Clube da Luta: Comprar, possuir, repetir

Por Gustavo Prado

 

 

 

Baseado no romance publicado por Chuck Palahniuk em 1996, Clube da Luta (1999) traz uma análise ambivalente: se por um lado a obra original foi publicada há quase trinta anos e, portanto, critica a sociedade de seu tempo, ela também se faz pertinente, atual. O mundo avança a passos largos, mas alguns dilemas insistem em permanecer enraizados. A adaptação dos cinemas, dirigida por David Fincher, trouxe camadas que, por motivos sensoriais, o livro não pôde passar por completo. A fotografia fria, estéril, quase monocromática, possibilitou o público sentir visualmente a atmosfera decadente do universo retratado: o mundo em que vivemos. Ademais, a obra audiovisual foi muito bem recebida por Palahniuk.

A trama acompanha um narrador sem nome (Edward Norton) que tem uma rotina comum, sem grandes problemas, mas enfrenta insônia persistente. Ele tem um bom emprego em uma montadora de automóveis, um salário que o permite ter uma moradia decente e nenhuma crise financeira ou dívida para tirar seu sono. Na verdade, é justamente a ausência de dilemas ou um propósito que o fazem não dormir a noite. Suas roupas sociais sem cor, sempre bem passadas, a fala monótona e ausente de julgamentos. A vida pacata e carente de sentido, aliada com questões mal resolvidas na infância, o tornaram um exímio consumista. Em uma época onde ainda não haviam mídias sociais, a publicidade era feita por meios tradicionais  revistas, outdoors, televisão, paradas de ônibus, etc., e é daí que o protagonista tira seu sentido para existir.

A cidade onde o filme se passa, também não especificada, é tão fria e sem vida quanto seus personagens, o que é intencional. O ambiente urbanizado é escuro mesmo durante o dia, dessaturado, como se ali o sol sempre se escondesse atrás das nuvens. A única coisa que dá cor à paisagem são os anúncios de marcas que estampam as fachadas e edifícios. A trilha sonora, composta pela dupla The Dust Brothers, conduz toda a experiência e ajuda a reforçar essa sensação de decadência. O som varia entre rock indie com riffs de guitarra “sujos” a músicas que remetem a lojas de conveniência, dando contraste entre o conforto e os malefícios invisíveis da vida urbana.

A crítica central do filme é o consumo exacerbado de produtos e marcas e a dificuldade para um sujeito se reconhecer enquanto indivíduo quando tudo parece artificial, montado. Indústrias estudam qual a melhor fonte tipográfica e padrão de cores para prender sua atenção e aumentar as chances de efetuar uma venda, ítens sendo ofertados a preços muito acima do custo de produção somente porque seu fabricante tem os meios necessários para fazer o público atribuir valor à marca. Tudo isso permanece atual e maçante o suficiente para olharmos para trás e tentar traçar como começou. A produção é um escárnio total com esse modelo de sociedade.

Outra crítica, esta talvez seja um pouco mais sutil e alinhada ao senso de identidade e pertencimento, é à masculinidade. Desde o início, somos apresentados a questões como câncer de testículo e sensação de vulnerabilidade e paternidade. O narrador comenta que seu pai deixou sua família quando ele tinha seis anos. Em dado momento, ele passa a frequentar grupos de apoio, e um deles era destinado a homens que perderam seus órgãos reprodutores devido ao câncer. Uma frase emblemática soltada em um dos encontros é “ainda somos homens”. Um dos personagens, desabafando para os demais presentes, conta que planejava ter filhos com sua ex esposa, mas, após o diagnóstico, o casamento acabou e ela estava com um novo marido, deixando implícito que ele havia perdido sua função no casamento ao não poder mais deixar descendentes. Talvez o roteiro não necessariamente alegue que os homens tendem a associar a paternidade em si com masculinidade, mas sim a capacidade e o potencial reprodutivo, o que seria uma conclusão mais sensata.

E sobre este tema, um personagem tem um papel importante. Tyler Durden (Brad Pitt) é o extremo oposto do narrador: usa peças de roupas extravagantes, mas com aparência de serem de segunda mão; veste cores saturadas e vivas; vive de maneira desapegada de bens materiais e mora em uma casa abandonada. O protagonista começa uma relação de amizade com Tyler, contudo, com o passar do tempo, parece que ele começa a enxergá-lo como uma figura paterna, ainda que ambos tenham a mesma idade. O narrador anônimo de fato carecia de um pai, alguém para dizê-lo como o mundo funciona e como proceder. Tyler cumpre esse papel. Ao menos por sua ótica, a paternidade era, sim, um problema. Porém, a questão era exercer a função de filho de alguém, não o contrário.

Existe outro aspecto da masculinidade explorado aqui: lutas clandestinas. A dupla de amigos acaba montando uma espécie de torneio de lutas para homens que se sentem infelizes ou precisam colocar para fora emoções fortes. Nada de dinheiro envolvido. O objetivo ali era simplesmente exercer uma atividade física — ainda que violenta — para se sentir vivo, másculo, com propósito, pertencente a um grupo seleto. A empreitada deu tão certo que acabou escalando para algo muito maior depois. Fica claro como o roteiro explicita o fato de que a violência física muitas vezes é associada quase a um valor masculino. Se impor, parecer mais forte, destruir aquilo que seu inimigo representa, subjugá-lo. A vida em sociedade os fez perder o contato com todo esse lado “animalesco” da natureza humana; uma face que só era acessada por meio das lutas. Não havia nenhum oponente a superar em suas rotinas diárias. Essa reflexão é muito importante, pois leva a imaginar o que as pessoas podem ser capazes de fazer quando são privadas de certos estímulos intrínsecos ao ser humano para cair em uma rotina cômoda e atrofiante. É evidente que a conclusão aqui não é a de que a violência deveria ser parte da vida humana, mas sim o exercício de funções que vão além da rotina comum, como, por exemplo, a prática de esportes ou artes marciais; atividades que a vida moderna tirou do alcance de muitos.

Ainda existe mais uma camada que costuma passar despercebida por quem assistiu a este clássico cult. Se suspendermos por um instante a imersão no conteúdo mostrado durante o longa e fizermos uma metacrítica, Clube da Luta enquanto produto também é fruto do fenômeno que ele mesmo critica. Ora, o filme é uma produção com orçamento milionário, financiada e patrocinada por grandes nomes da indústria do consumo. Marcas como Starbucks e Volkswagen pagaram para ter seus produtos expostos como forma de divulgação.

David Fincher permitiu, propositalmente, que assim fosse. O que ocorreu foi o uso de exposição publicitária a serviço da crítica central apresentada, uma troca. Isso não significa que a obra não mereça ser apreciada enquanto arte, muito pelo contrário. Ter noção dessas contradições expande ainda mais a mensagem que a história quer passar. Nem mesmo a construção de uma crítica ao sistema vigente está livre da necessidade de fazer uso dos mesmos artifícios nela criticados.

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