O Censo da População em Situação de Rua 2022, realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG a pedido da Prefeitura de Belo Horizonte, apontou que o número de moradores de rua é de 5.344 pessoas na cidade, quase o triplo de uma década atrás. Dados de janeiro a julho de 2022 da Polícia Militar de Minas Gerais mostram que o centro da capital mineira concentra o maior número de ocorrências violentas da cidade, seis vezes mais do que o segundo colocado, o Santa Efigênia.
Márcia é uma dessas pessoas. Ela conversou com a reportagem na esquina da Rua Tamóios com a Olegário Maciel, em um dia ensolarado de abril de 2023. Moradora de rua no centro de Belo Horizonte há 30 anos, Márcia considera que a região tem mudado nos últimos tempos:
Só tem ladrão de fora, da Bahia, do Ceará, tudo fugido de lá e vem esconder aqui. Vira morador de rua e rouba nós [sic]. Por isso que a gente tem que dormir com faca ou pedaço de ferro, estuprador tem demais, é muito perigoso aqui.”
Márcia, moradora de rua
Não existe correlação direta entre o aumento dos moradores de rua e da criminalidade, porém, ambos são fatores que afastam a população do centro da cidade. Nas ruas do centro de BH, transeuntes comentam que frequentam porque trabalham lá ou passam pela região para pegar ônibus. Assim como Márcia, muitos apontam o aumento notório da violência da região e do descaso da Prefeitura. Afirmam que não frequentariam o centro a lazer. Romeu Francisco, aposentado, fala sobre seus receios: “Hoje, você parou pra dar atenção, as pessoas já tão querendo te dar um golpe”, e continua: “Então, a nossa esperança não está nos governantes não, nossa esperança tá em Deus [sic], que tá no controle de todas as coisas”, enfatiza o idoso.
Na contramão das expectativas do aposentado, a Prefeitura de Belo Horizonte lançou, em março de 2023, o Programa ‘Centro de Todo Mundo’. A iniciativa prevê a requalificação da região central para aumentar oportunidades de trabalho, moradia e lazer. Estão incluídas obras no Parque Municipal, revitalização de prédios históricos, ampliação das operações da Guarda Civil Municipal e programas de reinserção ao trabalho e viabilização de habitação para a população em situação de rua.
Luciana Andrade, socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas, sinaliza para a necessidade de políticas públicas para a manutenção das populações que frequentam a região, não só que tentem atrair novos públicos, como ela adverte ser o caso do Programa ‘Centro de Todo Mundo’. A pesquisadora ressalta o perigo da gentrificação ao destacar a importância da região central da cidade: “A concentração da infraestrutura de diversos setores, como cultura, saúde e educação, torna o centro um lugar privilegiado”.
Novos negócios e requalificação
O processo de requalificação no centro acontece também de forma privada. Novos negócios têm surgido nos últimos anos e ocupado edifícios antigos que eram subutilizados. Um dos mais conhecidos é o Mercado Novo. Construído na década de 1960, ele não foi finalizado e enfrentou décadas de abandono e utilizações ilegais. Na década de 1980, a formação do condomínio atraiu lojistas para os andares mais baixos, mas os superiores continuaram abandonados, já que a falta de telhado permitia a infiltração de água nas lojas.
Foi em 2017 que o telhado foi feito e a administração estreitou seu contato com o mercado criativo belorizontino, o que já acontecia desde 2009. Com diversas opções de bares, restaurantes, lojas e até academia de luta, o espaço, hoje, é ponto de encontro de jovens e turistas na capital mineira. Gabriel Filho, superintendente do Mercado Novo, avalia que um dos fatores que chamou a atenção dos lojistas foi a localização próxima de pólos comerciais de diversos setores, como o Barro Preto, referência na moda belorizontina. Outros diferenciais que valorizam o edifício é o fato de os inquilinos serem ‘escolhidos a dedo’ para integrar o projeto. “O espaço também conta com seguranças que não permitem a entrada de ambulantes e pedintes. Então dá um certo conforto para pessoa passear até meio que despreocupada”, destaca. Para ele, muitas pessoas têm enxergado uma nova forma de posicionamento e olhar para o centro. “Nós estamos fazendo tendência”, acredita o gestor.
Desde a inauguração da nova fase do Mercado, pequenos empreendedores têm aberto negócios com propostas diferenciadas nos arredores, como o Mira, um espaço que serve brunch pela manhã e promove eventos à noite, no edifício Dona Júlia Nunes Guerra; o Sula, no vão entre os Edifícios Sulacap e Sulamérica, que é restaurante de dia e, em uma proposta semelhante ao Mira, promove eventos à noite; e os bares Palito, Pirex e Botelha, na Galeria São Vicente, que mudaram a cara das varandas do edifício em frente à Praça Raul Soares.
Inaugurado em 2022, o Sula Comida e Cultura faz parte de um movimento cultural de ocupação do centro que se iniciou há 15 anos com o Duelo de MCs e a Praia da Estação, segundo Andressa Pestilli, gerente do espaço. Já Vitor Velloso, sócio do Bar Pirex, que fica no cruzamento da Avenida Amazonas com a Praça Raul Soares, escolheu o ponto devido à localização entre o Mercado Central e o Mercado Novo, e devido à varanda com vista para a praça. O empreendedor considera que o bar faz parte de um movimento de integração de outras iniciativas, novas e antigas. Ele reconhece a importância da região e reflete: “Em vez de requalificação, talvez eu usaria o termo repovoamento. A gente tem uma retomada de um comércio cultural, gastronômico e de entretenimento naquela região”.
A proposta do Pirex é servir petiscos de estufa com opções tradicionais e contemporâneas. Enquanto a maioria dos bares do centro não tem um chefe de cozinha, Vitor conta com um na sua equipe para cuidar da concepção dos pratos e manter uma “proposta gastronômica muito clara e consciente”, diz. Segundo ele, isso atrai, além de moradores do centro e botequeiros tradicionais, jovens que buscam tendências, público LGBTQIA+ e turistas.
Laura Lima, proprietária de um brechó que faz parte de uma loja colaborativa no terceiro andar do Mercado Novo, considera que o público dos novos comércios do empreendimento é diferente de quem frequenta outras lojas do centro. Ela julga que a iniciativa é uma “cultura alternativa” tanto na moda, quanto na culinária: “Em relação às lojas do centro, com certeza tem uma diferença de público”, destaca Laura, que acredita que os comerciantes do Mercado tentam valorizar seus produtos e serviços, fazendo diferente para atrair um público diferente.
Vitor Velloso, sócio do bar Pirex, defende que os novos negócios podem ser positivos para atrair atenção do poder público, especialmente em períodos eleitorais. “Eu acho que a nossa presença, como de outros vizinhos e parceiros na região, são positivas nesse sentido, de tornar o centro um lugar novamente em que o poder público precisa voltar os seus olhos e fazer com que o coração da cidade seja um lugar bonito, habitável, transitável, como já tem acontecido”. O empreendedor comenta que o centro de uma cidade pode ser um ponto de interseção e mistura. Por isso, espera que a região estimule a convivência das pessoas e que estejam reunidos bares que atendam a todas as classes socioeconômicas.
Localizado em frente à Praça Sete, o P7 Criativo é o primeiro hub brasileiro da indústria criativa e reúne, dentre empreendedores, funcionários e estudantes, pessoas que já frequentavam o centro e outras que vieram até de outras cidades. Cleonice Alves, analista do hub, conta que a iniciativa pública busca fomentar a economia mineira por meio de negócios inovadores e sustentáveis. Além de reunir startups e ter um coworking, o edifício abriga o Sistema FIEMG e a Escola 42, que oferecem cursos e capacitações profissionais em sua maioria gratuitos. O melhor: tanto frequentadores novos quanto antigos do centro podem ser alunos.
Gentrificação no centro de Belo Horizonte?
De acordo com Luciana Andrade, da PUC Minas, a palavra gentrificação vem do inglês gentrification que, em sua tradução literal, seria enobrecimento. Esse processo tem dimensões sociais e territoriais e se caracteriza pela entrada em um território da cidade de um grupo com capital social e cultural superior aos da população que o frequenta originalmente. Para Luciana Andrade, suas consequências principais são o aumento do preço dos imóveis, a substituição de comércios populares por sofisticados, e, finalmente, a expulsão dos grupos que ocupavam aquela região anteriormente.
Os primeiros sinais de gentrificação são difíceis de notar, já que o processo é lento, mas a entrada de pessoas de estratos sociais superiores no espaço é um indicador. No centro de Belo Horizonte, a socióloga assegura que há uma gentrificação de consumo com comércios que eram frequentados por pessoas de baixa renda e passaram a receber a classe média, na sua maioria, jovens.
Juliana Jayme, antropóloga e também professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas, esclarece que o conceito de gentrificação é polissêmico. Ela não crê que haja gentrificação no centro de BH, já que foi acrescentado um novo público, mas não houve expulsão do antigo. Um exemplo, segundo ela, é justamente o Mercado Novo, que mantém as lojas antigas nos andares de baixo, e abriu comércios mais diversificados nos pavimentos abandonados.
Antônio Machado, dono da loja Quintas Utilidades, no primeiro andar do Mercado Novo, comenta que a requalificação dos andares superiores impactou positivamente seus negócios. Ele vende utilidades domésticas e parte dos seus clientes são lojistas dos pavimentos de cima.
Sobre o conceito em disputa, Gabriel Filho, superintendente do Mercado, acredita que o movimento do Mercado Novo gera, sim, atração de novos públicos: “Eu acredito que, sim, que nós estamos contribuindo para essa gentrificação do centro, já existe esse entendimento de toda a população de que o centro também é legal, de que ele precisa de novos olhares”.
Silvana, moradora do centro, e Victor, entregador de água no edifício, têm a mesma opinião sobre o Mercado Novo. Ambos consideram as lojas dos seus andares superiores gourmetizadas, com preços pouco acessíveis e frequentadas por um público típico da zona sul. O trabalhador critica:
Tem mais boy, desculpa a palavra, mano, é a real, tá ligado. Um prato ali, o tamanho não tampa nem o buraco do meu dente, é 69 real, tá ligado, eu não tenho 69 real, tá ligado, eu não tenho 15 real todo dia pra pagar no marmitex [sic].”
Victor, entregador de água do Mercado Novo
Quer saber mais sobre o assunto? Ouça nosso episódio do Colabcast sobre o tema:
Colaboração: Ísis Grazielle.