A liberdade é Azul: A Persistência da Memória

Por: Victor Hugo

O diretor Krzysztof Kieślowski inicia a Trilogia das Cores, inspirado pelos ideais da Revolução Francesa – liberdade (azul), igualdade (branco) e fraternidade (vermelho), trabalhando-os em uma ótica intimista e nada previsível – algo semelhante à subversão que ele fez no Dekalog (1989), série livremente inspirada nos dez mandamentos.

Em A Liberdade É Azul, de 1993, Juliette Binoche interpreta Julie, protagonista que perdeu o marido e a filha em um trágico acidente de carro. Julie se vê presa em uma liberdade dolorosa imposta a ela, uma “liberdade abstrata”, como chamada pelo filosófico Zižek em sua análise sobre o filme. O azul é claramente associado à tristeza, à melancolia, mas mais do que usá-lo como um manual de psicologia das cores, a cor se manifesta visualmente de várias formas: no lustre, nos reflexos, na piscina e em objetos que exteriorizam o estado interior da personagem. A cor azul traz consigo memórias e sentimentos.

O filme é sobre luto, perda – e sobre como a memória aprisiona o ser humano – semelhante aos sentimentos, as lembranças podem machucar. Julie nega, tenta esquecer, foge, deseja se anestesiar de suas memórias, seu desejo é paralelo à situação de sua mãe que vive em um asilo desmemoriada. Entretanto, as memórias persistem e ela precisa enfrentar.

A trilha, assim como o visual, é o ponto forte do filme. A música atinge o ser humano de uma forma íntima. Durante todo o filme, a trilha sonora não só colabora para a narrativa da história, ela se manifesta de forma ativa, viva. Assim como o azul é tangível, o cineasta materializa a música, filmando detalhadamente, quase entrando das notas musicais de uma partitura no papel ou nas diferentes intensidades que atravessam a película. Tanto Julie quanto o falecido marido trabalhavam com música erudita, e após a tragédia, Julie joga fora algumas partituras do marido – o desejo de se livrar de suas memórias. Porém, mais adiante, ela retornará a uma partitura que não jogou fora (mais uma vez a presença  da persistência da memória). A própria personagem reflete sobre o fato. Zižek em seu livro afirma:

que sua vida cotidiana é constantemente ameaçada, assombrada pelas intrusões (sobretudo musicais) do passado que queria apagar. Sua luta contra a música é a luta contra o passado; por consequência, o sinal principal da reconciliação com o passado é ter acabado a composição do falecido marido, reinserindo-se num contexto de vida musical (Slavoj Žižek, p. 88).

Em diversos momentos do filme, a montagem unifica o visual com a música, estabelecendo uma relação entre o mundo interior da personagem e o mundo exterior. A cena da piscina é um exemplo desta relação de extimidade. Ao sair d’água, a música acontece de forma intensa – nós ouvimos o som que está dentro de Julie, ela volta para debaixo d’água, para escapar, a música diminui. Julie termina em posição semelhante a um feto no útero, cercada por água. Mais adiante retomarei sobre essa relação de unificação presente no filme.

Para expor o íntimo da personagem, Krzysztof Kieślowski foca em planos detalhes de Julie e o mundo ao seu redor.

Nos momentos iniciais do filme, é destacado o plano do olho da protagonista, justamente quando ela está recebendo a notícia do falecimento de seu marido e sua filha. O olho é a janela da alma. O diretor polonês, com uma linguagem poética, avisa: diante da triste notícia e diante do olho da personagem, entraremos no seu interior, observaremos sua alma. A maneira como Julie vê o mundo também se altera, é claro. Podemos perceber quando o cineasta foca com planos detalhes os objetos e situações ao redor de Julie, o que também nos diz sobre a importância de observarmos as pequenas partes da vida, em olharmos com sensibilidade para os acontecimentos e para as coisas que nos cercam. Tudo importa, e as pequenas partes que fazem o todo. Um belíssimo exemplo é a cena de Julie sentada em frente a uma rua onde uma velhinha se esforça para jogar fora uma garrafa na lixeira. Caso o leitor não tenha visto o filme, preste atenção nesta cena e no que ela representa dentro deste e dos outros filmes. Kieślowski estabelece um paralelo temático que se repete nos filmes seguintes; A Igualdade É Branca e A Fraternidade É Vermelha, com significados diferentes devido o contexto das histórias. Em A Liberdade É Azul, Julie está de olhos fechados, ausente, o que mostra sua inércia para o mundo. Desde o início do filme, uma tela preta engole Julie. Olhos se fechando em uma tentativa para não ver o mundo? Escurecer o passado e desejo de estar ausente no presente? O efeito preto funciona como uma barreira entre o interior e o exterior de Julie.

Julie retorna à música e faz de sua tristeza um ato de criação, reconciliando-se com suas memórias, alcançando uma liberdade simbólica, diferente do início, não imposta de forma abrupta a ela. A música é composta por Zbigniew Preisner, que assina a trilha de vários trabalhos do diretor. Blue termina com uma sequência de Julie e outros personagens que passaram por sua vida e, consequentemente, pelo filme. É nesta parte que – Song for the Unification of Europe – torna-se viva. Os personagens são unificados pela canção e pelo (re)nascimento concreto e simbólico. Na cinematografia do cineasta – tudo é uno, pessoas, acontecimentos e natureza, e tudo está unido por uma teologia materialista, citando novamente o filósofo Slavoj Zižek.

Referências
ZIZEK, SLAVOJ. Lacriaererum. Ensaios sobre cinema moderno. Boitempo Editorial. 2018
CAMPOS, Leonardo. Crítica A Liberdade É Azul. Plano Crítico, 2015. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-a-liberdade-e-azul/

Victor Hugo é estudante de Cinema e Audiovisual no 3 período.

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