Por Julia Andrade.
O curta A boneca e o silêncio, dirigido e roteirizado por Carol Rodrigues, cineasta brasileira, foi lançado em 2015 e retrata um momento delicado e dramático na vida de Marcela, uma jovem de 14 anos. A adolescente se encontra grávida do namorado, um rapaz que assim como ela, vive uma vida simples. O jovem casal está passando por um momento difícil, sem preparo psicológico para assumir as responsabilidades que envolvem ter um filho. Juntos, tem que decidir quais medidas tomarão em relação à gravidez: ter o filho ou realizar um aborto. Ainda que seja uma obra de ficção, não é possível deixar de associá-la a problemas sociais do Brasil.
O curta é sensível e trabalha a história de maneira crua, escancarando a realidade sobre as possíveis consequências de uma gravidez na adolescência e da falta de amparo familiar e social. Entre o silêncio cortante e o som diegético, surge uma atmosfera de tensão, preocupação e medo, ao longo de todo o filme. O espectador é obrigado a ficar fora de sua zona de conforto e não é permitido que relaxe nem por um segundo. Além disso, esses fatores levam quem assiste a focar nos corpos dos personagens, expressões e nos elementos visuais que ajudam a ilustrar o estilo de vida de Marcela, sua idade e personalidade.
Carol Rodrigues faz uso de recursos interessantes para construir a narrativa de seu filme. Entre eles, o uso de metáforas e a construção de uma narrativa não linear, através da qual o espectador observa o presente e o passado da vida de Marcela. Não obstante, a obra evita romantizar a situação, tratando o dilema vivido por Marcela de forma também realista. A diretora constrói cenas que emocionam e chocam o espectador, focando nos detalhes para reforçar a realidade dos acontecimentos. É o que acontece quando a protagonista se encontra na cozinha de sua casa, preparando uma refeição, enquanto parece adentrar um mundo apenas seu. A partir de seu olhar, centrado em um ponto fixo, é possível perceber que a personagem aparenta estar distante da realidade, emergida em estado de tensão e preocupação. Marcela espeta um garfo fortemente na carne crua que estava preparando, fazendo com que o sangue do alimento escorra por toda a sua roupa. A câmera passa de um plano médio que focava na personagem e sua expressão e adentra em um plano detalhe, filmando o sangue escorrendo. A forma como o líquido é filmado e o som forte dos pingos atingindo o chão constituem uma cena angustiante e evocativa do dilema enfrentado pela protagonista, que conheceremos a seguir.
A diretora, ao longo do filme, não deixa o espectador esquecer a idade de Marcela e reforça a inocência da menina. Para isso, Carol Rodrigues trabalha, por exemplo, com os seguintes elementos visuais: uma boneca de pano com a qual a personagem aparece dormindo abraçada; ou as roupas que compõe o figurino de Marcela, vestidos simples e uniforme escolar, recursos que enfatizam sua juventude. Além disso, outras estratégias narrativas são utilizadas ao longo do curta para evidenciar a imaturidade da personagem, como a construção do papel autoritário do pai da protagonista e as cenas que reconstituem sua infância, junto de sua mãe, que assume o papel de uma figura protetora nos momentos em que a garota aparece mais perdida e desamparada. A mãe de Marcela, aliás, é inserida na história de forma que o espectador perceba que ela existe apenas nas memórias da filha, aparecendo como um refúgio para a menina que está perdida e com medo.
O curta encerra demonstrando o quão dura pode ser a realidade de uma adolescente que passa por esse problema, sobretudo, social. Carol Rodrigues produz uma cena forte e pulsante, que coloca o espectador na frente do que pode ser o destino de muitas meninas grávidas. Marcela, desesperada e sem conseguir enxergar saídas práticas e efetivas para gravidez precoce, adentra sozinha um terreno baldio, sujo e abandonado. Ela deita sobre um pano fino e realiza um aborto em si mesma. Morta, a menina vai aparecer nos braços da mãe, de vestido vermelho e ensanguentada. Enfim diante da proteção materna, ela pode novamente ser a criança que é e descansar no colo de quem a protege, ainda que, para isso, tenha perdido a vida.
Dessa forma, a carne e o sangue da cena inicial da obra vinculam-se ao ato final do aborto; é possível perceber que aquele pedaço de carne representaria Marcela, cuja humanidade é esvaziada pela falta de amparo social, assim como o sangue seria consequência da sua tentativa de abortar. O gesto da diretora, que toma um pedaço de carne ensanguentado como representativo da condição precarizada protagonista, é inteligente e tocante. Um alerta sobre a necessidade de olhar com mais empatia para mulheres que estejam nesta situação.
Carol Rodrigues produziu uma obra que flerta com a realidade. Sem medo, construiu um cinema político, demonstrando como pode ser difícil, desesperador e destruidor adolescentes terem que conviver com a gravidez prematura, colocando em evidência a violência que o desamparo social produz sobre a vida dessas jovens, sem nenhum tipo de ajuda psicológica vinda de um profissional ou cuidado da família. As jovens optam por medidas que acabam tendo consequências terríveis, inclusive a morte.
Julia Andrade é monitora do CCM e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.