Por Juliana Gusman. Para Vladimir Safatle a convergência midiática não diz respeito somente aos dispositivos, mas, principalmente, à homogeneização dos discursos que inibe a emergência de narrativas divergentes.
O filósofo de 43 anos é chileno de nascença e brasileiro por escolha. Ou pela falta dela. A ascensão de Augusto Pinochet ao poder encurralou sua família, que trilhou o único caminho possível: o Brasil. Chegaram em 1973 e se instalaram, primeiramente, em Brasília e, em 1987, mudaram-se para Goiânia. Em 1991, Safatle foi para São Paulo para iniciar seus estudos universitários. Cursou, curiosa e simultaneamente, publicidade na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Em 1997, concluiu o mestrado em filosofia na Universidade de São Paulo com dissertação de título O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado. Em 2002, concluiu o doutorado em Espaços e transformações da filosofia na Universidade Paris VIII, com tese intitulada A paixão do negativo: modos de subjetivação e dialética na clínica lacaniana. Desde 2003, Vladimir Safatle é professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Em 2011, iniciou sua coluna semanal do jornal Folha de S. Paulo. Em 2013, filiou-se ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Atualmente, faz política na escrita.
Em palestra realizada pelo Curso de Comunicação Social no dia 28 de março, na PUC Minas, Safatle propôs um questionamento acerca dos afetos que nos movem. O professor foi guiado na palavra pelo tema A economia psíquica da sociedade de consumo e suas patologias. Falou filosoficamente sobre comunicação. A começar pela publicidade.
Para compreender o funcionamento de algumas peças centrais do imaginário global de consumo, Safatle parte de noções de corporeidade e dos avanços tecnológicos estabelecidos a partir dos anos 1990. A mídia mundial, nesse contexto, adquiriu a forma de conglomerados e transnacionais, tomando as rédeas de sua economia política e dos meios de comunicação. “O caráter sistêmico que se estabelece é de tal ordem que mesmo as linguagens midiáticas são produtos de linguagens midiáticas anteriores, inaugurando um processo de re-mediação, que que acaba por fortalecer ainda mais padronização das linguagens”.
No mercado publicitário, conforme Safatle, esse processo inerentemente conflitante se evidencia na tradução e reprodução de campanhas globais, voltadas para mercantilização do discurso da dissolução do Eu como unidade sintética. Até então, o ideal publicitário de belo era pautado em corpos harmônicos, saudáveis e jovens. O que se vê no final do século XX são reconfigurações nesse padrão. Novos corpos, que desafiavam a forma hegemônica, foram veiculados em campanhas diversas. O corpo passa a ser encarado como objeto pronto para transformações. Deixa de ser limite para se tornar interface de ressignificação constante. “Uma superfície de reconfiguração que coloca o sujeito diante da instabilidade de personalidades múltiplas e da desintentidade subjetiva”.
Surge um movimento paradoxal. Há a mercantilização do avesso da forma que havia antes. A própria insatisfação se tornou mercadoria. A revolta se evidencia puramente espetacular. A natureza oligopolista que se aprofundou através de centros de tecnologia, entretenimento e informação convergiram a produção, a recepção e a gestão de culturas, padronizaram linguagens, singularizaram discursos, aniquilaram possibilidades. Multiplicaram-se falas iguais, com aparência plurais, sobre as mesmas coisas.
Se o tema da palestra que ministrava o levou para discussão da publicidade contemporânea, as perguntas que seguiram alteraram seu rumo: miravam o jornalismo. Para Safatle, ele também não escapa do afunilamento simbólico do regime de convergências. Grandes grupos midiáticos produzem discursos homogêneos, narradas pelos mesmos sujeitos, ancoradas no medo espetacularizado. Essa hiperconvergência é, em determinada medida, consciente.
“O que acontece quando você organiza toda a experiência do mundo da partir de uma só gramática?”.
Há várias coisas que ocorrem, mas elas desaparecem. Muitas vezes por que, literalmente, não são notícia, a despeito dos interesses que controlam o processo de produção. Para Safatle, a concepção de notícia está ligada a certa ideia de tempo, impacto, e visibilidade. Dentro dessa gramatica, organizada em regimes específicos guiados por essas ideias, não há lugar para o acontecimento. Não há espaço para novas narrativas. Não por que elas não são decisivas, centrais ou não fazem história, mas por que o regime de afetos existente inibe outros olhares.
“O jornalismo percebeu muito rapidamente a audiência do medo”. Ao fazer o medo circular, ao fazer com que as pessoas focalizem sua atenção dentro do instante, dentro do presente, elas param de fazer o que estão fazendo e começam a consumir informação. “É produzido um tipo de acontecimento que é feito para esse regime de imprensa, que é um regime que sabe muito bem que quando não há a circulação do medo, as pessoas param de consumir a informação. Quando você tem essa circulação, elas voltam, imediatamente. É um modelo que se constitui em um regime de convergência inacreditável”. O caso brasileiro, para o filósofo, é um caso exemplar. “O Brasil é um dos poucos países que você vê o mesmo sujeito que é jornalista no rádio ser comentarista na televisão, da mesma empresa. Você tem o mesmo grupo de 20, 30 pessoas que vai circulando, fazendo com que a opinião fique completamente convergente”. Impede-se radicalmente a possibilidade de uma presença plural. “E em situações de instabilidade como agora, isso fica de uma evidência brutal. É um sistema que se adequou a circulação de certos afetos, entre eles o medo. E isso produz certos efeitos. Vai produzindo atos, que são constituídos exatamente por esse regime de funcionamento da informação”.
Não há narrativas que escapam desse sistema. “Não há mídia alternativa. Se pegarmos a estrutura dessas mídias, da rede social, percebemos como elas são reverberações de notícias da mídia tradicional”. O sistema de retroalimentação é enorme. Informações veiculadas em redes sociais não teriam relevância se a mídia tradicional não fosse obrigada a veicular as pautas que surgem nesses meios. E, muitas vezes, a mídia hegemônica é a própria pauta. Os mesmos conteúdos são transformados em narrativas distintas, e possibilidades narrativas que fogem da lógica de produção dominante permanecem apenas no campo do possível. Existem apenas como ideia abstrata.
“Você pode chegar em situações inimagináveis. Você pode realmente tirar a coisa completamente do ar. A gente já viu isso no Brasil várias vezes. Existe uma retroalimentação fazendo com que as mídias ditas alternativa sejam quase um espaço da mídia tradicional. É um espaço um pouco difícil de controlar, mas é um espaço muito vinculado. O lado perverso da coisa é dar a impressão que você tem uma abertura maior de informações e de formação de opinião sendo que isso não é verdade. É o contrário. Criou-se um sistema muito mais convergente e de muito mais difícil permeabilidade. Ao invés de pressionar os veículos que têm uma escala de presença muito maior, ao invés de pressionar para que o Estado regule, obrigue que eles tenham uma pluralidade de opiniões, um espaço maior de informações, você vai criando essa espécie de sistema de compensação. De todos os sistemas, esse acabou por ser o mais perverso”.
Os enunciadores não mudam. E nem os afetos que os movem.
É possível sugerir uma publicidade cidadã, desvinculada do interesse do capital e da expectativa de lucro? É possível pensá-la, ou fazê-la, criticamente? É possível produzir conteúdo jornalístico que não seja movido pela audiência que o medo oferece? É possível propor uma ação contra-hegemônica de fato inovadora? É possível quebrar o sistema de afetos que cerceia a criatividade?
Na configuração atual, não se pode imaginar novas formas de se fazer publicidade. Não se pode arriscar novas formas de fazer jornalismo. Não se pode propor novas formas de refletir a comunicação. “Como não há possibilidade de modificação da situação dada, nada se faz. Parte-se do pressuposto que a gente já conseguiu enxergar todas as potencialidades das relações das pessoas com as linguagens que elas utiliza. E talvez não seja verdade”.
Safatle afirma que o que pode se modificar são as configurações. Mas dependem de uma ruptura sistêmica. E, ainda mais, da perspectiva crítica de nossas escolhas.
PARA SABER MAIS:
Juliana Gusman é graduanda do curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e monitora do Centro de Crítica da Mídia.