Por Rosana Soares e Gislene da Silva. O campo da crítica de mídia ocupa lugar central nos estudos de comunicação. Vem sendo assim, historicamente e, nos tempos atuais, com muito mais vigor. No entanto, muitas são as perguntas sobre crítica de mídia a reclamar por estudos e respostas. O que pode ser chamado de crítica de mídia? Onde ela se encontra? Quem a realiza? Quais seus objetos específicos? Como e por que criticar a mídia? As respostas, obviamente, não são simples. Em rápida mirada, poderíamos distinguir pelo menos três caminhos por onde começar: o da análise crítica daquilo que é difundido nas diferentes mídias, em diversos formatos e gêneros, numa abordagem de caráter mais acadêmico; o da crítica publicada na própria mídia, produzida por aqueles que são social e culturalmente reconhecidos como críticos; e o da crítica que circula de forma dispersa pela sociedade, como no caso dos receptores que se expressam em blogs e nas redes sociais sobre práticas e produtos midiáticos.
Poderíamos também interpelar as mídias por outros trajetos, desde o seu interior – como nos casos em que se empreende uma metacrítica dos discursos midiáticos – ou desafiá-las a partir de seu exterior – como nos momentos em que a mediação entre os sujeitos é feita por meio delas. Se compartilharmos da possibilidade de uma crítica às mídias inserida tanto nos meios de comunicação hegemônicos como na chamada mídia independente, uma potência metacrítica poderia ser encontrada não exclusivamente em conteúdos alternativos, mas nos aspectos formais das obras. Ao assumirmos que os discursos instituídos podem ser problematizados para além de representações midiáticas tradicionais, uma passagem se vislumbra, trazendo novos questionamentos, entre eles, “qual a especificidade do discurso da crítica sobre outros meios de comunicação, que, por ser também midiatizada por sua publicação, poderia ser chamada de ‘metacrítica’? Como essa crítica sugere e apoia-se na recepção do público nessa instância intermidiática? E, para além dos discursos orais ou textuais, como as imagens por si só podem propor (ou decompor) discursos críticos?” (Paganotti; Soares, 2015, p. 53).
A crítica das formas de mediação, por sua vez, coloca-se como um ponto essencial para os estudos de comunicação. Temos assim, entre outras, as seguintes dimensões: “1) da autoridade, direito e liberdade para criticar. 2) dos parâmetros de como se operar a valoração da qualidade do objeto que está sob apreciação. 3) da finalidade última de qualquer crítica, que deseja, extrapolando o esforço de compreensão, promover alguma ação de transformação do mundo ao redor” (Silva; Soares, 2013, p. 821). Nesse sentido, cabe ressaltar, para além de correntes críticas norte-americanas ou europeias, também aquelas desenvolvidas por pensadores latino-americanos atentos às especificidades locais e regionais do continente, em que as fronteiras entre as chamadas cultura erudita, cultura popular e cultura midiática revelam seus contornos pouco rígidos.
A crítica das formas de mediação é um ponto essencial para os estudos de comunicação. Entre outras dimensões, devemos refletir sobre: 1) a autoridade, o direito e a liberdade para criticar. 2) os parâmetros de qualidade que norteiam a apreciação dos objetos. 3) a finalidade última de qualquer crítica, que deseja, para além da compreensão, promover alguma ação transformativa no mundo ao redor.
É nesse vasto cenário que, desde 2013, o Grupo de Pesquisa Crítica de Mídia e Práticas Culturais tem como principal motivação a necessidade de fortalecer a reflexão acadêmica sobre teorias e procedimentos de crítica de mídia no Brasil, buscando diálogo com experiências de pesquisadores de instituições brasileiras e de outros países. Inspirado na história de como tradicionalmente se consolidaram a crítica de cinema e a de literatura, o grupo tem como objetivo investigar, problematizar e sistematizar possíveis modos de apreciação de diferentes objetos midiáticos. O propósito que orienta os pesquisadores do grupo é o de tratar a crítica de mídia como campo particular de pesquisa e ensino, tomando como referência os estudos da linguagem e do discurso; as teorias da comunicação e do jornalismo; as práticas midiáticas; as narrativas audiovisuais, impressas e digitais; as expressões estéticas; os imaginários e as representações culturais.
De larga abrangência empírica, as pesquisas observam discursos televisivos (telejornalismo, teledramaturgia), discursos cinematográficos (cinema ficcional, cinema documentário), discursos verbais (revistas, jornais), discursos sincréticos (narrativas digitais, narrativas sonoras, narrativas visuais) e, ainda, se dedicam à compreensão do jornalismo como produto e produtor de cultura e da prática noticiosa como experiência cultural. De caráter interinstitucional, a dinâmica de atividades do grupo prevê a realização de encontros presenciais, participação e organização de eventos científicos, produção de livros e artigos para periódicos, além de leituras e sistematização permanente de autores e conceitos.
A fim de desenvolver suas investigações, o grupo está organizado em duas linhas de trabalho: 1) Discursos midiáticos e cultura audiovisual. 2) Jornalismo, cultura e crítica. A primeira linha tem como objetivo realizar estudos relativos à cultura audiovisual e suas manifestações nas mídias contemporâneas. Com base nas teorias constituintes dos estudos de linguagem, o tema abrange as narrativas audiovisuais em suas diversas formas (televisivas, cinematográficas, digitais), a fim de analisar de que modo esses discursos constroem imaginários culturais. As tensões entre referencialidade e ficcionalidade são tomadas como eixos articuladores das análises, além dos processos de construção de visibilidades e invisibilidades sociais por meio dos discursos midiáticos. Além desses, os processos de convergências das mídias e hibridismos de gêneros, tomados em seu aspecto intertextual, articulam as reflexões propostas.
A segunda linha organiza-se por um corte transversal na pesquisa do fenômeno jornalístico em suas figurações como experiência cultural. Sua base epistemológica é a compreensão do jornalismo como produto e produtor de cultura. Sua perspectiva teórico-metodológica se direciona para os estudos com interesse nos textos sobre os quais a prática noticiosa duplamente versa: sobre si mesma e sobre o mundo vivido na contemporaneidade. Os objetos e temáticas de análise localizam-se em material noticioso submetido a leituras transdisciplinares, fundamentadas em aportes do campo da cultura e subcampos dos estudos do imaginário, da estética.
Em sentido ampliado, no que diz respeito à crítica de mídia, é importante buscar alguns pressupostos no campo da arte (especialmente literatura e cinema, na conformação de uma crítica especializada) e nas transposições ocorridas deste espaço para o campo da comunicação (no qual leitores, ouvintes e espectadores também exercem papel ativo). Para além dos movimentos de julgamento e de interpretação, portanto, “o caráter relacional aponta para a dimensão comunicativa da crítica, uma espécie de mediação entre obra e leitor, ponto de convergência dos valores e repertórios por ela acionados” (Soares; Serelle, 2013, p.176). Devemos destacar que o “repertório” não diz respeito apenas a um conjunto previamente estabelecido, mas engloba também novos conhecimentos que, ao serem ordenados, reconfiguram o que havia sido anteriormente definido: “Ao ser reconhecido como dotado de valor, um objeto passaria a integrar esse inventário; por sua vez, os elementos constantes dessa coleção, ao serem rearticulados, fazem surgir outros valores” (Soares; Serelle, 2013, p.176).
Na conjugação dessas possibilidades e demandas, percebemos que se pode estudar a crítica de mídia em diferentes instâncias ou modalidades:
1) Na percepção de parâmetros, do como fazer para criticar, observando a operacionalização do ofício do crítico e, quando no campo do jornalismo, com atenção para implicações éticas e estéticas da cobertura dos acontecimentos noticiados.
2) No estudo das críticas de mídia que circulam pela própria mídia, feitas por aqueles reconhecidos como críticos, que possuem saberes que o público não domina.
3) Na crítica de mídia como um gênero textual, praticado pelos especialistas a partir de determinadas convenções reconhecidas pelo público, possibilitando sua circulação junto a ele em espaços já institucionalizados, como jornais, revistas, blogs, colunas, entre outros.
4) Nas experiências metacríticas em termos de conteúdo e forma das inovações estéticas e estilísticas veiculadas na própria mídia, que, ao propor um novo formato ou gênero, empreendem uma crítica àquilo estabelecido como padrão, realizando-a não como uma análise sobre a mídia, mas no próprio fazer midiático.
5) Nas interações sociais de crítica, nas quais receptores criticam de maneira dispersa e informal materiais veiculados nas mídias e também revelam em suas críticas imagens sociais que têm dos diversos meios e práticas, confirmando ou questionando fundamentos da produção midiática, como acontece, por exemplo, no caso da divulgação de notícias.
6) No estudo das “teorias da crítica”, teorizando sobre os modos de como fazer para criticar e de como criticam os que criticam, seja com foco nas práticas de críticos na mídia, seja nas pesquisas acadêmicas.
7) No que diz respeito à especificidade do jornalismo, a crítica de mídia noticiosa tratada como recurso didático-pedagógico para o ensino e formação de jornalistas.
Um duplo desafio se coloca, como vimos, para as pesquisas sobre crítica de mídia: conceber os seus pressupostos teóricos e, ao mesmo tempo, os procedimentos metodológicos pelos quais realizá-la, trabalhando com seus variados objetos empíricos, a fim de delimitar os contornos de seu campo. Na visada mais ampla do estudo de aportes teóricos e metodológicos para uma crítica cultural da mídia, o esforço está em “discutir a percepção de critérios e parâmetros próprios da crítica de mídia, a interação social entre crítico e públicos, e as teorias da crítica, sempre considerando na grande diversidade de objetos empíricos midiáticos o compartilhamento menos afastado entre produtores e receptores” (Soares; Silva, 2016, p.1).
A crítica televisiva, tanto quanto a crítica de jornalismo, é particularmente sensível a essa proximidade maior entre produtores e receptores. No caso da primeira, vemos uma profusão de tipos de crítica, variando entre abordagens mais acadêmicas, mais especializadas ou mais participativas. Ao indagar sobre a contribuição da crítica televisiva na compreensão da produção televisiva, Silva apresenta quatro modos para o estabelecimento de tal colaboração: “1) investigar a qualidade enquanto quadro valorativo flexível. 2) compreender como alterações contextuais implicam nas formas de consumo e produção. 3) identificar tensionamentos nas formas televisivas dominantes; 4) compreender os gêneros televisivos como categoria cultural” (Silva, 2016, p. 1).
Os diversos gêneros e formatos televisivos, especialmente programas de ficção, incluindo as novelas e séries e, cada vez mais, os reality shows, ocupam grande parte dos debates sobre a televisão, que proliferam nas mídias digitais, nas redes sociais e nos blogs. Nesse contexto, consolida-se também uma maior presença da crítica voltada a essas obras circulando nas próprias mídias (notadamente na internet), como no caso de colunas e sites regulares para publicação de textos analíticos. Dentre esses, destacamos o trabalho do crítico Mauricio Stycer que, atestando a relevância dessa atividade lançou, em 2016, um livro organizado a partir de seus textos, publicados originalmente no jornal Folha de S. Paulo e em um blog no portal de notícias UOL. Crítico de televisão – ou “telespectador profissional” – desde 2008, Stycer parte da premissa de que, nos últimos anos, a televisão tem passado por um intenso processo de transformação. Ao fazê-lo, além de apresentar os critérios e valores que pautam seu trabalho, o autor atribui à crítica televisiva, para além das tarefas de interpretar as obras, formar o público e estabelecer critérios de julgamento, outra função: a capacidade compreensiva, tanto no sentido de abranger a variedade dos repertórios televisivos, como no sentido de entender os processos pelos quais a televisão tem passado, incluindo nos dois casos o âmbito da produção e o da recepção.
Se a crítica não ocupa, na contemporaneidade, o mesmo lugar em que atuou na modernidade, principalmente devido às especificidades dos produtos culturais existentes, a crítica de mídia, hoje, como método, pode ser pensada como um modo de olhar os discursos por uma perspectiva histórico-cultural.
Observando parâmetros de outras produções culturais – mesmo aquelas também propagadas pelas mídias –, Stycer afirma que o número de especialistas em televisão (ou críticos) é proporcionalmente muito menor do que o espaço que ela ocupa na sociedade brasileira, embora escrever sobre televisão seja um ofício, de acordo com ele, que existe desde seu surgimento do meio. Partindo desse raciocínio, Stycer estabelece uma importante distinção, que gostaríamos de sublinhar como um dos pilares para a realização da crítica televisiva, ou da crítica sobre a crítica televisiva. Considerando os preconceitos que, talvez por sua enorme popularidade, ainda cercam esse meio – visto como uma forma cultural menor –, Stycer afirma: “Some-se a esse preconceito a impressão de que, para ser crítico de televisão, basta assistir a muita TV. De fato, a grande maioria das pessoas acumula enorme repertório a respeito, fruto do hábito de ver televisão desde criança” (Stycer, 2016, p. 17). Para ele, entretanto, é preciso demarcar os diferentes circuitos da crítica: “Mas é muito simplório acreditar que o consumo quase compulsório, por si, transforma alguém em especialista” (Stycer, 2016, p. 17).
Entre o público, os críticos e a própria mídia, a televisão nos ajuda a pensar no campo mais abrangente da crítica, quando esta encontra a academia, evocando seu lugar como aquela que deve colocar em crise os objetos analisados, não apenas versando sobre a mídia, mas também engendrando novos objetos a serem produtivamente criticados. Ao indagar o que determinada obra pode dizer e como se relaciona com questões prementes de nosso tempo, podemos apontar criticamente suas singularidades (rupturas ou permanências) e estabelecer, assim, uma articulação dinâmica entre três aspectos da crítica: a produção, a obra e a recepção. Se o lugar da crítica na contemporaneidade não é o mesmo que esta ocupara na modernidade, principalmente devido às especificidades dos produtos culturais existentes, como método a crítica de mídia pode ser pensada como um modo de olhar os discursos por uma perspectiva histórico-cultural. No caso da crítica jornalística (aquela divulgada pela imprensa), como produzir “uma crítica do entretenimento que não seja marcada por um olhar sempre disponível – meramente descritivo, que se exime de julgar e selecionar – nem restrito ao impressionismo?” (Serelle, 2012, p.50).
É nesse contraponto que podemos estabelecer um lugar para a crítica de mídia acadêmica e refletir sobre tal lugar, uma espécie de entrelugar que ao mesmo tempo pode realizar a crítica de mídia ou analisar as críticas que circulam no ambiente midiático. Considerando que a realização de um empreendimento crítico depende de um repertório compartilhado e da referência a cânones de uma determinada área, nosso desafio seria, então, delinear em que solo podemos nos ancorar criticamente sobre as mídias em geral, tratando das relações entre o trabalho dos especialistas e dos produtores autorizados a fazer a crítica; da questão do público e da crítica informal; da análise da produção crítica em si mesma e das práticas sociais a ela associadas, além da produção de textos e exercícios de análise crítica.
Rosana de Lima Soares é professora livre-docente no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado no King’s College London (Inglaterra). Líder do Grupo de Pesquisa Crítica de Mídia e Práticas Culturais e do Grupo de Estudos em Linguagem e Mídias (MidiAto). Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).
Gislene da Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado na ECA-USP e na Universidad Complutense de Madrid (Espanha). Líder do Grupo de Pesquisa Crítica de Mídia e Práticas Culturais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).
Referências
PAGANOTTI, I.;SOARES, R. L. Metacrítica midiática: reflexos e reflexões das imagens em Black mirror. In: Por uma crítica do visível. São Paulo (SP): ECA-USP, 2015.
SERELLE, M. V. A crítica do entretenimento no jornalismo cultural. Revista Comunicação Midiática, v.7, n.2, 2012.
SILVA, F. M. Quando a crítica encontra a TV: uma abordagem cultural para a análise da crítica televisiva. Revista Famecos, v.23, n.2, 2016.
SILVA, G.; SOARES, R. L. Para pensar a crítica de mídias. Revista Famecos, v.20, n.3, 2013.
SOARES, R. L.; SERELLE, M. V. A crítica de TV no Brasil: valores e repertórios. Revista InTexto, n.28, 2013.
SOARES, R. L.; SILVA, G. Lugares da crítica na cultura midiática Revista Comunicação, Mídia e Consumo, v.13, n.37, 2016.
STYCER, M. Adeus controle remoto: uma crônica do fim da TV como a conhecemos. Porto Alegre: Arquipélago, 2016.