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“Nós que mudamos, eles não”: Entrevista com pesquisador Samuel Araújo

Em pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFMG, o demógrafo Samuel Araújo investigou a relação entre o desenvolvimento da identidade sexual e saúde mental com idade, gênero e suporte familiar. O trabalho, feito na Faculdade de Ciências Econômicas, é um dos vencedores do Grande Prêmio de Teses UFMG 2022, e também ganhou o Prêmio Capes de Tese.

Intitulada “Nós que mudamos, eles não”: a importância do suporte familiar, da idade e do gênero na análise do desenvolvimento da identidade sexual e da saúde mental de lésbicas, gays e bissexuais em Minas Gerais”, a pesquisa conclui que a saúde mental desse grupo é mais comprometida do que a da população hétero e cis do estado.

Sexualidade não é vestimenta

Em entrevista para o Colab, o pesquisador afirma que um dos grandes indicadores da diferença entre a saúde mental de pessoas heterossexuais e LGB são os processos de preconceito e estigma, que provocam repressão da pessoa recém-descoberta de sua orientação sexual. Em analogia, Samuel comparou uma tatuagem com uma sexualidade para melhor compreensão:

“Vamos supor que existe uma pessoa com o braço completamente tatuado e ela não quer contar pra família. Ela pode encobrir com uma camisa. Mas se tá calor, ela pode encobrir, mas vai ser extremamente desconfortável. Mas isso é uma vestimenta. Quando se diz sobre uma parte essencial de si, se torna impossível cobrir a todo momento”.

Samuel Araújo

Para ele, existe um custo psicológico muito grande para o grupo no “encobrimento” da própria existência, o que reduz a qualidade de vida e bem-estar psicológico das pessoas, condição menos vivenciada por pessoas hétero-cis – o que não significa que não passem por outros fatores de estresse e ansiedade. O que Samuel aponta é que os cenários são bem diferentes.

Existe um custo psicológico muito grande para o grupo no “encobrimento” da própria existência

Tempos diferentes para homens e mulheres?

Em sua pesquisa, o demógrafo constatou que as estruturas de gênero também são definidoras no processo de descobrimento identitário e sexual. Para ele, a socialização é primordial na possibilidade da descoberta, o que faz com que ela seja mais complicada para as mulheres, por não ser vista como algo legítimo e identitário.

Se para os homens qualquer desvio de comportamento está ligado a uma pretensão à homossexualidade, para as mulheres é diferente. Como a sexualidade para as mulheres não é vista como algo legítimo, esperado das mulheres, acaba que a gente releva muito as experiências de desejos a algo menor, o que invisibiliza relações de atração. Isso faz com que as mulheres demorem um pouco mais a entender o desejo e se perceber enquanto identidade.

Samuel Araújo

A pesquisa também mostra que os níveis de saúde mental são piores para as mulheres LGB, principalmente as mais jovens, o que ilustra uma dualidade entre as vivências femininas e masculinas. Enquanto o lado feminino é deslegitimado, com o desejo sendo entendido apenas como um carinho a mais por uma amiga querida, no lado masculino, qualquer “desvio de comportamento” é compreendido como homossexualidade.

Nesse sentido, o pesquisador afirma que a possibilidade de um processo transitório de um homem que se relaciona com outro homem é mais complicada na sociedade, uma vez que expressões de personalidade e de gênero são confundidas com sexualidade. “Qualquer comportamento, inclusive que nem está ligado ao desejo mas, sim, a comportamentos como falar mais fino ou ser mais afetuoso já é lido como uma indicação da homossexualidade”, afirma Samuel.

A luta é constante.

E a família?

No processo de descobrimento e aceitação, a família é entendida como essencial por ser o primeiro núcleo de socialização. Aqui, uma família que apresenta suporte e aceitação à comunidade LGBT tem maiores chances de que a pessoa homo ou bissexual se sinta confortável e mantenha a familia a par do seu descobrimento. Caso contrário, a situação é bem diferente.

Em uma família em que não há aceitação, a pessoa LGBT pode não querer se indispor e se manter em uma situação de desconforto. “Quando a família não cumpre o papel de suporte, ela aprofunda a sensação de rejeição, de que a pessoa está fazendo algo errado, afetando a sua saúde mental”, diz o pesquisador.

Lógicas que são possíveis, mas nem sempre concretizadas

Várias mudanças ao longo dos anos permitiram com que a esperança e perspectivas de vida fossem se alterando entre a comunidade. No ano de 2011, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi, enfim, liberado no Brasil, assim como a adoção de crianças por casais homoafetivos em 2009, o que permitiu com que as novas gerações pudessem enxergar a vida com possibilidades antes inimagináveis.

Viver uma vida abertamente LGBT era viver, de certa forma, uma marginalidade, tendo que se esconder em alguns lugares ou tendo que vivenciar a violência e a opressão cotidianamente.

Samuel Araújo

No entanto, ainda que pela lei, os direitos de casamento e adoção sejam possíveis, tais mudanças não mudam a mentalidade de todas as pessoas, incluindo familiares. Assim como comenta o demógrafo, mesmo que esteja tudo bem da porta pra fora da casa, as pessoas ainda têm que voltar e conviver com o preconceito. E, normalmente, ninguém quer estar em constante embate com quem está dentro de casa, então é escolhida a forma mais harmônica possível de convivência – mesmo que isso implique um apagamento próprio, que provoca quadros depressivos e de ansiedade.

O processo é lento e a comunidade ainda tem muito a conquistar.

Para o pesquisador, a situação é bastante conflituosa, uma vez que viver plenamente sua sexualidade e sua identidade de gênero só é possível diante da partilha coletiva e certo nível de exposição. Assim, em um cenário de preconceitos, uma pessoa pode se apaixonar, namorar, casar, formar uma família com uma pessoa do mesmo sexo, mas ainda ser vítima de estigma na sociedade e no núcleo familiar.

A fase da puberdade à adolescência e juventude é a em que esse estigma é mais latente, uma vez que as pessoas estão mais vulneráveis nos âmbitos financeiro e psicológico. O processo é lento e a comunidade ainda tem muito a conquistar.

A religião tem algum peso nisso?

Infelizmente, sim, principalmente em um estado bastante religioso como Minas Gerais, o que permeia a culpa. Segundo a pesquisa, é notável que pessoas em instituições religiosas, principalmente de base cristã, sejam mais intolerantes em relação a sexualidades que são diferentes da heterossexualidade. Cultiva-se, assim, um ambiente de exclusão e culpabilidade.

Samuel argumenta que a não aceitação da sexualidade pela instituição religiosa é um gigantesco fator na não descoberta e perpetuação do desejo – inclusive com associação da sexualidade ao pecado: “No momento em que uma pessoa LGBT está numa instituição que acredita e nessa instituição as pessoas falam que ser quem ela é, é pecado, que dar vazão ao seu desejo é pecado, ela acaba se retraindo, não só em se reconhecer mas, principalmente, em vivenciar o desejo”.

Para o pesquisador, essa situação cria um dilema em que a pessoa LGBT deve escolher ser verdadeira consigo mesma e conviver com a rejeição, ou se retrair e viver sem o preconceito da sociedade – preconceito este que é mais preponderante ainda no contexto religioso.

Tese: Nós que mudamos, eles não

Para acessar a tese “Nós que mudamos, eles não”: a importância do suporte familiar, da idade e do gênero na análise do desenvolvimento da identidade sexual e da saúde mental de lésbicas, gays e bissexuais em Minas Gerais da pós-graduação, acesse este link.

A pesquisa foi realizada pelo demógrafo Samuel Araújo Gomes da Silva, sob orientação da professora Paula Miranda-Ribeiro, com um método de abordagem survey online com 754 pessoas LGB residentes de Minas Gerais, dos quais 33 também participaram de entrevistas semiestruturadas à parte.

ColabCast: Nós que mudamos, eles não: Entrevista completa com pesquisador Samuel Araújo

Ouça o episódio do ColabCast com a entrevista na íntegra com o demógrafo Samuel Araújo Gomes da Silva, mediada por Giovanna de Souza.

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