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Moradores em situação de rua: liberdade e constrangimento

Da possibilidade de viver em liberdade ao enfrentamento de formas de violência, os moradores em situação de rua experimentam muitas dificuldades. Por um lado, estão livres das rotinas do trabalho, da organização de um lar, por outro, ficam sujeitos a situações de constrangimento, como a violência física (assédio, agressões, assassinatos), a sua rejeição por outros moradores e a invisibilidade social.

Em Belo Horizonte, estimativas da Secretaria Municipal de Políticas Sociais indicam que há atualmente cerca de 6.000 moradores nas ruas por razões diversas, como conflitos familiares, doenças como o alcoolismo. Em 2005, o Censo de População de Rua da Prefeitura contabilizou 1.164 pessoas. Em 2013, um levantamento do Centro de Referência em Drogas da UFMG indicou um aumento para 1.827 pessoas . Outra contagem realizada no primeiro semestre de 2017, com base no Cadastro Único de Programas do Governo Federal, apontou 4.553 pessoas. Estima-se, em 2018, que o contingente tenha chegado a 6.000 pessoas.

As políticas públicas desenvolvidas na capital a partir dos anos 90 tornaram a cidade uma referência no atendimento à população de rua, mas a crise econômicosocial que assola o País agravou a situação. Pastorais, grupos de voluntários e de universidades têm feito um trabalho junto aos moradores, prestando-lhes atendimento psicossocial, levando-lhes alimentos, roupas e, acima de tudo, carinho. 

Esta reportagem procura mostrar as diversas faces desta complexa questão.

Produção: Mike Faria, Elisa Senra, Larissa Andrade, Deborah Almeida

Idosos ficam vulneráveis na rua

Arte: Jéssica Almeida

Diversos exemplares de piteiras-do-caribe, planta de caules rígidos e espetados, rodeavam um espaço com grama amassada – prova de que alguém deitava-se ali. O verde tenta, sem sucesso, enfeitar o início da Avenida Bernardo Monteiro, atrás do Sacolão ABC. O peso que acostumou a grama para baixo vem do corpo de Maria*, de 87 anos. Destes, oito sobrevivendo nas ruas de Belo Horizonte. Só na região hospitalar são três. Ela me levou ali depois do meu pedido para me mostrar onde mora, no fim da nossa primeira entrevista.
Como ela foi parar ali?
“Nossa, muito problema” resumiu, imune ao meu interesse.

Em uma tarde de março, encontrei-a sentada sobre a sacola mais volumosa que tinha, observando o movimento de subida e descida de automóveis na Avenida Francisco Sales, e a entrada e saída de pessoas no Supermercado Extra, no bairro Santa Efigênia, há cerca de 240 metros de onde passa as noites. Esperava passivamente, silenciosa, por contribuições, mas agradecia com energia pelas pequenas quantias. Entre os principais contribuintes, médicos (“área hospitalar é melhor do que Savassi”, disse) e outras senhoras (“a maioria é quase da minha idade”). Olhar para essa senhora era confirmar a necessidade urgente de reordenamento de políticas de atendimento para a população de rua, sobretudo idosa.

Para um cabelo pouco volumoso e branco, Maria usava um número desnecessário de grampos. Enquanto conferia, a todo instante, se o coque estava firme, contou que nasceu em Monsenhor Isidro, distrito mineiro de Itaverava, entre Congonhas e Conselheiro Lafaiete. Mora em Belo Horizonte há 30 anos. Saiu de onde nasceu em 1964. Ela teve apenas um (porém longo) emprego, que consistia em organizar a vida de doentes acamados, do corpo e residência deles. Exerceu a função desde os 16 anos. Os pais nunca foram rígidos nas cobranças escolares. A saída da casa da família teve como destino o município vizinho de Conselheiro Lafaiete, a duas horas de BH, onde trabalhou até 1988. 
Na  capital, já atendeu em bairros como Funcionários, Santa Teresa e região do Barreiro. “Era muito sofrimento, né? Esqueci fácil”, disse, quando perguntei se algum paciente lhe marcou a memória.

 Maria não se casou ou teve filhos: “Mas eu nunca me senti sozinha. Eu estava sempre cuidando de alguém. Sinto agora, que cuido só de mim”.

Ela não está satisfeita, óbvio, com o momento atual de sua cruzada e aguarda por uma vaga em asilo. 
– Mas a senhora já está cadastrada? – perguntei. A resposta veio cheia de crença:
– Um médico aqui de perto vai arrumar a vaga pra mim, se deus quiser.

Sobre morar na rua, “não é bom não, viu? É esquisito, você não tem hora para nada”. 
– E por que a senhora está na rua hoje? – insisti. 
– Ah, problema demais – e completou o raciocínio anterior- Tenho hora só para tomar meu café na lanchonete, que é 7h.
Vestindo uma blusa azul-marinho gasta, bordada com o símbolo da Ralph Lauren, detalhou: “Por R$17,70 compro um copo de café com leite, dois copos de leite, um copo de café preto – que eu bebo sem açúcar e meia dúzia de pastel”. O rosto dela era tranquilo, mas a região dos olhos se contorcia constantemente, incomodada com a claridade.

Os hábitos de sono são singulares. Acorda de madrugada, às 3h, 3h30, 4h. No dia da entrevista, acordou às 4h45. Exibiu e chacoalhou um aparelho pequeno e colorido, ressaltando um costume. “Acordo e ligo meu rádio. Foi um amigo da Universal que me deu. Uso ele tanto… Mas agora, por exemplo, está com uma pilha só. Precisa de mais”. A Rede Aleluia e a rádio Itatiaia são as estações preferidas. Ela arrecada, mensalmente, o equivalente a um salário-mínimo (R$ 954 reais).

Acordar cedo é uma herança profissional. Quando passou anos trabalhando no bairro Funcionários, às 4h já estava na padaria providenciando o café da manhã do paciente atendido na época. “Não trabalho mais, mas o horário de acordar é o mesmo”.

Outro incômodo é a falta de privacidade. “Não tem lugar para [fazer] nada, mas a gente acostuma com essas coisas de rua…”. Ela continuou, sem que eu perguntasse, mas com a voz alguns decibéis abaixo “…mas eu vim para cá por causa de muito problema”. Destacou também o fato de não poder ter as próprias coisas. Seus pertences já foram roubados mais de uma vez. Certa vez, Maria viu de longe, e sem tempo hábil para impedir, levarem uma cadeira, em ótimo estado. Ela parecia ignorar que estar na rua, naquela altura da vida, já era grave o suficiente. “Roupa eu já acostumei a ter pouca. Outros moradores roubam mesmo”.

Depois de quase uma década deitando no cimento, espanta-se com pouca coisa. Lamentou a violência, por exemplo, com normalidade. Contou que as agressões de homens contra mulheres na rua são comuns e mencionou um casal vizinho da época em que viviam na região da Lagoinha, mas sem lembrar seus nomes. “Ele batia demais nela, tadinha. E mulher da rua não chama a polícia”.

Ela encerrou nossa primeira entrevista às 17h15 para honrar um compromisso com Rodrigo, outro morador da região hospitalar. Todos os dias ele carrega as sacolas mais pesadas de Maria, do local onde ela passa o dia até onde passa a noite. “Nessa hora eu tenho que já ter ido no banheiro. Vamos voltar para o sacolão”.

Eu fui atrás e logo me despedi. Ela tentou evitar o motivo que a levou para as ruas, mas ele era uma assombração que eu me vi forçada a tentar exorcizar, sutilmente. A senhora não recuou: 
“Problemas né?”.

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

Por Jessica Almeida.

“Estou fazendo cultura. Eu me sinto útil” 

Sebo criado por morador de rua chama a atenção na região da Savassi

As mulheres estão em menor número nas ruas e elas se sentem mais seguras quando têm um companheiro por perto

O perfil dos moradores, segundo especialistas

Professor Bruno Vasconcelos. Foto: Isaque Henrique

O professor de Psicologia da PUC Minas, Bruno Vasconcelos de Almeida, coordena o projeto de extensão IEPÊ ÒMÌNIRA: observatório e clínica de lutas democráticas, desenvolvido junto à população em situação de rua na capital. O projeto engloba um conjunto de práticas – psicológicas, de saúde, comunicacionais e jurídicas – e promove cursos de formação e capacitação para diferentes públicos, com temáticas ligadas à população de rua, direito à saúde e democracia. A palavra IEPÊ é de origem tupi e significa espaço único, singular, enquanto ÒMÌNIRA é liberdade, em Iorubá. “O projeto brinca com essas duas línguas minoritárias, de que quase não se houve falar mais, mas que são signo desse esforço que a gente faz”, afirma Bruno.

Nesta entrevista, o professor aborda a diversidade de perfis dos moradores em situação de rua mas que, segundo ele, estão, em geral, “relacionados à desigualdade social” em nosso País. A tese do grupo que coordena é de que a condição dessas pessoas socialmente excluídas deve-se, principalmente, à luta por espaço nas cidades, marcada pela especulação imobiliária. Isso se agrava no atual momento “devido ao desmonte das políticas públicas e a um descomprometimento com a Constituição de 1988”.

“Há uma realidade econômica que empurra as pessoas para as ruas”.

Foto: Leticia Mattos

Confira a entrevista completa com o professor Bruno Vasconcelos.

Quais as diversidades de condição e tipo de moradores em situação de rua?

Existem muitas circunstâncias na rua. O estar na rua existe desde o nascimento das cidades mas, de uns anos pra cá, sobretudo nos últimos cem anos, a população de rua historicamente esteve associada à questão das desigualdades sociais. Temos um grande contingente de pessoas que não têm recursos, está desempregada ou até mesmo não têm nenhuma fonte de renda. Também encontramos casos em que a pessoa não consegue estar dentro de uma casa.

Enfim, há uma série de circunstâncias estruturais e conjunturais que levam as pessoas para a rua. Nos últimos anos, contudo, temos observado um incremento dessa população por outros fatores, como, por exemplo, egressos do sistema prisional e usos esporádico e constante do crack. Há também uma relação de “entra e sai da rua”, ou seja, o indivíduo fica em casa com a família, mas eventualmente fica um tempo fora, quer dizer, essas pessoas, muitas vezes, se confundem com a população de rua, pela eventualidade dessa pessoas nos contextos da vida na rua.

A gente tem algumas mudanças nesse perfil, mas, sobretudo, ele está associado ao problema da desigualdade social. Vale notar, desde já, uma questão que nos tem chamado atenção e é uma hipótese do nosso projeto: o contexto desse viver da rua está diretamente relacionado à especulação imobiliária, à grande concentração, à disputa pelos espaços no tecido urbano, à guerra de lugares, como diria a Raquel Rolnik, uma disputa concentracionária muito grande, uma disputa pela cidade. Isso tem sido um fator que chama muito a nossa atenção.

Morar na rua é um gesto espontâneo?

Morar na rua não é um gesto espontâneo. O que acontece é que há um cenário estrutural e um cenário conjuntural. Há uma realidade econômica que empurra as pessoas para rua e outros fatores que vêm, de certa maneira, agregar esse conjunto de pessoas que estão na rua. Isso é variável. É claro que, nos momentos de crise, esses cenários pioram.

E esse é o contexto atual, não só de crise em função das crises econômicas, nacional e internacional, mas, sobretudo, em função do momento em que as políticas públicas estão muito fragilizadas para responder às demandas da população de rua. O momento em que a gente passa no Brasil, hoje, com a destruição das políticas públicas, um descomprometimento com o texto constitucional de 1988, faz, obviamente, com que a situação piore. Mas esses fluxos são variáveis. 

Condicionar a população em situação de rua aos serviços públicos é boa política ou não?

Isso é impossível, porque, primeiramente, condicionar não é um verbo adequado, a gente não condiciona ninguém. O Estado tem de garantir a oferta de serviços, e, sobretudo, os princípios dessa oferta – universalidade, equidade, intersetorialidade e integralidade. 

Um exemplo prático: temos uma política que aloca alguns moradores em situação de rua em albergues. Um desses moradores está na escola fazendo o EJA (Educação de Jovens Adultos), que termina às 23h, mas o albergue onde ele dorme fecha às 23h. Portanto, são duas políticas que sequer conversaram, quer dizer, não houve intersetorialidade, ficando cada uma na sua caixinha. O que tiramos dessa história? Ou ele dorme numa cama, ou vai estudar. Essa dissociação, essa ausência de planejamento e de construção coletiva das políticas muitas vezes é tão ruim quanto não ter uma política. Para entendermos melhor essa dinâmica complexa das ruas, vou contar um caso que aconteceu com um grupo de São Paulo, que é parceiro do nosso. Uma moradora de rua do centro de São Paulo recebe uma casa por uma política habitacional do governo do estado. Após 19 anos morando na região central da maior cidade do país, ela segue com a família para um apartamento. 

Passado algum tempo, essa cidadã encontra com um trabalhador, que lida diretamente com a Pop Rua, e este pergunta sobre a nova situação. Ela responde que agora tem casa, mas perdeu os filhos. O que aconteceu é que o governo tirou essa mulher da rua com os filhos e alocou-os em um conjunto habitacional. Porém, no dito conjunto, que está há duas horas e meia do centro de São Paulo, não existe uma unidade de saúde, não tinha escola, ou seja, é um conjunto “largado ao deus dará”, sem a presença do estado, através de algum mecanismo, algum dispositivo. Quando não tem nada, nenhum serviço, nenhum dispositivo, projeto, programa, política, quem é que toma conta? O crime. E ela perdeu os dois filhos para o crime organizado. Isso indica o tanto que é complexo e difícil pensar alternativas não só para minimizar mas para criar condições de saída.

Qual é a nomenclatura correta ao se falar sobre a população de rua?

O termo mais adequado e mais usado tanto na política quanto na sociedade atual, de maneira geral, é população em situação de rua, porque se acredita que não seja uma condição permanente. Trata-se de um contexto, isto é, uma conjuntura que leva essas pessoas às ruas. Por mais que tenhamos pessoas que queiram efetivamente permanecer na rua, seguramente a maior parte delas é empurrada para rua por fatores econômicos, pessoais e educacionais. Esse é o termo que vamos encontrar, por exemplo, na política nacional de população em situação de rua. 

Também há uma parte dessa população que é chamada de população com trajetória de rua, quer dizer, são indivíduos que já têm um ‘sucesso’ em sair da rua e acessam, por exemplo, programas do governo como Minha Casa Minha Vida, ou o Bolsa Moradia, da prefeitura municipal, que está em funcionamento há mais de dez anos. De alguma maneira, esse conjunto em trajetória de rua está de certa forma empoderado, participando de alguma associação de moradores e/ou grupos de atuação no local onde habita. Consequentemente, é um grupo que consegue não estar nas ruas, mas ainda permanece com a identidade da rua. É o caso, por exemplo, de alguns integrantes do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR). 

A sociedade usa uma série de termos que geralmente vêm com uma carga muito forte de higienismo e preconceito social – tais como “pedinte” e “mendigo”. Isso não existe no jargão da política, são externalizações de partes da sociedade que ainda têm uma indiferença ou mesmo um conhecimento mínimo do que é a realidade do morar nas ruas.

Como é o trabalho que seu grupo na PUC Minas realiza com os moradores em situação de rua?

O projeto IEPÊ-ÓMÍNIRA tem três áreas de atuação: a primeira é a continuidade de um projeto que se chamava Andanças. Nele, temos um conjunto de práticas com pessoas em situação de rua. Outra abordagem diz respeito à questão da judicialização da saúde e uma terceira visa a formação de pessoas dos movimentos sociais. Estamos fazendo um esforço para criar um observatório que acompanhe essas políticas e realidades e que, ao mesmo tempo, seja clínica, no sentido mais amplo, ou seja, um projeto capaz de intervir em alguns casos, produzindo alterações nos contextos abordados. 

Somos uma equipe trabalhando em um projeto de extensão composta por cinco professores, trinta estudantes e quatro parceiros institucionais, já atuando na rede de serviços que atende a população de rua. Dentro do que a gente consegue fazer, acho que é bem-sucedido, pois a PUC tem renovado o projeto quando o submetemos a edital, mas claro que a gente queria mais, claro que a gente gostaria de ter resultados muito melhores. 

Ele envolve seis cursos da universidade (Psicologia, Direito, Medicina, Enfermagem, Publicidade e Propaganda e Jornalismo). Além disso, participamos da rede de atores, serviços e instituições, que tentam dar conta das políticas públicas voltadas para a população de rua.

As questões psicológicas e o tratamento humanizado

Apesar do investimento em novas unidades de acolhimento, a população de rua cresce em proporções inesperadas. Em 2017, foram inauguradas duas novas instalações no centro da cidade, onde se concentram mais de 70% das pessoas em situação de rua. Os novos complexos dos abrigos Tia Branca, abertos em um antigo hotel abandonado e reformado, na avenida Paraná, são dedicados exclusivamente a homens. A população de rua feminina é abrigada na República Maria Maria, aberta há 17 anos no bairro Lagoinha.

De acordo com Agda Marques, coordenadora geral dos abrigos Tia Branca, muitos moradores de rua chegam a abrigos com princípios de doença mental. “É extremamente comum vermos pessoas aqui com algum problema psicológico. Mas o diagnóstico é difícil. Os sintomas de doenças mentais e psicológicas podem ser confundidos com os sintomas de uma dependência química, como alcoolismo, por exemplo”, diz ela. 

Agda também acentua o desafio de cooperação com pessoas que sofrem de problemas psicológicos diagnosticados. De acordo com ela, em caso de doença mental, os pacientes são encaminhados para o Centro de Saúde Carlos Chagas, na área hospitalar, para receberem o tratamento adequado. “É muito comum que boa parte não aceite a internação, porque muitas vezes eles não se reconhecem como doentes ou dependentes químicos. Além disso, os pacientes demandam um monitoramento constante por parte dos centros de saúde, o que é muito complicado de ser feito. Por isso, os tratamentos são interrompidos com frequência, por decisão do paciente”, pontua. 

A equipe de reportagem entrou em contato com a Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania. Entretanto, não obteve respostas da secretária Maíra Pinto Colares ou do seu assessor. 

As questões psicológicas

Viver nas ruas não é uma situação fácil. Além da violência à qual eles são vulneráveis, esses milhares de homens e mulheres enfrentam os mais variados tipos de conflitos emocionais e psicológicos. Gustavo Cetlin, psicólogo do Centro de Atenção Psicossocial para Usuários de álcool e outras drogas (CAPS-AD), realiza acolhimento e acompanhamento psicoterápico de muitos moradores em situação de rua.

A República Maria Maria funciona há 17 anos no bairro Lagoinha

O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) é um serviço de cuidado psicossocial voltado para a população com sofrimento mental que possui bases territoriais e faz parte da rede SUS. Uma das modalidades do serviço é o Caps-AD, que enfoca o atendimento à população em uso abusivo de álcool e outras drogas. Nesse caso, o Centro realiza desde atendimentos individualizados até oficinas terapêuticas e atividades comunitárias que visam reintegrar o dependente químico à comunidade e inseri-lo no seu contexto familiar e social. “Muitas dessas pessoas fazem o uso de álcool e drogas por estarem em um ambiente de precariedade social. A decisão de procurar ajuda e tratamento deve vir destes, visto que o Caps não faz internações compulsórias”, afirma Cetlin. 

O aspecto psicológico das pessoas em situação de rua merece atenção especial, visto que muitos moradores possuem ou desenvolvem algum transtorno, mas “não se deve fazer uma rotulação da escolha pelas ruas com a loucura ou o sofrimento mental”, completa o psicólogo. Os motivos que fazem alguém ir para a rua são diversos e, na maioria dos casos, viver assim é a melhor opção. “Muitas vezes é na rua que eles conseguem construir sociabilidades alternativas, que aceitem e compartilham de diferenças não aceitas em outros lugares.” 

Com a criação de um ambiente mais solidário, pelas condições adversas e poucos recursos materiais, eles constroem família e laços de amor e amizade e códigos que regulam essa convivência. “Assim como qualquer laço social, as relações das pessoas em situação de rua oscilam entre a estabilidade e como fonte de sofrimento. A rua não apaga as vicissitudes da vida comum e essas pessoas estão tão sujeitas a regras de convivência como qualquer outra”, lembra.

Questões como auto-estima e liberdade existem paralelamente ao desprezo e à invisibilidade que sofrem. Cetlin comenta que “tornar invisível a pessoa é colocá-la à margem de processos sociais que levam ao sentimento de pertença e condições de sustentar alguma independência.” A falta das condições básicas de vida, como banho, comida e um ambiente protegido, afetam a auto-estima dessas pessoas e fazem com que ela se sinta ainda mais excluída. 

O Caps-AD trabalha essa questão com “respeito à sua condição humana, independentemente da sua legalidade ou natureza de suas escolhas e condutas”.  O indivíduo acostumado com a rejeição, quando é acolhido com respeito e dignidade começa a recuperar a dimensão de sua responsabilidade e como se vê diante do outro. 

De acordo com Cetlin, o desafio maior é, após ser acolhido, o cidadão passa a ter que seguir uma nova rotina, e não mais as regras alternativas que ele compartilhava com determinado grupo. Isso é um grande fator, já que afeta o seu sentimento de liberdade. “Em pesquisa recente com esses usuários, a liberdade era principalmente definida como liberdade de ir e vir, liberdade de locomoção, de não precisar se prender a lugar nenhum e ninguém. Contudo, nenhuma liberdade é absoluta e sim relativa às condições de vida possíveis. Assim, normalmente circulam por lugares que lhe dão alguma segurança e onde podem acessar serviços básicos, como banheiro, água, proteção policial e doações. A falta de compromisso com laços formais de família e trabalho, se por um lado permite livre circulação e independência nas decisões pessoais, por outro tem como efeito certa dependência de ofertas que não controlam. Ainda assim, muitos afirmam preferir essa liberdade que chamam de “liberdade do mundo””, conta Cetlin. 

Por outro lado, a invisibilidade e os processos de segregação tornam inacessíveis as contenções morais que nos regulam os excessos. A invisibilidade ajuda a tornar anônimos os possíveis atos de ilegalidade, já que protege o indivíduo de ser reconhecido ou visto na sua condição de morador de rua.

“De certa forma, tornar-se invisível é condição para viver essa liberdade, ainda que aos custos da ausência de recursos que tornaram a vida menos sofrida”. 

Então, mais do que construir abrigos e dar condições básicas de vida para as pessoas em situação de rua, o lado psicológico deve ser olhado com atenção, visto que todos são humanos e merecem dignidade. Os transtornos psicológicos que podem ser desenvolvidos ou agravados no período em que ficam nas ruas devem ser tratados, assim como a possível dependência em álcool e outras drogas. 

Os abrigos devem ter condições mínimas para uma estadia confortável. E a ideia da prefeitura é que mais abrigos permanentes sejam abertos, visto que eles, além de oferecer um lugar para dormir, procuram ajudar no tratamento de doenças e na reinserção ao mercado de trabalho e até mesmo num possível retorno do contato com as famílias. 

As equipes de atendimento devem ser preparadas para auxiliar e fazer com que o acolhimento dessas pessoas seja humano, de forma a que o indivíduo quebre um pouco a barreira da rejeição e invisibilidade a que tanto está acostumado.

Ana Martins, Ayana Braga, Bárbara Ferreira, Danilo Fernandes, Leonardo Sander e Victor Bastos

Da liberdade à violência. Os desafios da saúde

Grupo encontra, na amizade, razão para permanecer nas ruas 

Moradores em situação de rua sofrem violência constante

Grupo populacional tem seus direitos violados e ignorados diariamente

Apesar de a Constituição brasileira prever que todo cidadão tem direito à saúde, à alimentação, à moradia e a viver em segurança, moradores em situação de rua não desfrutam desses direitos. Eles vivem em situação de insegurança e, em muitos casos, sofrem atos de violência.

A violência sofrida pode ser verificada de diferentes maneiras. O fato de permanecer em situação de rua já é considerado uma violência. Luana Lima, advogada com atuação na defesa dos direitos humanos e assessora da Pastoral de Rua, caracteriza as outras formas: a psicológica e a física. A invisibilidade como eles são tratados é um dos efeitos da violência psicológica, que consiste na discriminação e no preconceito contra as pessoas nessa situação. As agressões e os homicídios fazem parte da violência física. 

Segundo dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais (Sesp), em Belo Horizonte, foram registrados, em 2017, 253 casos de violência contra moradores em situação de rua, o que representa um aumento de 50 casos em relação ao ano anterior. Nos três primeiros meses dos dois anos, registrou-se um aumento nas ocorrências, sendo 52 em 2016 e 79 em 2017. Entretanto, nesse mesmo período de 2018, houve uma queda em relação ao ano passando, sendo 64 casos registrados. Os tipos de violência referentes a essa estatística são assassinatos, lesões corporais, roubos e ameaças. 

O Estado, principal agente de segurança, é considerado o maior violador de direitos dessa população. O CNDDH (Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos) aponta que 65% das denúncias foram cometidas por agentes públicos em 2017.

Quantitativo de vítimas de crimes – Moradores em situação de rua
  201620172018
Minas Gerais224 (jan a março)
1015 (ano todo)
314 (jan a março)
1196 (ano todo)
335 (jan a março)
       BH52 (jan a março)
203 (ano todo)
79 (jan a março)
253 (ano todo)
64 (jan a março)
Fonte: Observatório de Segurança Pública Cidadã/Reds/Sesp

Luana Lima explica que a inexistência de políticas públicas, a insegurança, a falta de reconhecimento de direitos desse grupo populacional constroem o cenário da violência: “O Estado há muito tempo é omisso, isso agrava a situação. Vemos hoje que os direitos humanos para as pessoas que estão em situação de rua é praticamente inexistente. Temos algumas políticas na área da assistência, mas que ainda estão no começo”. 

A sociedade também ajuda a agravar o problema, pois a forma como ela, no geral, vê essas pessoas é carregada de preconceitos. A falta de conhecimento da realidade e de empatia propiciam a discriminação.

Crimes e inquéritos envolvendo a população em situação de rua

As agressões fazem parte do cotidiano do grupo populacional. Henrique, morador em situação de rua no bairro Coração Eucarístico, conta que a violência parte de algumas pessoas, especialmente aquelas que se incomodam com a presença dos moradores e os atacam.  “Quando tem polícia por perto, conseguimos contatá-los. Caso contrário, não. Os policiais nos levam para o pronto socorro. Chegando lá, eles fazem o boletim de ocorrência e vão embora”, conta Henrique.

A Polícia Civil, que abre os inquéritos e depois passa-os para o Ministério Público. A advogada Luana Lima conta que, em Belo Horizonte, a Promotoria de Direitos Humanos acompanha os casos: “Tivemos uma advogada na promotoria, Cláudia Amaral, que começou a acompanhar todos os inquéritos e processos em relação às pessoas em situação de rua, foi muito interessante. Com o acompanhamento pode-se trabalhar a questão da impunidade e a efetividade dos direitos”. É papel de todos acompanhar os processos, da sociedade, das instituições, da sociedade civil e também do Poder Público e do Sistema de Justiça. Em Belo Horizonte não há um acompanhamento às vítimas, apenas a assistência de algumas organizações não-governamentais. Existe uma grande dificuldade na identificação dos criminosos e há uma impunidade muito grande com relação a esses processos.

Por Matheus Leão

Acolhimento dos bebês tenta suprir falha na rede pública

A falta de integração entre os órgãos e as ações do Estado prejudica a reestruturação das famílias

Em 2016, 65 bebês nascidos em maternidades públicas foram transferidos para abrigos em Belo Horizonte. Esse acolhimento acontece quando a família biológica não tem condições de criar o recém-nascido. É uma decisão que deveria ser tomada apenas em casos extremos. Entretanto, de acordo com a Defensoria Pública da Infância e Juventude, e movimentos sociais que defendem o direito dessas famílias, isso não tem acontecido.

Os questionamentos sobre quem toma essa decisão e investiga as famílias levaram à suspensão da portaria 03/2016, medida judicial que havia formalizado o abrigamento compulsório de bebês de mães em situação de rua ou dependentes de drogas e álcool.A

lguns movimentos sociais defendem o direito de as mães em situação vulnerável cuidarem ou amamentarem os filhos. Alexa Rodrigues do Vale, técnica social da Pastoral de Rua da Arquidiocese de BH, já acompanhou várias mães em situação de rua que passaram por isso e afirma que a situação foi desestruturante do ponto de vista emocional: “A gente percebe inclusive consumo de drogas mais intenso em mães que tiveram seus bebês retirados”, afirma.

Casa acolhe bebês de até um ano

A Casa de Bebês, unidade de acolhimento institucional para crianças de até um ano, foi criada em função da portaria 03/2016. Esta determina que profissionais de saúde devem comunicar à Justiça o nascimento de crianças cujas mães, ou mesmo os bebês, estejam em “situação de grave risco, inclusive em virtude de dependência química ou de trajetória de rua”. Em fevereiro de 2017, o abrigo recebeu a primeira criança e, desde então, realiza o trabalho de acompanhamento das crianças encaminhadas.

É uma unidade de acolhimento que oferece uma alternativa para mães biológicas, porque tem uma proposta diferente dos outros abrigos da capital: os bebês não ficam lá para serem adotados por outras famílias, mas para voltar para as mães que estão em processo de reestruturação e recuperação.

Maria* é mãe de uma menina que está temporariamente no abrigo de bebês. Ela sente um grande desejo de ter a criança de volta, mas confia no trabalho realizado. “No início fiquei preocupada, mas penso nas meninas e tô gostando. Melhor se tivesse comigo, mas em breve elas estarão. Enquanto está aqui, tá ótimo. O cuidado é especial, eles são carinhosos com a gente, nos passam muita confiança, né. São segundas mães dos nossos filhos”, relata.

Situado na região da Pampulha, o local conta com uma boa estrutura. Oferece o acompanhamento pediátrico, psicológico, nutricional e demais áreas que se fizerem necessárias. São três cuidadoras que se revezam em plantões de 12 horas, entre 36 horas de descanso, para cuidar dos internos, que levam uma vida tranquila dentro do abrigo. 

“Eles acordam e têm horário pra tudo. Tomam banho, tomam remédios, dependendo do tempo eles vão lá fora, tomam sol, almoçam, dormem. As mães podem participar de todas as atividades. Quando estão aqui, são elas que cuidam”, afirma a técnica de psicologia Thais Martins, que trabalha no abrigo desde o início.

A técnica explica ainda que, como a região é distante do centro da cidade, a frequência das visitas é baixa. “As mães podem ficar de 9h às 17h, mas existe o fator distância. A maioria das mães mora na região Centro-sul, ou no Barreiro, então creditamos a não-frequência a essa distância. Nós fornecemos auxílio ao transporte para aquelas que visitam, pagando a passagem do transporte de ida e volta”, explica Thais, ressaltando o fato de que a unidade na Pampulha é a única que permite a visita sem marcações prévias e com mais de uma hora de duração.

A relação das funcionárias com os bebês não fica apenas no âmbito profissional. As cuidadoras criam fortes laços com as crianças, o que ajuda ainda mais no atendimento delas. “O mesmo amor que dediquei aos meus filhos dedico a eles. Até mais, pois para eles somos uma família que podem não ter”, afirma Andreia Tameirão, uma das cuidadoras da casa. 

Segundo Andreia, todos têm um carinho grande pelas crianças e sentem até quando elas deixam o abrigo, mesmo sabendo que esse é o destino provável delas. A cuidadora ainda defende as mães com veemência, tendo em vista os diferentes contextos que levaram cada criança até o abrigo. “Não posso julgar mãe nenhuma, a gente não sabe das dificuldades, não convivemos. Eu não sei o que elas passaram e o que estão passando”, afirma. 

“Eu não sei nem descrever a minha relação com eles, sou apaixonada pelas crianças. Hoje o João* foi pra casa de novo e me deu um aperto no coração. Sei que ele estará bem cuidado, sei que é o melhor pra ele e tudo que a gente faz aqui é em prol das crianças”, comenta Thais. Por mais que todos os funcionários sempre depositem fé na volta das crianças para seus pais biológicos, é impossível não se apegar a quem está diariamente no convívio.

É o caso de Belvita Machado, manipuladora de alimentos do abrigo. Por estar a maior parte do dia na cozinha,  não tem grande contato com as crianças, mas garante que isso não é problema. “Quando precisam de ajuda, sempre vou lá e brinco com eles. Gosto de dar a benção também.”

E, se o contato com as crianças já é pequeno, com as mães nem se fala. “Para mim, é raro ver as mães. Às vezes, tenho contato com uma ou outra, mas é difícil. Mesmo assim, tenho certeza que o colo delas são o melhor lugar para as crianças, mesmo com todo o nosso carinho. O melhor lugar das crianças é com a família”, conta Belvita.

O processo

Os bebês acolhidos vêm diretamente das maternidades públicas, porque a recomendação nº 005/2014 do Ministério Público de Minas Gerais é de que, em casos de negligência e maus-tratos ao bebê recém-nascido, bem como casos de “mães usuárias de substâncias entorpecentes”, devem ser encaminhados à Vara da Infância e Juventude. O juiz decidirá sobre o acolhimento ou entrega do recém-nascido a uma família substituta.

O acolhimento institucional é prejudicial para o bebê. Ele pode sofrer danos afetivos, prejuízos na estimulação dos sentidos e da atividade mental, retardos de socialização e de linguagem. É possível que ele não se apegue emocionalmente a famílias novas. Logo, não existe acolhimento cautelar. O abrigamento deve ser sempre a última opção, um recurso para situações em que não há outra saída.

Quem afirma é a defensora pública na 4ª Defensoria da Infância e Juventude Cível de BH, Daniele Bellettato. Da maneira como o procedimento do acolhimento compulsório é realizado hoje, há mais acolhimentos do que seria realmente necessário. Isso acontece porque a investigação da situação da família biológica não está sendo feita da forma correta. 

Do ponto de vista psicológico, Letícia Grecco, da Vara da Infância e Juventude, acredita que o ideal para mães que desejam ficar com seus filhos é que isso aconteça. Entretanto, a rede pública de assistência social e saúde, que deveria dar apoio a essas mulheres, não suporta todos os casos pela falta de profissionais e de integração. Por causa disso, Letícia acredita que há uma situação social precária, de uma rede que não funciona bem. Para ela, as recomendações e portarias formalizando o abrigamento compulsório foram tentativas de superar uma falha desse sistema, que não funciona. 

A técnica da Pastoral de Rua, Alexa do Vale, também vê a falta de integração da rede pública como principal problema. O ideal seria que mães em situação de rua tivessem assistência para se reestruturarem. “Só que isso dá mais trabalho para a política pública. Colocar a criança no abrigo é mais fácil. É um ciclo de exclusão e vulnerabilidade construído no país. Falta um trabalho articulado. É preciso que essa mãe seja acompanhada por um centro de saúde, pelo Cras (Centro de Referência em Assistência Social). Por isso que essa política dá trabalho, a Justiça precisa estar articulada com os serviços sociais, e isso não acontece”, lamenta.

Há outro agravante. Mulheres em situação de rua estão a cada dia em um lugar diferente. Mesmo que em um primeiro momento um centro de saúde cuide dessa mulher, em outros momentos ela recorrerá a outros órgãos, que não saberão do histórico dela. “Na verdade, acaba que ninguém sabe dessas mães e dessa família de forma correta. Não se tem notícias muitas vezes da gravidez ou do nascimento em casos como esse”, completa a psicóloga Letícia Grecco.

Alexa do Vale ainda conta que uma gestante em situação de rua tem prioridade de atendimento na Pastoral, que ajuda a realizar o pré-natal. No entanto, muitas mães têm medo de fazer os exames do pré-natal porque não querem declarar ao Estado que estão em situação de rua, com receio de que isso seja uma justificativa para o bebê ser recolhido ao nascer. No momento do parto, quando a maternidade vê que ela não fez o pré-natal, há o possível indicativo de que ela não tem interesse em cuidar da criança.

A lei

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, no artigo 101, que cabe ao Ministério Público fazer uma investigação e mandar um relatório ao juiz, para que ele decida ou não pelo acolhimento da criança. Em caso positivo, o juiz expede o mandado de busca e apreensão da criança, que será levada para um abrigo.

Com a portaria 03/2016 e as recomendações 05 e 06/2014 do MPMG, a defensora Bellettato explica que a etapa de investigação do Ministério Público estava sendo descartada  e os processos sendo levados diretamente ao poder judiciário. A solicitação de acolhimento vinha diretamente das maternidades públicas, feita pelos agentes de saúde e de serviço social. “A investigação acaba ficando a cargo do judiciário, que deveria ser um órgão imparcial e apenas dar a decisão sobre o processo. Além disso, como não há investigação do MP, os processos estão sem autor, o que é uma irregularidade”, explica Daniele.

Na maioria dos casos, essa solicitação de abrigamento das maternidades é atendida e o bebê fica retido no hospital, enquanto a mãe já teve alta. A defensora afirma que manter o bebê na maternidade sem ordem judicial é crime, pois o recém-nascido fica muitas vezes afastado da amamentação, sendo que hospitais não deixam a mãe entrar e ter contato com seu filho.

A parte da investigação é sigilosa. A mãe não é ouvida, não tem como participar e acaba acontecendo um julgamento prévio. Esta é uma outra irregularidade, como explica Daniele: “A gente vive num estado democrático de direito. Ninguém pode ser processado se não houver o devido processo legal. Tem que ter uma acusação, tem que ter direito de defesa e só depois é que você pode sofrer algum tipo de restrição.”

Para Daniele Bellettato, “todo o sistema tá funcionando de modo que essas mães percam seus bebês”, porque a investigação das condições da família biológica acaba se transformando em julgamento prévio, muitas vezes preconceituoso, dos agentes das maternidades públicas. “Esse monte de relatório que tem aqui é um telefone sem fio. Muitos são baseados em boatos. E isso não acontece nas maternidades privadas”. 

Por outro lado, do ponto de vista da psicóloga Letícia Grecco, a investigação feita pelos agentes de saúde e de assistência social das maternidades e da Vara da Infância e Juventude não é falha. Ela defende que esses abrigamentos compulsórios não são desnecessários porque, em sua opinião, o bebê que não é acolhido e adotado naquele momento provavelmente seria levado aos abrigos mais tarde, ao longo da infância. 

“É fácil dizer que estamos só tirando crianças das famílias. Nós estamos tirando-as de uma situação na qual elas não tinham o mínimo que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garante”. Para a psicóloga Letícia, é preciso pensar nos danos psicológicos que poderiam acontecer caso o bebê não fosse acolhido e ficasse sob tutela de uma mãe ou família que não tem condições de cuidar dele de forma minimamente apropriada. No entanto, a defensora Daniele Bellettato aponta que esse processo também não está de acordo com outros pontos do ECA, como os artigos 50 e 101.

A rede pública

A defensora ressalta que a pobreza, por si só, não indica caso de acolhimento. Pobreza é caso de aplicação de medidas sociais. O que se deve fazer é desenvolver aquela comunidade. Daniele reforça a impossibilidade de acolher todas as crianças pobres do país. Neste ponto, Letícia concorda que, se a mãe está em uma situação precária, é porque outras ações do estado falharam no passado. 

Para Daniele, faltam instrumentos para que famílias sejam independentes e consigam se cuidar e se manter: “Os serviços sociais não estão dando conta de prestar um bom serviço social, e clínicas, quando dão alta psicológica a crianças que foram abrigadas. Esses serviços tinham que ser mais ativos, mais integrados. Os órgãos são diferentes, e os serviços, desarticulados. A pessoa tem que dividir seu tempo entre trabalhar, visitar a criança no abrigo, ir a cada um desses órgãos. São compromissos que o familiar começa a abandonar porque não dá conta. Há pessoas que não tem dinheiro nem para ir à defensoria”.

Assim como é apontado por Letícia, existem casos em que o acolhimento se faz necessário. Daniele também comenta que, “muitas vezes, a mãe não quer, larga na maternidade e não aparece depois pra buscar, acontece sim. Mas o que não pode acontecer são famílias que querem cuidar dos seus filhos serem impedidas de fazer isso”.


Gabriel Gomide, Leonardo Parrela, Lucas Sanches, Marina Moregula, Rafael Machado, Samuel Lima e Victor Gama

Voluntariado

Pastoral e voluntários fazem trabalho social

Durante a distribuição de marmitas, há interação com os moradores

A Arquidiocese de Belo Horizonte reúne um conjunto de pastorais que concentram seus trabalhos sociais em situações relacionadas às políticas públicas. A atuação da Pastoral de Rua junto ao movimento das pessoas em situação de vulnerabilidade no espaço público é uma das mais presentes. 

Além de projetos como a campanha do agasalho, a Pastoral deu origem à Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte (Asmare) e aos grupos “Moradia para todos” e “Amigos da Rua”. Servindo como ponte entre o poder público e as pessoas em situação de rua, a pastoral tem como missão “ser presença junto ao povo da rua”. 

De acordo com Alexa Rodrigues do Vale, técnica social da Pastoral de Rua da Igreja Católica, o trabalho é mobilizar a população em situação de rua para “que sejam atores de sua própria história e da garantia de seus direitos”. Alexa afirma que fortalecer a dignidade da vida humana é um direito previsto na Constituição e um dos principais focos da pastoral. 

Só em 2017 foram realizados 11.283 atendimentos junto a 1.024 pessoas diferentes. Esse número foi estimado por meio das abordagens das ruas feitas pela Pastoral, pelo projeto Comunidade Amigos da Rua e suas mobilizações junto a essa população. “Afirmar direitos e buscar transformações são os objetivos da pastoral”, afirma Alexa. 

Voluntários preparam refeições que serão distribuídas

Além da Pastoral de Rua, existem diversos outros grupos voluntários que disponibilizam tempo e recursos para tentar transformar a vida das pessoas em situação de rua. De acordo com Alexa, só na região do Centro da cidade existem em torno de 20 a 30 grupos de voluntários que fazem doações nas ruas. 

Um deles é o Almoço Fraterno, realizado pela Fraternidade Espírita Camilo Chaves desde 1996. Todos os sábados, o grupo de voluntários se reúne na casa da Fraternidade para montar marmitas e distribuí-las para as pessoas em situação de rua em Belo Horizonte. 

Rógerio Rocha, presidente da Fraternidade, conta que a iniciativa surgiu de tarefeiros que, motivados pela máxima do Evangelho “Fora da caridade não há salvação”, sentiram a necessidade de ampliar o trabalho caritativo, dando alimento aos que têm fome. 

Ao todo há 36 pessoas que montam e distribuem aproximadamente 200 marmitas. Os alimentos resultam de doações. Daniela Andrade é voluntária há mais de um ano e explica o processo de preparação das marmitas: “Começamos primeiro fazendo uma limpeza geral das bancadas, do chão, das vasilhas, dos utensílios de corte, depois fazemos uma prece. Após a prece, fazemos a lavagem dos alimentos e começamos a cortar. Cada grupo fica com um alimento e vai se ajudando conforme vai terminando suas atividades. Aí tem a limpeza dos recipientes tudo de novo, enquanto os coordenadores preparam os alimentos, o feijão, arroz e a sopa”. 

Silvana Avellar, voluntária desde 2004, conta que o cardápio é sempre o mesmo e que “os alimentos escolhidos são os que dão maior sustância aos moradores de rua”. Cada marmitex contém abóbora, beterraba, pimentão, repolho, cenoura, batata, cebola, chuchu, tomate, arroz, feijão, ovo, linguiça e mandioca. “No entanto, dependendo da época do ano, quando um dos alimentos está acima do preço, complementamos com outro que está mais barato ou com preço acessível”, completa.

Outro cuidado que o grupo tem é com a embalagem. Elas são envolvidas em papelão cortado, pois as marmitas ficam muito quentes. Além disso, também distribuem água e eventuais doações, como pão de sal, no momento da entrega. 

No entanto, a preocupação vai além da entrega de marmitas. “O preparo e a distribuição do alimento proporciona um amparo espiritual e material às famílias carentes que muitas vezes não têm o mínimo necessário para se alimentar”, conta Rogério Rocha.

Leda da Silva ressalta esse outro aspecto do trabalho voluntário: “Vou na entrega de coração, a gente conversa com todos eles [moradores de rua]. Você sente neles a necessidade daquele alimento e de você estar presente na vida deles”.

Rogério ainda completa que “a atividade tem um significado espiritual para os que servem e os que recebem”. Os voluntários criam um vínculo com o projeto e com a equipe. “A gente é um grupo muito divertido, fica aqui fazendo brincadeira um com o outro e sempre procura manter uma conversa bem descontraída durante o trabalho”, comenta Daniela.

O preparo das marmitas dura cerca de quatro horas, depois os próprios voluntários enchem seus carros com os “marmitex” e seguem cada um em uma rota programada. Os carros passam pelas regiões do Centro da cidade e do bairro Lagoinha, onde muitos moradores já ficam aguardando. “Quando os carros chegam no ponto de distribuição, eles já vão se organizando em fila para receber a refeição. Distribuímos também folhetos de oração, todos pegam e gostam, inclusive isso foi sugestão de um morador de rua”, conta Silvana. O também voluntário Pedro Oliveira destaca a importância do trabalho que realizam: 

“A gente tem a oportunidade de ver um sorriso no rosto do outro, ter um agradecimento sincero. A gente vê no olhar, vê na palavra, vê no abraço, no aconchego. Então eu recomendo a todos: aquele que puder vir participar de alguma atividade, seja em qual casa que for, espírita, evangélica ou a que não seja atrelada a religião alguma, participe! Trabalho social é essencial!”

Júlia Roscoe, Laura Brand, Luiza Couto

Banho de Amor ajuda a resgatar autoestima de moradores

Projeto leva ducha, corte de cabelo e donativos a quem perdeu os laços de casa, família e até a identidade

Um levantamento realizado pela Prefeitura no final de 2017 estima que Belo Horizonte tenha 6,3 mil moradores de rua. É um dado preocupante, pois houve um aumento de quase 40% em relação à estimativa de julho do mesmo ano. Conforme a Secretaria Municipal de Políticas Sociais, a maior parte da população de rua tem ensino fundamental, é homem, com idade entre 25 e 50 anos. Ainda segundo o levantamento, 94% têm vontade de deixar as ruas, mas há dificuldades de adaptação a abrigos e albergues.                                                                          

Com o slogan “autoestima e esperança”, um projeto voluntário está mudando a vida de muitos moradores em situação de rua. O grupo Banho de Amor é formado por amigos que se uniram para oferecer condições básicas de higiene, bem–estar e saúde para as pessoas. Quem o idealizou foi o empresário Marcos Calmon, de 45 anos, que também é presidente da ONG Associação Banho de Amor. 

Segundo ele, o objetivo é levar duchas itinerantes para que moradores de rua possam tomar um banho. Além disso, o projeto oferece consultas médicas e odontológicas e “quentinhas” para que se alimentem. “Eu recebi um vídeo de um projeto semelhante em Recife. Me deu agonia, porque sempre fiquei aflito sobre a situação dos moradores de rua. Mandei esse vídeo para amigos e falei que criaria um projeto do tipo”, contou Marcos. Os amigos prontamente aceitaram e, cinco dias depois, o projeto já contava com 100 voluntários. Hoje, o Banho de Amor tem cerca de 1,3 mil voluntários, entre médicos, dentistas, responsáveis por marketing e comunicação e pela arrecadação de doações.

O grupo realiza os banhos sempre às terças-feiras, na Praça da Estação. Com isso, seu objetivo é dar dignidade às pessoas em situação de rua e elevar a autoestima delas. “É um projeto muito bonito, muito além de dar banho. É aumentar a dignidade e a autoestima, para que eles se sintam pessoas inseridas, pessoas humanas. Não somos assistencialistas, nosso objetivo é tirá-los da rua. Mostrar que eles possuem capacidade de sair daquela situação”, diz o empresário. 

“Não é só vim, tomar um banho e se sentir limpa. É uma pessoa que  vindo, saindo uma hora dessas, podia tá dentro de casa descansando, mas tá vindo pra rua dá atenção pra gente”, relata Andressa Hugo, assistida pelo grupo. Maurício Martins, outro acolhido pelo projeto, conta que, depois que recebeu a ajuda, sua autoestima melhorou e hoje ele está empregado: “Uma determinada assistência que eles trouxeram pôde me dar autoestima. Então, hoje em dia eu trabalho através deles. Então, eu tô muito satisfeito por isso”.    Maurício ainda fala sobre o carinho que recebe dos voluntários: “Eles têm amor. São pessoas que se dispõem a ajudar o próximo, a trazer o amor ao próximo”.

Para isso, os voluntários trabalham de diferentes formas: “Nós temos uma série de incentivos, de formas de facilitar essa reinclusão deles na sociedade. Casas de recuperação parceiras, cadastros para emprego, internação em clínicas para recuperação de drogas…então, a gente tem o processo completo”, conta Fernando Moreira, voluntário do projeto.

Para os moradores que vieram do interior em busca de melhores condições, o projeto auxilia no retorno para suas terras de origem. “Compramos passagem, damos lanche e encaminhamos ela (a pessoa) de volta”, explica Calmon. Para os usuários de drogas, existe uma parceria com três casas de recuperação que também profissionalizam os encaminhados. Por fim, existe ainda uma parceria com o Senac. “Conseguimos fazer o direcionamento para empregos. Tem empresas que auxiliam a gente, diante de uma pré-seleção e encaminhamento”, conta. “Não existe só pessoa ruim nesse mundo. Existe pessoas boas também. Se você prestar atenção e olhar ao seu redor, você vai ver que não é todas pessoas que é ruim. Tem gente boa nesse mundo”, comenta Andressa.

Rotina

Os voluntários se deslocam até os pontos de encontro e, quando chegam, organizam os moradores para que tomem banho. Em seguida, dão uma roupa nova e oferecem corte de cabelo, barba, atendimento médico e odontológico e a refeição. “É impressionante ver a diferença de quando eles chegam e quando eles terminam o banho. Eles ficam muito felizes, ficam muito agradecidos, saem cantando. É tão pouco pra gente, e pra eles tem um valor tão grande”, relata Marcos.

Além disso, os voluntários conversam e atendem pedidos dos moradores, como, por exemplo, o desejo de falar com a família. “Teve um que não via o irmão há muito tempo e ligou pra ele. O irmão passou o telefone da mãe e ligamos pra ela. Tinha mais de dez anos que esse morador não falava com a mãe”, conta o idealizador, emocionado.         O projeto ainda cadastra os moradores que estão dispostos a arrumar um emprego. Cadastram as habilidades e experiências, a fim de reinseri-los no mercado de trabalho.     

A ação não para por ai. No Natal, a equipe oferece uma ceia solidária. A refeição conta com vários pratos, que incluem peru e tender. O objetivo é envolver as pessoas em situação de rua e celebrar o Natal com aqueles que estão, muitas vezes, solitários ou abandonados. “O que mais distribuímos é carinho e amor. Lá eles têm alguém que tem um olhar diferente, alguém que dá o que eles mais precisam. É um abraço, uma conversa”, constata Marcos Calmon.

Doações e patrocínio

O banheiro foi doado por uma empresa e se desloca até o local na carroceria de uma caminhonete. Os produtos de higiene pessoal, de limpeza, roupas e alimentos são adquiridos por meio de doações e das parcerias com algumas empresas. “Estamos recebendo uma quantidade de doações imensa, lotamos uma sala em um prédio. Mas ainda precisamos de mais”, relata o empresário.

O idealizador ainda conta que o projeto já realizou parcerias com uma boate, que doou a renda da entrada ao Banho de Amor. Além disso, o projeto vem ganhando apoio da BHTrans e da Copasa, que auxiliam na infraestrutura necessária.  O projeto é ambicioso e pretende ampliar sua atuação. Um dos planos é fazer ações frequentes durante a semana e em locais diferentes.

Como ajudar?

São 12 postos de coleta de doações do projeto espalhados pela cidade. Roupas e sapatos masculinos são os produtos mais necessários,  mas recolhem-se também alimentos não-perecíveis e itens de higiene pessoal.

Confira o endereço dos postos:
Ana Carolina Souza, Ana Paula Pimenta, Eliza Dinah, Marcella Oliveira, Raíssa Cardosoe Silvia Senna

Garantir acesso à moradia segura é um objetivo da ONU

Belo Horizonte está inserida neste esforço, porque o Brasil é signatário de documento

Foto: Letícia Mattos

Seria possível imaginar uma realidade em que toda a população de Belo Horizonte tenha acesso à habitação segura, adequada, a preço acessível e aos serviços básicos? E um Brasil futuro em que todas as cidades e assentamentos humanos sejam inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis? Além disso, é possível pensar no fim da pobreza em todas as suas formas, em todos os países do mundo, com disponibilidade de água e saneamento para todos, reduzindo-se a desigualdade dentro e entre os países?

Esses são alguns dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) para serem cumpridos por todos os 193 países-membros até o ano de 2030. Parece utópico, pois nos encontramos na presente situação em que bilhões de pessoas ainda vivem em situação de pobreza, sendo impedidos de ter uma vida digna. Por isso, desde 2012 a ONU encontra-se mobilizada para estabelecer essa Agenda de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que contém 169 metas para direcionar o mundo para um caminho mais igualitário, resiliente e sustentável.

Criada em 1945, a ONU foi norteada por três princípios básicos: direitos humanos, progresso social e paz. No contexto do final da Segunda Guerra Mundial, a ONU tem o propósito de evitar novos conflitos por meio da diplomacia, com o intuito de se alcançar a paz mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 1948, como tentativa de estabelecer que, independentemente do país ou cultura, a dignidade inerente aos seres humanos deve ser protegida por direitos iguais e inalienáveis. E o progresso social é um objetivo sempre a ser perseguido. 

Em 2000, com o apoio de 191 nações, foram traçados os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). São oito metas: acabar com a fome e a miséria; oferecer educação básica de qualidade para todos; promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde das gestantes; combater a Aids, a malária e outras doenças; garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente; estabelecer parcerias para o desenvolvimento. 

Em 2012, no Rio de Janeiro, foi realizada a Conferência Rio+20. As questões de sustentabilidade eram o foco, tendo como principais objetivos a economia verde, a erradicação da pobreza e a estruturação para o desenvolvimento sustentável. Ao final da Rio+20 foi elaborado e aprovado o documento O Futuro que Queremos. Desde então, trabalham-se os três âmbitos da sustentabilidade. Os países, então, reafirmaram seu compromisso com “a promoção de um futuro econômico, social e ambientalmente sustentável para o planeta e para as atuais e futuras gerações.”

Seguindo o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a Agenda 2030 foi aceita e adotada por unanimidade pelos 193 países-membros das Nações Unidas, na Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável que ocorreu em setembro de 2015. É a proposta para dar continuidade no cumprimento dos objetivos que ainda não haviam sido totalmente alcançados, e acrescenta ainda objetivos que abrangem as três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social e ambiental.

“A nova agenda é uma promessa dos líderes para todas as pessoas em todos os lugares. É uma visão universal, integrada e de transformação para um mundo melhor.” Essas foram as palavras do então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, ao apresentar a Agenda 2030.

Em outubro de 2016 foi criada, através do Decreto nº 8.892, a Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, composta por 32 membros, com a finalidade de internalizar, difundir e dar transparência ao processo de implementação da Agenda 2030 no Brasil. O decreto incube a Comissão de elaborar plano de ação, propor estratégias, instrumentos, ações e programas; acompanhar e monitorar; elaborar relatórios periódicos; e, promover a articulação com órgãos e entidades públicas das unidades federativas, para a disseminação e a implementação dos ODS nos níveis estadual, distrital e municipal.

A cada gestão de Governo é apresentado um Plano Plurianual (PPA), que é o planejamento de médio prazo, no qual apresentam-se as prioridades e os investimentos de maior porte no período de quatro anos. O PPA de 2016-2019 apresenta uma convergência de 86% com os objetivos e metas propostos pela Agenda 2030, de acordo com o Relatório Voluntário Nacional apresentado pelo Brasil à ONU em 2017. A expectativa é de que o próximo Plano Plurianual a ser desenvolvido atinja os 100% de convergência com os ODS.

Belo Horizonte

O Objetivo 11 da Agenda é “tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis” e sua primeira meta é garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada, a preço acessível e aos serviços básicos. Segundo o cadastro único dos programas sociais realizados pela Prefeitura de Belo Horizonte, a capital mineira contabilizava 5.818 moradores em situação de rua, em janeiro de 2018. Esse número corresponde a 78% a mais que em janeiro de 2016. Mais da metade dessa população encontra-se na região Centro-sul.

Existem unidades de acolhimento institucional (albergues, abrigos e repúblicas) mantidas pela Prefeitura por quase todas as regiões da cidade. Elas totalizam cerca de mil e 300 vagas no conjunto, o que representa apenas 22% da atual população em situação de rua. Nesses locais as pessoas podem também se higienizar e utilizar banheiros, pernoitar, fazer suas refeições e, dependendo da tipificação da unidade, podem até morar. 

Belo Horizonte conta também com dois Centros POP, espaços localizados nos bairros Barro Preto e Floresta, que recebem demanda espontânea dos moradores em situação de rua ou encaminhamentos do Serviço de Abordagem. Esses centros atendem até 200 pessoas por dia, oferecendo oficinas socioeducativas, telecentro de informática, guarda-volumes, atendimento socioassistencial e local para higienização pessoal. 

No dia 11 de abril, a Prefeitura de Belo Horizonte apresentou um plano de intervenção para o enfrentamento das questões relacionadas à população em situação de rua, especificamente na região do Complexo da Lagoinha. Em matéria publicada no site da PBH, a secretária municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, Maíra Colares, diz que, desde o ano passado, a administração municipal “já vinha construindo uma proposta de intervenção com equipes de saúde e assistência social, que já começaram a atuar de forma integrada e qualificada na região, elaborando um plano intersetorial de atendimento, com o envolvimento de diversas áreas da administração, para intervenção na região”. 

No dia 12 de abril, o prefeito Alexandre Kalil anunciou medidas para viabilizar a futura regularização de ocupações na capital e também a intensificação das ações para evitar que novas áreas sejam invadidas. Ao lado do governador Fernando Pimentel, o prefeito assinou dois decretos: um que reconhece como Áreas de Especial Interesse Social (AEIS-2) 119 áreas ocupadas, entre elas as quatro que integram a Ocupação Izidora, e outro estabelecendo o Plano de Controle e Monitoramento de Áreas Públicas.

Os dados apresentados pela Prefeitura mostram que aproximadamente 65% dos moradores em situação de rua se encontram nas regionais de atendimento dos Centros POP. Esse dado levanta uma questão: os números apresentados são referentes às pessoas cadastradas pela PBH, mas não contempla um número total real. Segundo a Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, a região Centro-sul concentra de fato a maior parte das pessoas em situação de rua por oferecer o maior número de locais que prestam assistência social, é onde encontram-se dois restaurantes populares, além de ser a região de maior circulação de pessoas e dinheiro na cidade.

A reportagem entrou em contato com a Urbel e as Secretarias Municipais de Planejamento Urbano, e de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, mas não obteve retorno sobre a aplicação das medidas específicas de cada órgão no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, sobretudo o de número 11, que diz respeito ao direito e ao acesso à moradia.


Cartilha para pessoas em situação de rua:

Produção: Maria Vitória e Samantha Burton
Expediente desta Edição:
Alunos das disciplinas de Cibercultura e Jornalismo (4P), Edição Jornalística (7P), Radiojornalismo (5P)
Centro de Crítica da Mídia
Monitores do jornal Marco
LabFoto Coração Eucarístico

Edição: professoras Ana Maria Oliveira (texto) e Daniela Serra (web)
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