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Uma pessoa branca utilizando Libras para se comunicar em uma videochamada. Há um notebook em uma mesa e ele mostra as duas pessoas que estão na videochamada: uma garota loira e um garoto com blusa amarela (esse garoto é o que está usando Libras)

Falta acessibilidade para pessoas com deficiência no Clubhouse

Usuários debatem invisibilidade de pessoas com deficiência

No início de 2021, o aplicativo Clubhouse virou uma febre no mundo todo. Sendo uma mídia social apenas de áudio, logo surgiram questionamentos sobre a acessibilidade para pessoas com deficiência, especialmente, para pessoas surdas. Posteriormente também apareceram reclamações sobre a dificuldade que pessoas cegas estavam enfrentando para utilizar o leitor de tela no aplicativo. A situação mostrou o despreparo dos empreendimentos e a falta de preocupação com a inclusão no meio digital.

As falhas do Clubhouse ressaltam que pessoas com deficiência não são uma prioridade para boa parte dos sites e aplicativos que estão no mercado digital. Para Guilherme Fernandes, autônomo de 23 anos e surdo desde o nascimento, não pensar em acessibilidade desde o início dos projetos é uma falta de sensibilidade por parte das empresas.

“Somos cidadãos também. Pagamos impostos, trabalhamos, produzimos, então merecemos ser incluídos como qualquer pessoa”. Ele ainda enfatiza a perda econômica. “Além da falta de empatia ao não incluírem as pessoas com deficiência, podemos pensar em lucros. Só no Brasil existem mais de 10 milhões de pessoas com algum nível de perda auditiva. Faltando acessibilidade para tais pessoas, o aplicativo deixaria de ter receita”.

A especialista em acessibilidade digital Fabíola Calixto, também cita o ganho financeiro como um dos fatores que estimula empresas a investirem em recursos acessíveis.

 Pessoas com deficiência no Brasil têm um potencial de consumo de 5,5 bilhões, segundo dados de uma pesquisa do Centro Iberoamericano de Autonomia Personal y Ayudas Técnicas (CIAPAT), organização especializada em feiras de negócios. E quando se está na internet, seu público é o mundo, não apenas o Brasil.

Fabíola Calixto

Recursos e ferramentas em sites

Dentre as principais dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência está a falta de descrição de imagens e de legenda em vídeos e áudios. Guilherme relata que é difícil se manter atualizado no ambiente digital, pois boa parte das informações são passadas por meio de vídeos sem legenda.

A dificuldade para o microempresário Gabriel Aquino, 28 anos, que é cego, é a falta de sites com descrições das imagens. “Eu entro nos sites, mas fico passando perrengue, com dificuldade de navegar, de encontrar as informações, pois a maioria deles não tem uma descrição de imagem”, relata o microempresário.

Gabriel reforça também a importância dos sites terem um código bem desenvolvido para leitores de tela. Segundo ele, além de muitas vezes faltar o básico, como semântica nos textos descritivos, não há padronização nas programações. “A forma de construir o site é algo básico, e percebemos que cada um faz de um jeito, não sabem utilizar o código. O site fica bagunçado para quem não enxerga. O visual às vezes está lindo, mas quando você vai ver o código, é bagunça. E pra quem usa leitor de telas, como eu, navega como se estivesse lendo o código do site”.

A melhor opção para que um site seja eficiente para pessoas com deficiência é ter ao seu dispor profissionais especializados. A jornalista e doutora em comunicação Kelly Scoralick é especialista em audiodescrição e explica que há muito o que descrever dentro de um site, e que esse trabalho pode envolver múltiplos profissionais. “Na internet, vamos ter tanto os vídeos como as imagens estáticas, e a audiodescrição vai abranger tudo. Para isso há equipes que contam com um audiodescritor profissional, um roteirista, um consultor e um locutor”. Ela destaca também que a locução para audiodescrição deve ser diferenciada de uma leitura normal.

Recursos para acessibilidade

Há também outros recursos que cumprem função de tornar um conteúdo acessível dentro de um site, como, por exemplo, o Hand Talk ou VLibras, plugins que traduzem o conteúdo de uma plataforma para Libras.

O Hand Talk pode ser contratado por empresas para ser instalado nos sites. Já o VLibras foi desenvolvido em parceria entre Ministério da Economia (ME), por meio da Secretaria de Governo Digital (SGD), e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A plataforma, além de estar presente em sites governamentais, também pode ser instalada gratuitamente por qualquer pessoa e utilizada como extensão no navegador. 

Gabriel considera importante a iniciativa dos portais de notícias que possuem a ferramenta Audima. O recurso converte o texto da página em áudio, e, segundo ele, facilita o acesso à informação não apenas para pessoas com deficiência. “A função do Audima é também para pessoas idosas, com alguma dificuldade com leitura, dislexia e outras”, explica.

Obrigatoriedade e Fiscalização

Desde de 2015 foi aprovada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que, dentre outros direitos, exige que todos os sites com domínio registrado no Brasil tenham acessibilidade. Porém, a realidade mostra que poucos têm o mínimo de recursos acessíveis. Para Gabriel, falta fiscalização para que a lei seja cumprida.

O microempresário avalia que até sites governamentais, que desde 2004 são obrigados a ter acessibilidade, são ruins no quesito. Ele relata situações que já passou com demandas de sua empresa no site da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).  “Eu tenho dificuldade enorme para, por exemplo, emitir nota fiscal. Eu vou emitir o documento e o site da prefeitura é péssimo. Tive que aprender qual o botão que faz o quê, pois os botões não têm nome. Imagina que tenha o botão limpar, o botão voltar e o botão confirmar. Aí ele fala pra mim só botão, botão, botão. Eu tenho que adivinhar qual é. Frequentemente, eu aperto o botão errado. Tudo preenchido e eu aperto o botão de limpar”.

Gabriel acredita que, em situações como essa, é necessário que os usuários reclamem com as empresas e exijam seus direitos. Porém, ele diz que mesmo enfrentando dificuldades no site da PBH, nunca procurou reclamar sobre o problema. Segundo a cartilha divulgada pelo Consórcio World Wide Web Brasil (W3C) o ideal é realmente uma primeira tentativa de solução entre o usuário e a empresa. Mas caso não haja uma resolução, o usuário pode procurar o Ministério Público (MP) e denunciar o descumprimento da lei. Para Gabriel, falta um órgão específico para fazer esse processo. “Falta periodicidade na fiscalização, pois não tem um órgão responsável para ficar lá verificando. Depende da gente denunciar”.

Segundo a especialista em acessibilidade digital Fabíola Calixto,  o MP atua apenas quando há denúncias, pois existe um excesso de demandas. Mas o problema da falta de periodicidade na fiscalização está sendo resolvido. “Em 2020 foi realizada uma concorrência pública, com o objetivo de contratar um sistema de software que fará o monitoramento ativo dos sites na internet, trazendo instantaneamente a informação dos sites que não cumprem a legislação. Isso fará com que as demandas judiciais na área aumentem consideravelmente e a ação do MP seja mais eficaz”, explica a especialista. 

Fabíola, que é CEO da Alavanka Digital, empresa especializada em recursos de acessibilidade digital, diz que, para além de evitar multas e o ganho econômico com o público, ser acessível agrega valor social à marca. “A empresa é vista como um lugar que vê o seu consumidor não apenas como uma margem de lucro, mas como um indivíduo único, e onde há preocupação com suas particularidades e necessidades. Mais do que a aquisição de um produto ou serviço, o consumidor hoje deseja uma boa experiência, e isso só pode ser proporcionado ao público com deficiência se o site é pensado para ele.”

Kelly Scoralick tenta não ser pessimista sobre o assunto. “Ainda que seja no viés comercial ou de querer mostrar que é uma empresa bacana, estamos humanizando, e, a partir disso, vamos conseguir direcionar o olhar também para esse outro com deficiência.”

Nas redes sociais  

Por ser surdo, Guilherme vê nas redes sociais a possibilidade de conversar e criar amizades com mais facilidade do que na “vida real”. Mas com as plataformas cada vez mais disponibilizando recursos de áudio, sem opções de transcrição, Guilherme depende da empatia dos usuários para continuar interagindo nas postagens. 

Já Gabriel vê como ponto positivo as redes sociais mais utilizadas  terem outros recursos de acessibilidade. Segundo ele, Facebook, Twitter e Instagram são plataformas interessantes para a pessoa com deficiência visual, por terem recursos que possibilitam a descrição alternativa da imagem, além de recompensar os usuários que utilizam essas ferramentas. “Por exemplo, no Instagram, nas configurações avançadas, dá para inserir um texto com descrição da imagem e sua publicação é impulsionada. Tem gente que usa isso de forma errada, inserem qualquer coisa só para ser impulsionado. Só que na verdade o intuito do Instagram é valorizar quem faz acessibilidade”.

Mas apesar dessas possibilidades, na opinião de Gabriel, os cegos usam mais o Facebook e o Twitter, por causa dos estilos de cada rede social. Se no Twitter há mais textos, no Facebook há a possibilidade de frequentar nichos. Já o Instagram é uma rede essencialmente de fotos e vídeos, o que reduziria os potenciais interativos para pessoas cegas. Gabriel ressalta também que há funcionalidades no Instagram que não têm acessibilidade nenhuma. “Os stories não são acessíveis. Eu nem entro lá. Quando eu entro, só fala assim, ‘foto de fulano’. Não tem recurso de descrever imagem. Se a pessoa coloca alguma escrita na imagem, o leitor não reconhece. Então, o único jeito de acessar os stories é com um filtro que se chama Green Screen. Esse filtro permite você gravar a voz por cima da imagem. Mas, ninguém usa. Ninguém sabe desse recurso”. 

A pesquisadora Kelly Scoralick considera que, além dos stories do Instagram, o TikTok, por seu formato de vídeos curtos, também dificulta a acessibilidade. “Normalmente, as pessoas não vão descrever a dancinha que estão fazendo. São 15 segundos e não dá para fazer uma descrição do que está acontecendo. Então, algumas ferramentas dentro do Instagram e do TikTok, não têm acessibilidade porque são plataformas que não são criadas para serem acessíveis”. Guilherme também acredita que há falhas no Instagram e ressalta a praticidade do Twitter para postar conteúdos acessíveis. “O Twitter é a rede mais apta para promover acessibilidade, pois lá é fácil descrever as imagens, enquanto no Instagram são opções bem escondidas.”

Boas práticas 

Mas para além das ferramentas nativas, há também as boas práticas dos usuários. Legendar um vídeo, transcrever um áudio e indicar o tom de fala podem ajudar. Uma iniciativa bastante disseminada é a hashtag #ParaCegoVer, que, conforme Kelly, tem outras variações, como #ParaTodosVerem, #DescriçãoDeImagem, sendo o objetivo de todas o mesmo: tornar o conteúdo acessível para pessoas com deficiência visual. A audiodescritora diz que quando o usuário descreve suas próprias postagens é importante se atentar aos detalhes. “O fundamental é descrever aquilo que está vendo. E não só fazer um resumo do que seria aquele assunto. Para fazer uma descrição de uma foto, eu vou começar por aquilo que chama mais a atenção do nosso olhar. Mas eu também tenho que descrever o que está em segundo plano. Não há certo ou errado, é necessário apenas contar pra eles exatamente o que que tá acontecendo.”

Gabriel diz valorizar as postagens que contêm descrição com a hashtag #UmCegoViu. Ele explica que vai nas postagens com #ParaCegoVer e acaba consumindo conteúdo de vários nichos diferentes. Ele conta a história de uma página de venda de bonecos de crochê, algo que ele nunca havia tido interesse antes, mas descobriu por meio da hashtag e acabou comprando um bonequinho personalizado, divulgando o trabalho da artesã, o que atraiu para ela novos clientes.

Fabíola Calixto diz que esse tipo de publicidade espontânea é muito comum na área. “Como qualquer comportamento de nicho de mercado, seu público faz a propaganda por você, ou seja, quando são identificados produtos e serviços acessíveis, a própria comunidade divulga entre si, trazendo um fluxo de consumidores muito maior, e organicamente.”

Ainda assim, as especialistas e os usuários consideram que há pouco conteúdo acessível nas redes sociais. Guilherme diz haver resistência das pessoas em fazer coisas simples, como transcrever um áudio de apenas 30 segundos. Para Gabriel, falta empatia. “São poucas as pessoas que se interessam com de descrever a imagem, de colocar uma legenda, de fazer libras. É difícil fazer todas as acessibilidades para todas as pessoas, mas a gente precisa começar por alguma e as pessoas não começam”, explica Gabriel. 

Guilherme enxerga o conhecimento como caminho para reverter essa situação. Ele acredita que os influencers digitais com deficiência têm a possibilidade de fazer essas informações circularem. “A principal maneira de entender sobre o que a pessoa com deficiência passa é seguindo e consumindo o conteúdo dela. Seguindo um surdo, você saberá que ele passa por dificuldades ao ver um vídeo, e entenderá que precisa de transcrição, legenda ou libras. Ao seguir um cego, você saberá que ele passa por dificuldades com imagens, então entenderá que precisa de descrição. Seguindo um autista, você saberá que ele tem dificuldade para entender ironia, então saberá que precisa dizer quando você está falando sério ou não”. Ele reforça ainda que cada deficiência é um espectro, ou seja, haverá pessoas com diferentes tipos de necessidades, mas as práticas acessíveis serão apreciadas por quem delas necessitar. “Estamos caminhando pouco a pouco, mas ainda há muito trabalho a fazer”, completa.

Tainara Diulle

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