Análise: Apocalypse Now Redux (2001) – Fantasmas da guerra inútil

Por: Bernardo Carvalho Marujo

Os filmes de Martin Sheen - Atualidade - SAPO Mag

Em 1979, após três anos de produção e 238 dias de gravação nas Filipinas, em uma jornada que quase terminou em tragédia, Francis Ford Coppola lançaria um dos filmes de guerra mais aclamados e memoráveis de todos os tempos, Apocalypse Now. Em 2001, embalado pelo sucesso de outros cortes de diretores — e também pelo desejo de arrecadar dinheiro — Coppola lançou Redux, uma versão com cerca de 50 minutos de conteúdo adicional, expandindo uma experiência que ele acreditava ser curta demais.

Em 2019, após críticas de que Redux era longo demais — e ainda insatisfeito com a versão de 79 — Coppola lançou o Final Cut, uma combinação das duas versões anteriores, com cerca de 10 minutos a menos que o Redux. E, embora ainda haja debate sobre qual versão é superior, Redux é certamente a que mais se aprofunda nos temas do filme e explora com mais ousadia o manto de surrealismo que cobre a obra-prima do diretor.

O filme, baseado no livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad, transpõe a narrativa da  República Federativa do Congo para a Guerra do Vietnã, onde o capitão Willard (Martin Sheen) é enviado ao Camboja para encontrar o coronel Kurtz (Marlon Brando), que teria enlouquecido. Apesar das mudanças de cenário, permanecem os personagens, as barbaridades e os temas de perda de identidade e razão diante dos horrores humanos.

Embora não tenha rendido a Coppola um Oscar, como O Poderoso Chefão – Parte II, Apocalypse Now se tornou um clássico absoluto, tanto na filmografia do diretor quanto no gênero de guerra. É frequentemente citado ao lado de Platoon, Nascido para Matar e O Resgate do Soldado Ryan. Mas o curioso, ao compará-lo com esses filmes, é o quanto ele parece diferente. Enquanto a maioria tenta retratar o conflito com alguma verossimilhança — mesmo que exagerada ou romantizada — Apocalypse Now se volta mais aos sentimentos. Mergulha nos pântanos da loucura e dá espaço a personagens maiores que a vida, verdadeiros fantasmas do Vietnã.

Isso se revela logo no início, com Willard. Na abertura, ele está bêbado, deitado, imaginando fogo, helicópteros e violência. Incapaz de dormir, espera por uma missão que lhe devolva algum propósito. Tornou-se um fantasma, mentalmente preso à guerra e reduzido a uma ferramenta à espera de ordens. Embora o acompanhemos durante quase todo o filme, aprendemos pouco sobre ele como pessoa. Vemos mortes ao seu redor, ouvimos seus monólogos e até torcemos por ele, mas no fundo, Willard não é um indivíduo. É um soldado entorpecido, cumprindo ordens em meio ao horror. Sua única motivação real é aquela que antes era um comando e virou obsessão: encontrar o coronel Kurtz e eliminá-lo com extremo preconceito.

É fascinante que nossa introdução ao vilão seja a descrição de um sonho. Não vemos suas atrocidades nem ouvimos de imediato seus discursos sobre a guerra. Não há apresentação concreta — apenas um breve relato de quem ele era e um sonho. Um caramujo sobre uma lâmina, sofrendo, mas sobrevivendo. Essa imagem define tanto Kurtz, o soldado que supostamente enlouqueceu diante do horror, quanto os próprios EUA, que, ao invadirem um território em grande parte desconhecido, travaram uma guerra cruel e sem sentido. Tudo para demonstrar força, sacrificando jovens por uma democracia inexistente e uma ameaça artificial.

O maior medo de Kurtz é que a guerra continue — e ele também. Nada a ganhar, nada a perder. Apenas existir como um fantasma. É essa consciência perturbadora de Kurtz que atrai Willard, e também o público. Em certa medida, os dois concordam. Uma das últimas falas sugere que aquela foi, enfim, sua última missão, e que Kurtz recebeu o que desejava: uma saída, pela morte. Ambos deixam para trás o pesadelo em que viviam.

Reforçando a ideia de fantasmas e sonhos vividos, temos a mais polêmica adição de Apocalypse Now: a sequência da plantação francesa. No meio do filme, bem no ponto de virada para o segundo ato, Willard e seus companheiros encontram um grupo de franceses cercado pela névoa, vivendo isolados no sul da Ásia. O filme vinha construindo uma tensão crescente, mas, de repente, pausa por cerca de 20 minutos para refletir sobre o passado colonial francês, o propósito da guerra e um dos pseudo-romances mais estranhos do cinema. Provavelmente foi cortada da versão original por isso: à primeira vista, quebra o ritmo e parece aleatória — críticas comuns entre espectadores — mas numa análise mais cuidadosa, a cena enriquece não só os temas, como também a atmosfera surreal. Os franceses vivendo ali há anos, acreditam ter direito àquela terra. São estoicos, imobilizados pela guerra — seja por orgulho, seja por dissociação de sua pátria. Parados no tempo, dispostos a morrer por um passado. Caramujos imóveis sobre a lâmina, ainda sobrevivendo. Eles são as presenças mais fantasmagóricas de todo o filme, literalmente aparecendo e desaparecendo do nada, e constroem ainda mais esse sonho tornado pesadelo, incansável e interminável, onde os mais sortudos são os que escapam pela morte.

Sobreviver é o maior terror de Apocalypse Now — não morrer. A subvida causada pelo trauma, pela dor e pela guerra. Um retrato da brutalidade de uma campanha profundamente desnecessária, que nos faz desejar, diante do horror, a aniquilação.

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