Por Marina Marques da Silva
O que leva uma mulher a sonhar obsessivamente com o seu príncipe encantado?
Elaine Parks (Samantha Robinson) é uma jovem e bela viúva, que foi abandonada pelo seu marido Jerry (Stephen Wozniak), morto misteriosamente quando começava a se preparar para se casar com outra mulher. Para sanar as dores causadas pelo ex-marido, Elaine entra em um culto, se torna uma bruxa e aprende a buscar o seu próprio poder. Ela tenta se tornar uma mulher mais livre em relação à própria sexualidade, ao mesmo tempo em que ambiciona usar seus novos poderes para atrair o par ideal. Combinando a magia sexual aprendida em sua nova religião com feitiços de amor, ela pretende se tornar a mulher perfeita aos olhos dos homens. Entretanto, a personagem passa a seguir à risca os desejos dos novos parceiros, já que internalizou que somente assim conseguiria o “amor perfeito e a confiança perfeita” que sonhava em ter, mas nunca obtivera com Jerry ou com outros homens em sua vida.
Em certo momento de The Love Witch (Anna Biller, 2016), Elaine diz: “Eu sou a bruxa do amor! Eu sou a sua fantasia perfeita!”. Ao longo do filme, entendemos que essa idealização é, na verdade, um trauma que a personagem carrega desde sua infância. O próprio pai a tratava de maneira abusiva, insultando e maltratando-a por não corresponder ao ideal de perfeição que a sociedade espera de uma mulher. O quadro se agrava após Elaine ser abandonada por Jerry, que também a tratava de forma psicologicamente abusiva. Logo conseguimos entender, como explicita em uma entrevista Anna Biller, diretora e roteirista do filme, que Elaine é um “monstro estilo Frankenstein”, fruto da sociedade patriarcal em que vivemos. Sua busca frenética e alienada pelo amor e sua capacidade de fazer qualquer coisa para conseguir o que quer dos homens beiram à tragicidade, fazendo-nos sentir pena da protagonista. Assim a diretora faz críticas certeiras à maneira misógina como o amor e os relacionamentos (pelo menos do ponto de vista heterossexual) são encarados.
Ela, no entanto, não critica apenas o efeito negativo da misoginia sobre as mulheres, mas também a própria masculinidade toxica que leva os homens a se tornarem brutos, a ignorar e reprimir seus sentimentos e sua sensibilidade – sob o risco de perderem a estima e respeito. Homens que não se encaixam nesses padrões acabam se tornando vítimas da estigmatização e da humilhação por parte da sociedade, que os taxariam, homofobicamente, de “maricas” ou “frouxos”; eles não se comportariam como homens de verdade.
Nem mesmo os homens aparentemente mais desconstruídos, popularmente chamados de “esquerdomachos”, escapam da crítica de Biller. Nas interações entre Elaine e Gahan (Jared Sanford), fica claro que o bruxo sacerdote, que apresenta um discurso feminista, de empoderamento, e que defende a liberdade sexual das mulheres, parece se aproveitar desse mesmo discurso para abusar sexualmente das mulheres nos rituais de iniciação do culto.
Retornemos, então, à obsessão de Elaine, o foco da narrativa. Na verdade, parte da carga crítica da obra vem da ironia que emerge quando as táticas de conquista da protagonista dão errado; na verdade, elas funcionam tão bem, que o tiro sai pela culatra. Elaine deixa os homens literalmente ensandecidos de amor. Porém, eles não sabem lidar com os próprios sentimentos, não estão acostumados a encararem de frente emoções tão profundas. Pelo contrário, estão acostumados a reprimir afetos e, por isso, acabam morrendo de amor quando Elaine estremece seus bloqueios emocionais.
O primeiro deles é o professor de literatura da universidade local, Wayne (Jeffrey Vicent Parise). Trata-se de um homem culto, que ama poesia, dono de uma sensibilidade latente. Por outro lado, Wayne é um mulherengo inveterado, que diz “amar as mulheres”, mas não consegue estabelecer um relacionamento duradouro com nenhuma. Nas falas do personagem, ele revela que nenhuma mulher se enquadra nas suas exigências: “todas as mulheres por quem me atraio [fisicamente] nunca são inteligentes o suficiente, e todas as mulheres inteligentes não me fazem sentir [fisicamente] atraído”. Já conformado com o fato de que ele nunca encontraria a mulher ideal, ele se dizia um lobo solitário. Quando Elaine entra em sua vida, Wayne não consegue entender ou lidar com a intensidade de seus sentimentos, e acaba se tornando um namorado grudento, codependente, exigindo que ela sempre estivesse ao seu dispor – outra ironia: inicialmente, Wayne comenta com Elaine que ela era diferente das outras mulheres por, justamente, não exigir promessas de comprometimento e apego. Por fim, sem conseguir manejar a relação, Wayne tem um ataque cardíaco fatal.
O próximo homem a se envolver com Elaine é Richard (Robert Seeley), marido de Trish, uma das pouquíssimas amigas de Elaine. Richard é um homem doce, romântico e atencioso, que não parece despejar sobre Trish as expectativas machistas sobre como a mulher perfeita deve ser e se portar. Entretanto, Richard é pressionado a se encaixar cada vez mais no estereótipo do “macho alfa”, rejeitado por Trish. Então quando Elaine se propõe a realizar todas as suas fantasias masculinistas, ele se apaixona loucamente por ela e se torna obsessivo, “exatamente como uma mulher, chorando por tudo”. Quando Elaine termina o relacionamento com ele, em um ato de desespero, Richard tira sua própria vida.
O terceiro e último homem que atravessa a cruzada de Elaine é Griff Meadows (Gian Keys). Griff é o sargento responsável por investigar as mortes em torno da protagonista. Quando eles se conhecem, Elaine comenta que tinha a sensação de já tê-lo visto antes, impressão que ele retribui. Logo depois, ela explica que o viu em uma tiragem da “cruz celta”, um método do Tarot, que o aponta como seu destino. Griff seria o homem com quem Elaine se casaria. A referência ao Tarot já dá pistas sobre o desenrolar da trama: Griff realmente se encaixa no arquétipo do cavaleiro de paus revelado na tiragem: é bonito, porém se concentra apenas na aparência e nas conquistas sexuais; de sua língua pinga leite e mel, porém diz apenas o que é conveniente; conquista com um sorriso, porém é insensível e não pensa nos outros; gera excitação, porém é superficial e evita assunto sérios e profundos. Essas características, na verdade partilhadas por muitos homens em uma sociedade machista, são ressaltadas na cena em que as personagens participam de uma cerimônia de casamento de mentira, performada em uma feira renascentista organizada por integrantes do culto de Elaine. Na ocasião, conseguimos escutar seus pensamentos: enquanto testemunhamos a paixão de Elaine, somos confrontados com as contradições de Griff. Ele age como se estivesse apaixonado, mas a ideia do compromisso o apavora internamente. Griff teme se tornar fraco e que isso o leve a ser, consequentemente, menos viril. Também o escutamos pensar: “O ideal feminino só existe na mente do homem. Nenhuma mulher pode executar esse papel perfeitamente.”
Tal constatação não é nenhuma novidade, considerando as expectativas irrealistas e opressoras de subserviência que são depositadas nas mulheres há séculos, criadas por homens que não conseguem nem aceitar e nem se relacionar de uma forma humana e profunda com suas parceiras. Anna Biller explicita o paradoxo quando Griff, nos seus devaneios, sentencia: “Quanto mais você conhece uma mulher, menos você consegue sentir algo por ela.”
Com um visual de tirar o folego, o longa faz uma homenagem aos filmes de terror hollywoodianos dos 60 e 70 e, apesar de se passar em dias mais atuais, remete esteticamente – tanto na fotografia quanto na direção de arte – ao estilo da época. Todo o cenário e figurino foram cuidadosamente pensados para se encaixarem no estilo que Anna pretendia homenagear. Ainda, o filme foi filmado em película 35 mm e impresso a partir de um negativo original cortado, utilizando-se, também, da técnica tecnicolor.
Quando confrontada sobre possíveis aproximações de The Love Witch com o gênero exploitation, a diretora recusa acusações. Na sua visão, o explotation é um gênero erigido a partir do olhar masculino, voltado para um público masculino. Seus filmes, ao contrário, são feitos a partir da visão feminina para um público feminino. Ela almeja, sobretudo, ampliar o espaço de representação das mulheres no cinema. Esse parece ser o objetivo de The Love Witch, que traz essa força política de maneira sutil e cheia de ironia, sem subestimar a inteligência de suas expectadoras.
“Isso significa que eu tiro o que quero dos homens e não o contrário!” – Cena retirada de A Bruxa do Amor (tradução livre do título original)
Nome Original: The Love Witch
Direção: Anna Biller
Elenco: Samantha Robinson, Gian Keys, Laura Waddell, Jeffrey Vincent Parise, Jared Sanford
Gênero: Comédia, Terror, Suspense
Produtora: Anna Biller Productions
Distribuidora: Supo Mungam Films
Ano de Lançamento: 2016