Por Nicole Antunes de Souza Oliveira.
O curta-metragem República, de Grace Passô, tem como cenário o Brasil de 2020 enfrentando a terrível pandemia do coronavírus. Um detalhe cuidadosamente colocado na trama é a confusão e a desorganização do ambiente político que o país vem enfrentando por longos anos. No enredo, o Brasil não é nada além de uma imaginação, notícia que a protagonista, vivida pela própria Passô, recebe com alívio – o que reflete a atual situação, de desalento, em que vivemos. O atual Presidente da República constantemente idealiza e teoriza o que, para ele, seria o Brasil de verdade. Com uma crítica sútil, porém sólida, a artista levanta uma discussão recorrente por entre os brasileiros: como é um Brasil verdadeiro?
A obra, a princípio, possui um único cenário: o apartamento da personagem principal. É nele que recebemos a notícia terrível da inexistência do Brasil, que leva Passô a esboçar os mais escondidos dos sentimentos. Apontar o Brasil como fruto de uma imaginação, nada além de irreal, choca também o espectador. A reação de gritar e chorar condiz com uma reação natural que qualquer brasileiro teria. São longos anos de descanso do governo com a população para, no final, não ser nada além de um sonho – ou pesadelo.
Há, posteriormente, uma segunda quebra de expectativa, quando repentinamente a personagem começa a dialogar com a diretora de fotografia de seu trabalho. Quando ocorre essa interrupção diegética, o espectador é novamente desafiado. Começamos então, a questionar, em outros níveis, o estatuto de veracidade do próprio filme, que passa para o público a mesma sensação que a personagem enfrentava. Afinal, Brasil é ou não é real?
Logo em seguida, o público é apresentado a mais uma ruptura narrativa. O apartamento de Passô recebe uma visita inusitada de um morador de rua – interpretado, novamente, pela própria atriz –, que reage em completo choque e incredulidade à notícia do Brasil não se passar de um sonho. Novamente ocorre a confusão entre o que é real e o que é imaginação, e duvidamos de quais momentos anteriores fazem parte ou não da realidade da trama, se estamos de fato em um Brasil fictício ou no real. Essa terceira quebra de expectativa realça a sensação de estarmos, na realidade, diante de um documentário.
A paisagem sonora contribui com a confusão causada pelas três quebras de expectativas narrativas. Para além de sua temática, o curta chama atenção nos seus cuidados com os sons ambientes. Não há muitos personagens e, como consequência, não há muitas falas. A princípio temos Passô em um conversa com sua mãe, uma personagem invisível e inaudível. Pouco depois, somos bombardeados pelos sons ambientes de uma grande cidade: não há trégua para os sentidos.
A crítica por trás desta curta-metragem foi cuidadosamente construída. Os problemas que o Brasil enfrenta, um país rico em beleza natural e cultural, não são recentes. Entretanto, o descaso do governo com a população, evidenciado pela crise sanitária que coronavírus, assombra qualquer um disposto a perceber o que se passa além do próprio conforto. Mesmo com o distanciamento social, o vírus causou números catastróficos de morte. Com as atitudes negligentes do atual governo, a situação apenas piorou. Se em quase todos os governos do mundo buscava-se enfrentar a situação coletivamente, incentivando os cuidados pessoais com a higienização e um controle ainda maior na pandemia, isso não ocorreu no Brasil. A notícia de que tudo não se passou de um terrível sonho, é na verdade um desejo para muitos. O cenário em que o país se encontra neste pós-pandemia é desolador e desesperançoso.
Vivemos um momento instável e insensível, tanto economicamente, quanto politicamente. Não é exagero dizer que o Brasil já vem sofrendo na mão do governo, independentemente de seu partido, por alguns anos. O infeliz, porém, é a falta do cuidado com as próprias terras e o próprio povo que mais assombra a população. O governo Bolsonaro é constantemente atacado e bombardeado por críticas nacionais, e internacionais. A Amazônia, foco dos principais debates do nosso tempo, vem sofrendo os mais brutais desmatamentos nos últimos vinte anos. E essa dura realidade é escamoteada: a conversação pública é cada vez mais desestimulada. Wagner Moura, diretor e ator brasileiro, criticou o atual governo no âmbito cultural, reafirmando que há, infelizmente, uma censura ainda nos tempos atuais sobre o que deve chegar, ou não, aos cinemas.
Pensando então que República veio as telas como uma crítica ao nosso atual cenário, é necessário realçar sua importância. Sua construção e sua montagem foram cuidadosamente feitos para que, de forma impressionante, o espectador pudesse experimentar os mesmo sentimento confusos de turbulentos da personagem. Grace Passô novamente presenteou o público com sua atuação e sua criatividade.