Por Caíque Pinheiro.
Adriana Calcanhotto está de volta ao país. Depois de um tempo em alguns lugares da Europa, como Portugal, onde ensinou sobre poesia brasileira na Universidade de Coimbra, ela traz um espetáculo repleto de intertextualidades, com poderosas canções inéditas e releituras. A Mulher do Pau Brasil começou sua turnê em Belo Horizonte, na noite da sexta-feira, 10 de Agosto, em um Palácio das Artes inteiramente ocupado pelo público. Sua apresentação teve uma bela parte introdutória, um núcleo muito significativo e “encerramentos” dignos de nota.
Cortinas abertas: há dois músicos em cena e ladeiam uma boa rede de descanso que balança suavemente, no ritmo de um corpo que parece estar ali faz tempo – vai quase parando. A Adriana Calcanhotto que sai de lá mal chegou, como sabemos, mas sua prioridade foi descansar! Um pouco arrastada, com o sobretudo escuro que poderia estar vestindo em Portugal, ela empunha uma guitarra que é tocada com vigor e que, em parte, contrasta com o tudo o que vimos então e o com o que vai ser cantado depois: “Trabalha no negócio da folia! Trabalha no negócio da orgia! Trabalha no negócio da poesia! (…) no negócio do ócio, do ócio, do ócio!” – diz o refrão de sua primeira música.
Aos 52 anos de idade e do começo ao fim do espetáculo, Adriana propôs diálogos – em gestos e sons – com obras que a um só tempo fundam e contestam noções de brasilidade: se sai da rede com a preguiça de Macunaíma, reivindica, como José Celso Martinez Corrêa para o programa Roda Viva, o lugar de Trabalhadora do Ócio. Fazê-lo agora é muito delicado – o diretor, aos 81 anos de idade, empreende uma contenda para preservar o Teatro Oficina, que fundou no bairro do Bixiga em São Paulo, opondo-se a Silvio Santos, que quer instalar na vizinhança um complexo comercial.
À abertura com A Mulher do Pau Brasil, seguem-se duas canções baseadas em poemas: A dor tem algo de vazio, que Cid Campos musicou a partir de Emily Dickinson, e Mortal Loucura, que José Miguel Wisnik preparou a partir de Gregório de Matos. Autoirônica e autoapreciativa, além de muito elegante, Calcanhotto anuncia que apresentará uma música da mesma linhagem das anteriores, e assim emplaca um de seus sucessos: Esquadros
O núcleo do espetáculo tem Adriana Calcanhotto trocada: ela deixa o sobretudo escuro com que chegou de Portugal e veste um intenso vermelho, sem mangas – bem leve da cintura para cima; e longuíssimo – bem pesado da cintura pra baixo. É a roupa mais apropriada para o país em que chegou. Assim ela apresenta outros de seus sucessos e aciona alguns músicos do cânone nacional (nem sempre interpretando canções deles): Gilberto Gil, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes.
Esta parte – a mais extensa do show – é encerrada com “Vamos comer Caetano”, de sua autoria, em performance extasiante na qual a cantora toma como instrumentos um prato de porcelana e um talher, fazendo-os soar como as batidas de sambas do recôncavo baiano, numa relação intertextual pouco comum. Tocar um prato faz pensar, de longe, em panelas batidas: a diferença absoluta se dá quando o alimento imaginado ali (a potência do som caetanesco) é oferecido a todos. Adriana então lambe os beiços e as luzes do palco são apagadas. Parece que o show vai acabar, mas ainda não.
Novamente de sobretudo, Adriana retorna ao palco para mais de suas músicas e Caravanas, de Chico Buarque, acompanhada dos músicos Bem Gil e Bruno Di Lullo – que apresentou em muitas circunstâncias, num gesto que também é simbólico: importante reforçar as parcerias; todas, mesmo que poucas. A roupa da viagem indica que este sim pode ser o final do show, mas o encerramento definitivo de A Mulher do Pau Brasil se dá depois de mais uma saída: Adriana Calcanhotto volta com o vestido vermelho, a roupa sem mangas e paradoxalmente pesada que escolheu para o país e canta, de modo impressionante, o Juízo Final de Nelson do Cavaquinho, mais de suas canções e – emprestando de Roberto Carlos – que é terrível. Assim acaba seu show, que retorna a Belo Horizonte em 22 de novembro de 2018.
Jan Niklas, para O Globo, compreendeu o espetáculo como uma refeição, na chave da antropofagia oswaldiana, e escreve que “A artista mostra que voltou de Portugal com o olhar ainda mais afiado sobre a identidade do país de “Macunaíma”. Assume para si o desígnio intelectual tupiniquim das grandes explicações sobre o Brasil. O que já fica claro nos versos de abertura: “Chamai-me/ A Mulher do Pau Brasil (Cham I’m A Mulher do Pau Brasil)”. Seu texto destaca, ainda, outras passagens do show e pode ser acessado aqui.
Caíque Pinheiro é mestre em Comunicação Social pela PUC Minas e membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrariva.