Por Victoria Silva Rodrigues. Em 2018, o diretor italiano Luca Guadagnino, autor do aclamado Me Chame Pelo Seu Nome (2017), dividiu opiniões sobre seu remake do famoso Suspiria de 77. Ovacionado por alguns, odiado por outros, o próprio Argento, em entrevista, posicionou-se: “traiu o espírito do original”, moderando em seguida e pontuando o produto como “refinado”. É inegável que a obra de Guadagnino sequer se aproxima da lisergia visual construída por Dario, entretanto, alguns aspectos notáveis explicitam o poder de uma história múltipla que acompanha o amadurecimento de uma geração e da sociedade em geral.
A fantasia e o mistério, o suspense e o terror, sempre despertam na audiência uma curiosidade peculiar. Dentro das obras que fazem uso destas linguagens, é inegável a singularidade do clássico de Dario Argento, Suspiria (1977). Susie Bannion (Dakota Johnson) é uma jovem bailarina norte americana que aventura-se na prestigiada Markos Tanz Company, em Berlim, em uma Alemanha dividida pela tensão pós Segunda Guerra Mundial (1977). Sua chegada é simultânea ao desaparecimento de uma das alunas, Patricia (Chloë Grace Moretz), de forma misteriosa. Progredindo em sua dança sob orientação de Madame Blanc (Tilda Swinton), a garota cria uma amizade com outra dançarina, Sara (Mia Goth), com quem compartilha pressentimentos ruins em relação a escola e suas proprietárias.
O “terror”, gênero marcado por cores escuras e tons frios e fechados, que remetem a aspectos emblemáticos do antigo expressionismo alemão, é subvertido por Argento, que quebra e expande parâmetros vigentes até então, utilizando cores que outrora não se relacionavam com o gênero. Vermelhos, laranjas, azuis, verdes e amarelos vibrantes e contrastantes são regra na paleta cromática que mistura cores complementares e suplementares em suas mais diversas nuances e combinações, construindo o onírico pesadelo vivido pela protagonista Suzy, uma jovem bailarina estadunidense que se aventura em uma escola de dança na Alemanha.
A cenografia é composta por ambientes simetricamente elaborados em forma e cor. O enquadramento faz com que o telespectador encolha-se admirado frente à expansividade do universo concebido por Dario. A fantasmagórica trilha sonora produzida pela banda Goblin ajuda a construir, como feitiço, a atmosfera tensa e delirante, o que aumenta exponencialmente a sensação de que aquilo que vivemos junto à protagonista é uma alucinação. Gradativamente, através de cenas longas e densas, o espetáculo de cores vibrantes se transforma em uma das maiores obras de terror e suspense dos anos 70.
Optando por tons terrosos, fechados e sóbrios, Guadagnino renega o maior legado da psicodelia proposta pelo mestre Argento. A paleta cromática fria e a trilha sonora composta por Thom Yorke (vocalista da banda Radiohead) atestam que apesar de possuírem o mesmo título, o novo Suspiria toma a liberdade de construir sua própria identidade e seu próprio conceito, utilizando o roteiro e a história como chave principal.
O clássico de Dario possui uma narrativa lenta, dispersa e sem muitos preciosismos: a história não possui muitos altos e baixos; Jessica Harper, atriz que interpreta Suzy, entrega à câmara uma protagonista unidimensional. Já a releitura de Guadagnino possui camadas a serem analisadas e refletidas. O enredo e as personagens continuam as mesmas, apesar de Guadagnino ter acrescentado o psicólogo Dr. Josef Klemperer, interpretado pela renomada Tilda Swinton, que também dá vida à ofídia Madame Blanc, bailarina de renome e diretora artística da escola de dança.
Porém, o que une as duas versões é a mística, intrínseca à bruxaria. O roteiro de 2018 é pincelado por momentos históricos que convergem com os últimos anos da segunda onda do feminismo, na década de 70. E tais rasgos históricos não são postos sem profundidade: é como se Guadagnino compreendesse a figura da “bruxa” para além do misticismo, como a mulher que se impõe fora da ordem estrutural e rompe com estereótipos.. A consciência de que a figura da “bruxa”, apropriada e caricaturizada pelos estúdios hollywoodianos, criada por volta do século XV por uma Igreja Católica violentamente opressora e que implicou na morte de centenas de mulheres inocentes, é evidenciada a partir do momento em que o empoderamento feminino, tido aqui como o ato literal de dar poder às mulheres, não é retratado como normalmente o vemos – mulheres com histórias de superação ou heroínas intocáveis – e sim com feiticeiras frias, cruéis, complexas e pérfidas, com múltiplos níveis a serem absorvidos em cenários caóticos e sanguinários.
Aqui, tudo o que tange a uma expectativa de feminilidade dócil, recatada e do lar, não possui espaço. Assim como visto no aclamado A Bruxa (2015), de Robert Eggers, tal figura é vista como um símbolo de libertação feminina. O arco das personagens, suas personalidades e seus conflitos atestam que as mulheres aqui retratadas não foram feitas para serem unidimensionais e módicas, e sim para serem sobreviventes em um mundo cruel para com as mulheres e o feminino.
Quarenta anos após o primeiro filme, o remake de Suspiria não busca ser fiel ao original, porém respeita seu universo por completo. O termo “bruxa”, que de maneira histórica vem sendo usado para desacreditar, silenciar e oprimir mulheres,é visto como uma forma de dar poder a elas: refere-se a mulheres que se unem para lutar contra forças impositivas, fenômeno observável na sociedade em que vivemos. O poder e a ferocidade das bruxas, afinal, não conhece fronteiras.
Victoria Silva Rodrigues é monitora do Centro de Crítica da Mídia e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.
