Latim em Pó: Uma Jornada com Altos e Baixos

Por: Isabela França Prates

Introdução 

O livro Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português trata do longo processo de estruturação da Língua Portuguesa no Brasil. Ele se debruça sobre as influências linguísticas vindas de uma Europa anterior a Era Comum até um Brasil contemporâneo. Ao longo da narrativa, o autor também analisa ideias preconceituosas sobre o Português brasileiro como, por exemplo, a percepção de que a norma culta não é a única forma válida. Assim, usando História, citações e argumentação, o professor Caetano W. Galindo constrói um livro que busca mostrar quem o povo brasileiro é, a partir de um reconhecimento idiomático. 

Segundo o autor, sua obra tem intenção de “(…) fundamentalmente expor as etapas do trajeto de formação da língua que nós falamos todos os dias” (p. 23) e, não obstante, “Elencar (…) as diferentes tradições, culturas e povos que contribuíram para a formação do nosso idioma” (p. 24). Ademais, uma intenção que também pode ser percebida foi desmontar ideias retrógradas como a “(…) ideia de que ninguém ‘fala certo’ no Brasil.” (p. 26). 

A obra é composta por 227 páginas, contendo 19 capítulos e, também, as secções: “Agradecimentos” e “Leituras sugeridas”. Seus 10 primeiros capítulos têm enfoque na concepção do Português europeu, especialmente a partir do Latim. Os demais capítulos, discorrem sobre a formação linguística, ocorrida em função da construção de um “novo” português, o português brasileiro. 

 

Análise da obra 

Apesar da obra ter alto grau de informatividade, as origens de seus dados não são sempre informadas. O autor do livro “Latim em Pó” é um professor universitário, atuando também na pós-graduação e teve, inclusive, bolsa de produtividade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) que auxiliou na produção desse livro. Por isso, ele deveria citar as fontes usadas, em especial as muito específicas, como quando ele afirma que: “(…) no ápice do período da extração de ouro em Minas Gerais, a participação do elemento africano pode ter sido maior que 70%” (p. 180) ou no trecho: “(…) o português é a sexta língua com mais falantes nativos no mundo” (p. 204). Ao não citar as fontes, os dados perdem a credibilidade, sendo algo incoerente em um texto de um enunciador tão “academizado”. Dessa forma, o autor em questão poderia fazer como Bregman (2018), que apresenta uma lista de referências para cada capítulo de sua obra, mostrando onde pode-se encontrar os dados citados. 

Galindo, se propôs a escrever de forma compreensível aos seus enunciatários que são, em sua maioria, estudantes brasileiros ou estudiosos, que buscam aprender mais sobre a própria língua. Ou seja, pessoas que não têm, necessariamente, familiaridade com a área da linguística. Apesar de usar uma linguagem acessível e colocar conhecimentos prévios necessários ao entendimento da obra, isso não ocorre a todo momento. No capítulo “Kriol”, por exemplo, o autor coloca, sem muito cuidado, o termo “pidgin”, definindo-o da seguinte forma: “(…) língua “abreviada” é o que chamamos hoje de pidgin, termo surgido a partir de uma corruptela chinesa da palavra business.” (p. 133, grifo do autor). Além da segunda parte desse trecho não explicar quase nada ao leitor, essa definição imprecisa do termo deixa o capítulo confuso, uma vez que com essa definição o termo “língua crioula”, apresentando anteriormente, se confunde com o termo “pidgins”, parecendo ser a mesma coisa. Mas, na verdade, são conceitos que se diferenciam em muitos níveis. Esse fato pode desorientar os seus enunciatários, que não conhecem esses termos, tão específicos, do estudo das línguas. 

O livro “Latim em pó” anseia ser de fácil compreensão, e dessa forma gera uma repetição exacerbada. A intenção do autor nesse caso pode ter sido de reforçar os argumentos que ele apresenta, mas, na minha perspectiva de leitora, essa repetição não alcançou seu objetivo e contribuiu para que o livro fosse prolixo. O autor insiste em repetir informações das quais seus leitores já estão cientes. Embora seja difícil de se exemplificar, por ser uma leitura subjetiva, um exemplo de repetição está nos seguintes trechos do capítulo “Pretoguês”: a “(…) homogeneidade do português falado no Brasil se deve a esse movimento constante de massa dos escravizados” (p. 181) e “(…) é preciso reconhecer também que os primeiros e mais importantes desses movimentos foram determinados pela grande massa de falantes africanos” (p. 182). Não obstante, o autor em alguns momentos reconhece que está se repetindo como na passagem: “Ela [a noção de “aprendizagem imperfeita”] costuma entrar em uma cena na história das línguas toda vez que um contingente muito grande de adultos precisa aprender um idioma novo em circunstâncias, digamos, pouco favoráveis. Já falamos dela aqui” (p. 179, grifo nosso). 

Outro ponto a ser criticado é o fato de que, em alguns aspectos, a obra não é capaz manter coerência em sua explicação. Isso acontece, por exemplo, no capítulo “Os “árabes” e mais aspas”. Nesse capítulo, Galindo narra a invasão moura na Ibéria, e argumenta que os árabes não influenciaram o português somente por meio de uma lista de palavras, mas na cultura. No entanto, cita somente exemplos da influência árabe conectados à arquitetura e musicalidade espanhola, o que não condiz com sua tese de que a intervenção árabe foi além das palavras enumeradas no livro. Isso também se repete de forma parecida nos capítulos que retratam a atuação das línguas africanas e indígenas no Brasil. 

Contudo, Galindo acerta ao se posicionar de maneira contundente perante as inevitáveis mudanças sofridas nas línguas, que quase sempre são mal-recebidas. Na atualidade, assim como no passado, os debates sobre mudanças nas línguas são recorrentes. O autor ajuda os leitores a serem mais receptivos com as mudanças ao reiterar a compreensão de que mudanças são comuns e, em alguns casos, não temos como contê-las. Ele também é pertinente ao reconhecer um grupo que teme a mudança linguística e tenta evitá-la, assim ele afirma: “A mudança que acontece diante dos meus olhos é aquela que me agride” (p. 34). O autor propõe, de maneira sábia, que é preciso entender por qual razão essas mudanças incomodam tanto a alguns e porque algumas mudanças são vistas como ilegítimas, problematizando o conservadorismo perante a uma língua que está, inevitavelmente, em constante renascimento. Assim, ele combate a estratégia de manipulação usada em muitos contextos, inclusive pelas elites portuguesas no passado, que seria a estratégia do deferido, no qual o linguista estadunidense Noam Chomsky¹ explica como sendo a aceitação de algo que será doloroso, mas necessário. Ou seja, Galindo deixa claro que não podemos aceitar a ideia de que, por mais que seja doloroso, é preciso manter o “status-quo” da língua. Pelo contrário, em hipótese alguma o idioma. deve “doer” aos seus usuários, pois todo uso é válido e precisamos questionar quem discorda disso. 

O professor dá uma aula no livro “Latim em Pó” perante a ideia de que não existe uma variação linguística “mais correta” que outra. Afirmar isso é muito relevante nos dias de hoje, é um combate direto aos preconceitos linguísticos que ainda, infelizmente, se fazem presentes na sociedade. Ao colocar as variações como iguais, ele destrói o argumento preconceituoso de que certos grupos falam “errado”. O autor ainda declara: “(…) a norma escolar (a tal norma “culta”) é uma variedade do nosso idioma”. Mais adiante: “Mas ela não é intrinsecamente melhor que a nossa língua da rua, do sofá” (p. 190, grifo do autor). “A gramática (…) explica apenas como funciona uma dessas variedades (a norma culta). Não é a receita da única forma correta de nos expressar na língua” (p. 192). Assim, Galindo acerta em cuidar de uma questão que ainda é um problema na atualidade e conscientiza bem o leitor de forma a expandir sua compreensão da pluralidade do português brasileiro mostrando a beleza disso. 

Conclusão  

Em conclusão, o livro tem grande importância, mas é insuficiente em sua proposta. Como dito por Viotti da Costa² “Um povo sem memória é um povo sem história. Um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. “Latim em Pó” foi escrito justamente para evitar que o povo brasileiro se esqueça de seu passado linguístico. O livro é bem estruturado, ou seja, usa boas estratégias para realizar esse “passeio” pelo português, como empregar exemplos idiomáticos, contextos históricos e teorias da linguística. Não obstante, ele contribui no conhecimento acerca da nossa língua, até porque, como ele afirma “A língua portuguesa é a parte central da nossa definição” (p. 17), e mostra essa evolução aos poucos dando sentido a forma que o idioma foi moldado. Porém, a obra erra ao não citar suas fontes, dar explicações confusas sobre termos da área da linguística, exagerar nas repetições e não empregar coerência em algumas argumentações. Assim, se distancia, nesses aspectos, de suas intencionalidades originais. 

Portanto, mesmo com defeitos, esse livro continua sendo necessário para qualquer brasileiro que tenha interesse em entender as origens de sua língua materna. Além disso, é um texto que se dedica a transmitir informações que nós, como brasileiros, deveríamos ter aprendido na nossa formação e não apenas por curiosidade. Sendo assim, trata-se de uma leitura quase obrigatória para nós que temos pouco conhecimento da língua que usamos cotidianamente. 

NOTAS

¹Chomsky e as 10 Estratégias de manipulação midiática

²Emília Vio da Costa (1928-2017). Professora e historiadora. 

REFERÊNCIAS

GALINDO, Caetano W. Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

BREGMAN, RUTGER. Utopia para realistas: como construir um mundo melhor. Tradução de Leila Couceiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.

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