POR: Júlia Coutinho
Aftersun, o longa de estreia da cineasta escocesa Charlotte Wells, é uma obra sobre memória, amadurecimento e amor. O filme conta a história de Sophie que, já adulta, relembra as férias que passou com seu pai na Turquia aos 11 anos, a partir das filmagens de uma velha câmera digital. Com essas lembranças fragmentadas e agora com uma visão madura da vida, ela obtém um entendimento mais completo sobre o homem que ele foi.
O jovem pai de Sophie, Calum, era amoroso e dedicado nas tarefas da paternidade, mas muito distante no âmbito emocional, uma consequência de seus problemas de saúde mental. A origem dessa luta está em seus traumas da infância, e foi agravada pelas dificuldades financeiras e pressões da vida adulta. O sofrimento de Calum o consumia tão intensamente, que ele era incapaz de escondê-lo da filha, apesar de seus enormes esforços. E ainda que muito perceptiva, a menina era nova demais para compreender as aflições do pai. Essa situação criou uma distância entre os dois que parecia intransponível aos olhos de Sophie, visto que, todas as vezes em que ela tentou abordar um tópico sensível, ele se afastou, na tentativa de poupá-la. A dupla é interpretada pela atriz mirim Frankie Corio, que impressiona em seu primeiro papel, e o ator Paul Mescal, que foi indicado ao Oscar por sua excelente performance.
Aftersun também usa de um elemento recorrente da narrativa para ressaltar as discrepâncias entre os personagens: a água. Essas férias foram um momento em que Sophie estava desabrochando e caminhando rumo à adolescência. Por isso, ela é comparada ao belo oceano azul, que assim como o seu futuro, era um verdadeiro mar de possibilidades. Já Calum é o mar revolto, como o oceano de emoções, profundo e incontrolável, no qual ele tentava não se afogar todos os dias de sua vida.
Agora, com a mesma idade que o pai tinha nessa época, ela consegue vê-lo como a pessoa que ele era e vê-se na mesma posição que ele: com sua própria família, grandes responsabilidades e traumas não superados. Porém, não existe qualquer possibilidade de aproximação entre eles, pois Calum não está mais na vida da filha. Então, Sophie busca por ele nessas lembranças, que são a única fonte para saciar o desejo que ela tem de encontrá-lo, e obter alguma conclusão em relação ao passado.
Wells aborda as complexidades desse relacionamento com muito cuidado e sensibilidade, criando um filme que emociona até nos pequenos detalhes, tão intimista que nós, espectadores, parecemos fazer parte da vida dos dois. O roteiro nos imerge na experiência nostálgica de Sophie, contando com uma edição que aproxima o presente do passado. Por meio de cenas fragmentadas, gravadas em câmera digital, são representados os flashes de memória da protagonista, às vezes mais curtos, às vezes mais longos, em uma linha do tempo que fica mais clara à medida que ela avança nessa viagem.
As nuances da história são representadas mais pelas imagens do que pelas palavras, resultando em cenas deslumbrantes, num ritmo que acompanha a calmaria dos longos dias de verão. O filme é ficcional, mas os temas abordados têm algum grau de inspiração na vida pessoal da diretora. Segundo ela, o pontapé inicial para a criação dessa obra foram as férias que ela passou com seu pai na Turquia, também aos 11 anos.
Nas cenas finais, todas as qualidades do longa culminam no ponto pivotal da narrativa: Sophie e Calum estão em uma festa no último dia da viagem e o pai chama a filha para dançar. Relutantemente ela aceita e os dois são embalados pela
música Under Pressure, de David Bowie e Queen. Essa cena é entrecortada com os devaneios da mente da Sophie adulta: ela está dentro de uma rave e avista o pai dançando na multidão. Ela se aproxima e o abraça, mas eles se separam e Calum se perde na escuridão.
A canção é a representação perfeita do que os dois estão vivendo, do amor que os une entrando em conflito com as tensões que os separam. O simbolismo dessa sequência não deixa dúvidas quanto a separação de Calum e da filha. Não fica claro o que aconteceu, apesar de sermos levados a acreditar que ele tenha falecido. Só sabemos, que esta foi a última dança dos dois.
A tragicidade desse final nos serve de lembrete para um aspecto das relações humanas que é extremamente difícil de lidar: o fato de que nem mesmo um amor incondicional resolve todos os problemas, e em interações entre pais e filhos, isso se torna ainda mais evidente. Mas, sem um amor incondicional, a vida é incompleta. Sendo assim, o melhor que podemos fazer um pelo outro é tentar, assim como Sophie e seu amado pai, Calum.
Ótimo texto! Me fez ter uma visão muito além da minha interpretação do filme, perfeito.
Adorei o filme! Muito sensível e comovente. Me fez refletir na importância da construção da relação pais/filhos à partir desse somatório de momentos significativos vividos em conjunto. O final do filme (não tão óbvio pra mim, o que me levou a chegar até aqui), me trouxe um mix de sentimentos, indo desde à tristeza (pela despedida dos dois) e angústia em imaginar a dor da filha (por toda a vida que não teve como ser compartilhada com o pai, após aquele verão). Um belíssimo filme!
Uau! Amei o texto!! Interpretação incrível. Amei o filme, emocionante demais.