Por José Victor Fantoni.
“Projeto Flórida” é o sexto filme do diretor Sean Baker, que, em 2015, alcançou notoriedade com “Tangerine”, narrativa sobre o cotidiano de duas mulheres trans, colocadas à margem da sociedade, lutando pela sobrevivência no duro mundo da prostituição. “Tangerine” e “Projeto Flórida” se destacam pela capacidade de criação e imaginação, potência crítica e pelo baixo orçamento – ambas as filmagens foram feitas em um estilo seco, sendo a primeira integralmente por câmara de celular.
O filme é protagonizado por Moonee (Brooklynn Prince), garotinha de apenas seis anos, que mora com a mãe, Halley (Bria Vinaite), num hotel barato chamado “Castelo Mágico”, em Orlando, Flórida. Halley é uma mulher de vinte e poucos anos, mãe solteira. O hotel é destino para quem busca morada em um lugar de diárias acessíveis, opção contrastante e à margem do mundo mágico e fantasioso dos parques temáticos Disney. Outras dezenas de famílias carentes também vivem nos quartos. Essas famílias vivem um “american dream” às avessas e constituem uma fração de excluídos pela especulação imobiliária do capitalismo desenfreado.
A narrativa perpassa o ponto de vista das crianças que moram no hotel, principalmente o da garota Moonee. O contraste entre a dura realidade das famílias dos pequeninos que vivem nos arredores e o mundo luxuoso e imagético dos poderosos castelos, palacetes e parques temáticos é gritante. A “ralé” estadunidense, composta pelo white trash, muitos latinos e negros, sobrevive e paga o dinheiro dos quartos como pode, trabalhando em sub-empregos e/ou arrancando gorjetas dos ricaços.
Em meio a tudo isso, as crianças fazem seu próprio “Magic Kingdom” para fugir do cotidiano estressante e trágico dos adultos. Enquanto não podem participar do mundo mágico de Walt Disney, onde a entrada fica localizada praticamente do outro lado da rua, os pequeninos, dotados de muita imaginação e criatividade, transformam o espaço onde convivem em palco de aventuras, histórias, diversão e transgressão (em uma delas, provocam um incêndio em um conjunto de casas). As personagens mirins são construídas aos poucos, para que o espectador desenvolva cautelosamente a afeição.
Um personagem importante é o gerente do “Castelo Mágico”, Bob (William Dafoe), que acaba sendo o responsável por impor limites nas traquinagens dos menores. No entanto, ele sabe protegê-los, como na cena em que expulsa um pedófilo. Bob é figura central da trama, agindo, por muitas vezes, de maneira ríspida e autoritária, porém fortemente solidária, talvez por ser um conhecedor da realidade que vulnerabiliza os moradores.
Com personagens tangíveis e atuações naturalistas, principalmente as do núcleo infantil, o filme possui certo tom documental. Outro elemento realista na construção e desenvolvimento do enredo é a dramaticidade da vida de Halley, que começa a se prostituir para pagar as contas. Desde o começo, Halley se mostra uma mãe preocupada com a filha, porém inexperiente. Uma mãe que é julgada pelo sistema patriarcal por não exercer uma maternidade que se encaixa nos padrões impostos. Ela trata a filha de igual para igual, sem infantilizá-la, isto é, Mooney poderia muito bem ser uma personagem adolescente amiga de Halley. Apesar de envolver a filha em problemas que são recorrentes na vida de mulheres jovens pobres, vítimas do sistema machista e conservador, Halley não pode ser enquadrada como uma mãe cruel. O filme escapa, assim, a dualismos fáceis e expõe a impossibilidade de uma moral bem delineada. A delicadeza e o cuidado na lapidação de Halley levam-nos a nos solidarizar com a personagem.
Nos momentos finais do filme, quando percebe que será separada de sua mãe pelo conselho tutelar/, Mooney protagoniza uma cena tocante: foge até a casa de uma amiga, para que ambas, em ato rebelde, invadam a Disney, possivelmente com o intuito de se esconderem em um castelo de princesa qualquer. O plano sequência é inteiramente filmado por trás das meninas e, de maneira genial, rompe com a dramaturgia anterior. Uma fuga histórica, que certamente representa o sonho de muitos das classes subalternizadas da Flórida, sejam adultos ou crianças: escapar dos problemas estruturais e entrar no mundo fantasioso vendido muito bem pelos parques temáticos daquele estado.
“Projeto Flórida” evidencia, em belíssimos e irônicos tons pastéis de roxo e rosa, uma parcela da população estadunidense que é varrida para debaixo do tapete em muitos filmes, documentários, propagandas, campanhas de marketing, agências de turismo e pelo verdadeiro vilão do filme: o capitalismo, que se encontra, atualmente em mais um ciclo de crises.