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Pandemia impulsiona retorno do Brasil ao Mapa da Fome

Frente à insegurança alimentar, famílias brasileiras se desdobram para colocar comida na mesa

Após anos de enfrentamento à questão da fome, o Brasil se vê novamente diante de dados preocupantes. O surgimento do novo coronavírus e a pandemia decretada em março de 2020 trouxeram à tona de modo mais explícito a situação das famílias afetadas. Com a necessidade do isolamento social, a maioria dos trabalhadores não-essenciais se encontrou impedida de realizar suas rotinas presenciais de trabalho. Conforme dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego no Brasil alcançou o marco histórico de 14,7% em 2020. Assim, a alimentação saudável e farta nas casas brasileiras se tornou artigo de luxo. Além do desemprego e da inflação – que impacta no preço dos alimentos -, o auxílio emergencial oferecido pelo Governo Federal não chega a todos que precisam.

Realidade em perspectiva

Durante a pandemia de covid-19, a diarista Vivian Vieira, 38 anos, passou a vivenciar, assim como milhares de brasileiros, a insegurança alimentar e nutricional. Mãe solo de quatro filhos menores de idade, ela trabalhava na área de limpeza com carteira assinada antes da pandemia começar, mas, ainda em março de 2020, perdeu o emprego. Já sem nenhuma renda, Vivian não teve direito ao auxílio emergencial e ao Bolsa Família no valor de R$170, que não era suficiente para suprir as necessidades de uma casa de cinco pessoas. Hoje, as despesas da casa são pagas por meio de doações e a alimentação é provida através de cestas básicas recebidas do supermercado e da escola, além do kit merenda dos quatro filhos. Atualmente, os filhos mais velhos (15 e 17) trabalham para que a situação financeira da família fique um pouco mais estável.

Cincos cestas básicas grandes são expostas em prateleira de supermercado, envoltas em plástico transparente.
Imagem de uma geladeira branca aberta carregada com itens de alimentação básica provenientes de cestas básicas. Com uma luz amarela saindo dos fundos do eletrodoméstico, nota-se a presença de legumes, verduras, água e manteiga no interior, além de ovos e molhos na porta.
Com o apoio de ONGs, Vívian recebe cestas básicas para a alimentação na casa. (Foto: Giovanna de Souza)
Vivian mantém sua geladeira cheia graças às doações de cestas básicas. (Foto: Giovanna de Souza)
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Vivian Vieira acredita que a assistência governamental falhou na análise da população que dependia dos auxílios monetários. “Conheço casos de ‘gente de bem de vida’ que tiveram direito, e eu, que precisava, não consegui”. Por depender de cestas básicas oferecidas pelas escolas dos dois filhos mais novos, além de ações sociais de supermercados, Vivian não tem autonomia para a escolha dos seus alimentos, apenas consome o que lhe é doado, e, a partir da busca ativa dessas instituições, mantém a alimentação da família.

Nessa pandemia é bem difícil porque não é fácil achar lugar pra trabalhar, ninguém quer o seu trabalho, e tem muita gente que pegou a doença, né?

Vivian Vieira, diarista

Durante a entrevista, Vivian esteve acompanhada dos filhos mais novos, de 5 e 7 anos. Em fase de desenvolvimento, as crianças têm o momento da aula como um dos mais esperados do dia, já que têm acesso à merenda oferecida pela instituição escolar. “Gosto muito de comer na escola, porque posso comer duas vezes, e é muito gostoso”, afirma um deles. De acordo com uma recente pesquisa do Ministério de Saúde, apenas 26% das crianças de 4 a 9 anos atendidas pelo SUS em 2021 tinham acesso a pelo menos uma das três principais refeições do dia.

A falta de acesso à alimentação saudável, além de agravar a desigualdade social que assola o país, afeta o sistema imunológico e coloca ainda mais em risco a vida das pessoas que precisam encontrar alternativas de emprego durante a eclosão de uma doença viral. Em razão de uma grande fragilidade política e socioeconômica do país, a parcela da população mais afetada pela pandemia precisou encontrar alternativas inimagináveis para tentar manter a saúde, como a ingestão de ossos e de restos de alimentos de feiras.

Mulher de costas, à esquerda, com blusa estampata nos tons branco, preto, amarelo e vermelho abraça filho, à direita, também de costas, com jaqueta azul escuta. Ambos estão virados para um muro de cimento marcado pelo tempo e musgo. A mulher tem o rosto levemente virado à direita, o que permite ver que ela está sorrindo.
Vívian mantém sua família a partir de trabalhos temporários de limpeza doméstica (Foto: Giovanna de Souza)

Brasil no Mapa da Fome: Impacto nutricional

De acordo com dados divulgados pelo grupo de pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, 125,6 milhões de brasileiros sofreram de insegurança alimentar durante a pandemia, o que equivale a 59,3% da população do país. Em entrevista, a nutricionista Laura Cordeiro Rodrigues, especialista na saúde do idoso e mestre em nutrição e saúde pública, afirma que a insegurança alimentar é uma perda de direitos, caracterizada pela perda da alimentação adequada em qualidade e quantidade:

A partir do momento em que a pessoa não sabe se vai comer a próxima refeição, isso é insegurança alimentar e nutricional. Se é uma pessoa que tem acesso a comer arroz, macarrão, fubá e só – pois é tudo o que ela recebeu em uma cesta de doação – isso é insegurança alimentar.

Laura Cordeiro, nutricionista

Para a especialista, a insegurança alimentar é considerada leve quando já se tem uma preocupação com a falta de alimentos no futuro e mudança na qualidade do que se come. Já na insegurança moderada começam a faltar refeições do dia para os adultos, que pensam em estratégias de substituição, até chegar na insegurança alimentar grave. Do ponto de vista nutricional, a alimentação é considerada um condicionante do estado de saúde dos indivíduos.

Nesse sentido, para crianças, de acordo com a nutricionista, o não-consumo da quantidade energética necessária pode comprometer o crescimento e o desenvolvimento, além de ter relação com o aumento da mortalidade infantil. Para a população idosa, uma alimentação sem valor nutricional também pode resultar no aumento da taxa de mortalidade, uma vez que o sistema imunológico dos indivíduos é comprometido. Assim, a carência alimentar é prejudicial em ambos os casos, sendo as crianças mais afetadas a longo e médio prazo.

Infográfico em tons de amarelo, marrom e laranja apresenta dados sobre a alimentação dos brasileiros no último semestre de 2020. O primeiro gráfico de rosca, com o desenho de um carrinho de compras no centro, apresenta o dado de que 63% das pessoas mudaram os hábitos alimentares para se readequar ao orçamento. O segundo, com o desenho de uma bandeja de carne, apresenta o dado de que 44% das pessoas reduziram o consumo de carnes. O terceiro, com o desenho de um cacho de bananas, apresenta o dado de que 41% das pessoas reduziram o consumo de frutas. Além disso, na parte inferior da imagem, é apresentada que a fonte dos dados são pesquisas realizadas pela Exame/Ideia e pela Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília.
Dados sobre a alimentação dos brasileiros no último trimestre de 2020 (Infográfico: Júlia Rodrigues da Costa)

Cenários como o de Vivian Vieira são realidades presentes em diversos lares brasileiros. Conforme o exposto pela nutricionista Laura Cordeiro Rodrigues, a situação de insegurança alimentar é crítica e traz consequências diretas para o futuro do país. O retorno do Brasil ao Mapa da Fome, indicador criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para medir o acesso adequado à alimentação ao redor do mundo, mais do que um resultado da pandemia, é reflexo de negligência governamental.

Conteúdo produzido por Giovanna de Souza, Lara Aguiar, Pedro Januzzi, Júlia Rodrigues da Costa, Luiz Santos, Poliana Cestari, Lucas Izidro, Estêvão Valentim e Ana Carolina Gomez em atividade interdisciplinar orientada pelas professoras Adriana Ferreira, Fernanda Sanglard e Verônica Soares da Costa.

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