a ser uma boa esposa, indo contra sua vontade pessoal de continuar estudando como seus amigos.

Anne é uma mulher moderna e não entende o porquê de tanta disparidade entre os sexos. A dúvida é válida já que, mesmo com algumas conquistas como o direito ao voto e o de trabalhar, as mulheres ainda são minoria representada na sociedade atual. As lutas do seriado se entrelaçam e de ícone feminista Anne vai direto para a liderança de um protesto com seus colegas de classe contra a censura e a favor da liberdade de imprensa do jornal da escola.

A prensa foi um presente para os estudantes e responsável por dar voz e visibilidade aos jovens. Em um de seus artigos, Anne, motivada pela história de sua amiga Josie ter sido destratada pelo namorado, expõe a questão do machismo e do modo como as garotas são tratadas pela sociedade. Após a publicação ela é atacada, expulsa do jornal e reprimida, inclusive, pelas próprias mulheres. A prefeitura passa, então, a “sugerir” quais assuntos seriam permitidos para serem abordados no periódico.

O episódio gerou revolta e incitou o movimento dos alunos. Eles invadem uma reunião do conselho da prefeitura, composto em sua maioria de homens e apenas uma mulher, porém silenciada por suas figuras, com panos tampando as bocas e uma faixa escrito “liberdade de expressão é um direito humano”. Membros da cidade entram no local no momento exato em que um dos anciões do conselho tenta tomar o cartaz e é fotografado tentando calar a voz dos jovens.

Estudantes de Avonlea fazem protesto a favor da liberdade de expressão.
Foto: Reprodução/Netflix

A denúncia na série espelha a realidade ao passo em que diversos protestos encabeçados por estudantes tiveram força e destaque na sociedade, principalmente quando se trata de lutar contra a censura e a favor de um sistema educacional de qualidade. No Brasil, por exemplo, vale citar o fenômeno ocorrido em 2015, referente à ocupação de escolas públicas paulistas por estudantes contra a reestruturação da educação estadual. O documentário “Lute como uma menina” (2016) retrata a liderança feminina do movimento, servindo de paralelo com a narrativa de Anne e seus amigos em busca de direitos básicos.

O cancelamento da série foi justificado sob o pretexto financeiro de que a audiência e o retorno não eram satisfatórios para sua continuidade. Contudo, Anne With An E está na lista das séries mais assistidas da história da Netflix, o que torna o argumento inconsistente. A movimentação do público em prol de sua renovação já dura quase um ano e reflete a satisfação e vontade das pessoas de acompanharem histórias verdadeiras e socialmente relevantes.

Julia Portilho é monitora do CCM e graduanda em Jornalismo pela PUC Minas.

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