Por Roberto Barcelos. Apesar das inúmeras contribuições do cinema hollywoodiano para a indústria audiovisual, existem certas lógicas de seu sistema que influenciam a construção social e a marginalização e estereotipização de certos grupos sociais em diversos níveis. O whitewashing é uma forma de violência simbólica que elimina a representação de etnias não caucasianas em filmes, séries, seriados e novelas, criando uma realidade narrativa composta por personagens de aparências homogêneas de acordo com o padrão de beleza vendido por essa indústria. Essa prática recorrente, ainda, elimina a representatividade e naturaliza preconceitos.
Antes da “limpeza” de etnias no audiovisual por meio do whitewashing, o teatro agia de forma quase semelhante, mas com a interpretação de personagens negros por atores que pintavam o rosto com carvão de cortiça. O blackface surgiu no século XIX durante os Minstrel Shows nos Estados Unidos, espetáculos teatrais populares que reuniam apresentações de humor, dança e música com artistas “fantasiados” de negros.
Essas caracterizações e performances apenas reforçavam os estereótipos que existiam em relação aos afros americanos. Seus traços eram desenhados pela maquiagem de forma exagerada, com lábios e narizes acentuados, combinados com personalidades irrealistas; os personagens eram sempre ignorantes e bêbados. Esses artifícios serviam para provocar o humor de forma racista e excluía a presença dos negros nos núcleos teatrais. O blackface também ganhou grande popularidade no Reino Unido, onde a emissora BBC criou o programa “The Black and White Minstrel Show” (1958-1978), protagonizado por britânicos pintados.
A prática do blackface chegou ao fim como movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, com a luta pela igualdade levada a cabo pela comunidade afroamericana, culminando com o fim da segregação racial. Contudo, a prática ainda acontece, inclusive no Brasil. Comediantes como Paulo Gustavo, conhecido por filmes como “Minha mãe é uma Peça” (2013) e “Vai que Cola” (2015), já causou polêmica ao interpretar a personagem Ivonete, uma mulher pobre e negra. A personagem de Paulo Gustavo é apenas um dos exemplos racistas que fazem parte da indústria do entretenimento nacional e internacional.
O whitewashing surge como herança desse passado racista e xenófobo, uma nova forma de eliminar ou deturpar a imagem de outros grupos culturais no audiovisual. A revista digital “Slate” publicou o artigo “The Seven Strategies for Defending Your Problematic TV Show or Movie – and Why They Don’t Work”, desconstruindo argumentos falhos que tentam, de alguma forma, defender filmes ou programas de televisão que possuem temáticas raciais problemáticas. A autora do artigo, Marissa Martinelli, comenta o lançamento da nova série do Netflix, “Punho de Ferro” (Iron Fist, 2017). A série é protagonizada pelo ator Finn Jones que interpreta o super-herói Danny Rand, mestre em kung fu e artes místicas asiáticas.
A história de uma personagem conhecedora de artes marciais e místicas orientais incentivou aos fãs de super-heróis solicitarem, por meio das redes sociais, que algum ator de descendência asiática fosse escalado para o papel. Contudo, a escolha do Finn Jones teve como consequência a baixa aceitação da série e inúmeras críticas da audiência. O que chamou a atenção da autora foram as desculpas e explicações falhas dadas por Jones para a escolha de um elenco caucasiano. Entre as falácias, Martinelli evidência como a própria indústria se culpa pela falta de representatividade, como um problema maior impossível de ser corrigido.
A autora concorda que existe um problema de representatividade na indústria, mas tratá-lo como uma característica inerente e inevitável ameniza a responsabilidade dos estúdios de não se interessarem em escalar atores de outras etnias para filmes. Podemos pensar essa lógica como um ciclo vicioso: atores asiáticos, por exemplo, perdem seus papéis para atores caucasianos e não conseguem ser reconhecidos pelo público e produtores de Hollywood. Eles sempre estarão em planos inferiores durante os processos de seleção de elenco em comparação com atores brancos.
Outro exemplo recente de whitewashing que chamou a atenção do público foi o filme “Ghost in the Shell” (Rupert Sanders, 2017), uma adaptação em live-action de um dos mais famosos filmes de animação japonesa. O enredo da obra acontece em um Japão futurista, onde a biotecnologia foi desenvolvida o suficiente para que partes do corpo humano sejam substituídas por equipamentos eletrônicos e robóticos. Para interpretar a protagonista do filme, Motoko Kusanagi, os produtores escolheram a atriz estadunidense Scarlett Johansson.
A personagem de Johansson ainda ganhou uma peruca preta com corte chanel para completar o seu visual nipônico, enquanto os atores que realmente possuem algum traço étnico japonês foram escalados para encenar vilões e capangas que ficam em segundo plano no filme. Contudo, um dos casos recentes que foi considerado mais absurdo nas redes sociais aconteceu no filme “Pan” (Joe Wright, 2015). A atriz Rooney Mara recebeu o papel da “Princesa Tigrinha” e embranqueceu de todas as formas possíveis uma personagem indígena.
Mara se defendeu após o lançamento do filme em uma entrevista para o jornal “The Daily Telegraph”. A atriz admitiu: “eu realmente odeio, odeio, odeio que estou desse lado da conversa sobre esse ‘branqueamento’ de Hollywood” e continua com a declaração: “Não quero nunca estar nesse lado dela novamente. Consigo entender por que as pessoas ficaram chateadas e frustradas”. Martinelli percebe em seu artigo a atitude de Rooney Mara como algo positivo. Apesar de ter colaborado com o whitewashing, é importante haver esse tipo de postura crítica que incentiva reflexões sobre a prática, evitando, assim, a perpetuação do apagamento de certos grupos em narrativas midiáticas.
Para que isso aconteça de fato é necessário que os atores, cineastas e produtores parem de defender a hegemonia caucasiana na indústria onde trabalham. Os efeitos desse termo, até mesmo seu surgimento, são reflexos de um passado xenófobo ainda não esquecido no meio social e cultural do teatro, audiovisual e outras formas de produção artística. A prática de exclusão e substituição fortalece o controle social, como parte de um mecanismo de marginalização de grupos étnicos.
Para saber mais, leia o artigo publicado na Slate Magazine.
Roberto Barcelos é graduando do curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e monitor do Centro de Crítica da Mídia.