Rap de um cotidiano (re)negado

Por Juliana Gusman. Flávio de Abreu Lourenço é o segundo dos três filhos de Dona Regina, nascido no Alto Vera Cruz, bairro popular situado na região Leste da capital mineira. Foi rebatizado Renegado na rua. O fervoroso atleticano se apresentou em rima para os alunos do Curso de Comunicação Social da PUC Minas, em uma palestra-show, realizada no dia 20 de outubro. Rapper e ativista social, Renegado é militante da cultura marginal. Trouxe o morro para o palco do asfalto.

A capoeira foi seu primeiro contato com cultura, com arte e com questões sobre as quais não refletia até então. “Eu sabia que era preto, né? Mas não entendia a questão de classe, não entendia a questão racial, social, que a gente vive. A capoeira me mostrou isso. Me ensinou a ter esse tipo de olhar. Me ensinou sobre disciplina e hierarquia, sobre o que é ser negro, o porquê de eu ser de uma comunidade economicamente pobre. A maioria das pessoas que estavam naquele lugar também tinha a minha cor e uma estrutura familiar bem parecida com a minha”.

Não, malandro, aqui o papo é diferente
Pois personifico o que o inimigo teme
Negro, pobre, bem informando
Fui Renegado, mas o passaporte tá carimbado

Aos 14 anos, deixou o som do berimbau. Escutou o rap através do Racionais MC’s, enquanto ouvia rádio comunitária pela primeira vez, na casa de um amigo. “Pensei: ‘Esse cara tá falando uns bagulhos iguaizinhos a minha vida, né mano? Essa parada era muito doida, queria fazer essa parada também’”. Sendo parte de uma geração sem as  facilidades do Google, as letras das músicas e a curiosidade nata o encaminharam para uma biblioteca pela primeira vez para entender o que era a cultura hip hop. Descobriu-se.

Na busca de oportunidades para o grupo de rap formado com amigos, descobriu, também, a dona Valdete, mulher negra, de cabelo curtinho, que andava sempre de vestido. “Depois da minha mãe, a pessoa que mais me ensinou coisa na vida foi Dona Valdete”. Ela estava à frente do grupo Meninas de Sinhá, formado por meninas de 54 a 95 anos, reconhecido pela ação na periferia de Belo Horizonte. É referência nacional em transformação social por meio da cultura.

Flávio encontrou uma das primeiras oportunidades em evento promovido pelo grupo de Dona Valdete: a comemoração do Dia Internacional da Mulher. Deram-lhes um voto de confiança. Deveriam criar uma música sobre o tema, do qual, até então, nada sabiam. Se ficasse boa, poderiam tocar. “O que aconteceu? Entrei na biblioteca pela segunda vez na minha vida”. E cantaram.

Dona Valdete percebeu o interesse de Flávio e o convidou para participar da Associação de Moradores do bairro. Aos 15 anos, tornou-se presidente. Ajudou a fundar o Grupo Cultural Negros da Unidade Consciente (NUC). Foi responsável, também, por criar o Centro Cultural de Vilas e Favelas Alto Vera Cruz, o primeiro de Belo Horizonte. “Juntava toda a rapaziada do rap. Ia lá, no final de semana, para debater, cantar, ensaiar. Era ficar ali ou era ficar na boca, né? Então, a gente ficava ali pra não ficar na boca. E arquitetamos vários sonhos”.

Flávio tornou-se arquiteto, engenheiro e mão-de-obra de seu próprio futuro. Aprendeu mais pela curiosidade do que pela escola. “Eu tinha uma professora de português que falava: ‘vamos estudar literatura hoje’. Aí eu falava que tinha uma parada legal pra caramba, os Racionais. E ela: ‘Não, Machado de Assis, Castro Alves’. Porra, bicho.  Ficava em mó debate com a professora porque a educação no Brasil é uma parada que não interage em nada com a vida real das pessoas. Fico lá estudando biologia, geometria. Na vida prática do dia a dia você tem que somar, fazer conta, pra não perder dinheiro, e se dedicar ao que você gosta de verdade. Eu ficava debatendo com ela direto e ela nem ‘tchum’ pra mim. Aí eu desisti dela e fui buscar minhas paradas. Eu descobri um cara. Foi o primeiro livro que li inteiro na minha vida. Um cara lá de São Paulo, da periferia, chamado Ferréz. Ele fez um livro que chama Capão Pecado. É um conto lindo que fala de um romance que acontece dentro da periferia. E não era esses romances bonitinhos, não. Era romance do gueto: pegação, funk, drogas, polícia. E aquilo me prendeu de uma forma muito doida. Comecei a ler mais livros e estudar um pouco mais sobre literatura marginal. E até voltei ao Castro Alves por causa disso. Naquele primeiro momento não era aquilo. A professora não teve a sacada”.

“A gente é treinado pra ser mão de obra o tempo inteiro, e não para ser o cara que exerce opinião. E nem sonha. Você vira máquina. A gente conquista outra perspectiva quando começa a sonhar. O cara muda quando tem um caminho possível”. Na periferia, afirma, tem um caldeirão de gente fervendo para fazer alguma coisa. “Mas precisa conduzir essa energia para algum lugar”. Que não seja a boca, a cela, a cova, a estatística.

O primeiro livro que li inteiro foi Capão pecado, de Ferréz. É um romance do gueto, pegação, funk, drogas e polícia. Comecei a ler mais e estudar sobre literatura marginal. Por causa disso, voltei ao Castro Alves, que a professora de português indicava na escola, mas que, antes, em outro contexto, parecia fora.

O edifício Renegado foi se erguendo. “Quando comecei a cantar rap, eu achei que era o Malcom X em pessoa. Eu tinha toda convicção do mundo que eu ia fazer uma revolução, mudar o mundo, meu país. Tinha um grupo de rap. Quando a gente ia fazer o show, eu subia no palco, cheio de mim, e falava: ‘represento minha comunidade’, e não sei o quê. E minha comunidade não ia ao show. Antes de eu lançar meu primeiro disco, fiz um show solo, e a Rede Minas transmitiu. Eu lembro que um dia eu estava no ponto de ônibus, lá no Alto, sentado, esperando o busão. E aí passou uma tiazinha. Ela olhou assim pra mim e pá: ‘menino, você estava na televisão, cantando rap? ’ Peguei e falei que era eu mesmo, e ela: ‘É muito legal o que você está fazendo, precisa de mais gente como você’. Foi a primeira vez que eu me senti representante da minha comunidade. Antes de eu falar que sou referência, as pessoas que vão falar”.

Em 2008, quem falou foi o mundo. Lançou o primeiro disco solo, Do Oiapoque a Nova York. “Mudou minha vida, literalmente. Me permitiu conhecer minha cidade, conhecer meu estado, conhecer meu país e conhecer o mundo.  Foram 170 shows: Londres, Paris, Nottingham, Holanda, Austrália, Cuba, Venezuela, até chegar a Nova York mesmo”. Dividiu palco no Central Park com Criolo e Bebel Gilberto.

Minha Tribo É o Mundo, de 2011, apresentou uma sonoridade mais urbana, trazendo influências de outros ritmos contemporâneos. Renegado participou de importantes festivais, como o Back2Black e o Rock in Rio, em 2013. Em 2014, lançou o CD e o DVD Suave ao Vivo. No ano seguinte, lançou o EP “Relatos de um Conflito Particular”, que aborda os sete pecados capitais, estabelecendo parcerias com Alexandre Carlo, do Natiruts, e Samuel Rosa, do Skank. O mais recente trabalho é Outono Selvagem, que reúne canções do EP e outras sete faixas inéditas, em uma espécie de autorrelato cantado. Renegado tornou-se arranha-céu. “O rap já contribui muito porque é a voz de quem não tem voz. Só que hoje sofisticou: live, Facebook, Youtube, a gente mesmo faz, tudo certo. O acesso à tecnologia mudou, mas tem que saber o que fazer com tanta informação. O importante é continuar caminhando. De toda forma, se minha arte já salvou a minha vida tá bom, né? Já sou um preto a menos na estatística. Já começou bem. Se eu puder salvar mais uns 10 no caminho, já estou feliz”.

Sonhar, para Renegado, é essencial. Só não é mais importante que acordar para fazer o sonho virar realidade. “O rap me ensinou de verdade, foi muito generoso comigo, me permitiu transformar a vida de outras pessoas também A gente sabe dessa exclusão social que existe, né? Dessa linha imaginária que separa o morro do asfalto. Ela é uma linha densa. Tem várias coisas em jogo, aí: a questão social, econômica, cultural, de acesso. E ter acesso é o que transforma a vida das pessoas de verdade. Você não sente falta do que você não conhece. A possibilidade de acesso transforma”.

O rap já contribui muito porque é a voz de quem não tem voz. Hoje sofisticou: live, Facebook, Youtube, a gente mesmo faz, tudo certo. O acesso à tecnologia mudou, mas é preciso saber o que fazer com tanta informação. De toda forma, se minha arte já salvou a minha vida tá bom, né? Já sou um preto a menos na estatística. Já começou bem. Se eu puder salvar mais uns 10 no caminho, estou feliz.

Mas estamos em uma sociedade em que a conta não fecha. “Alguém tem que ser explorado pra alguém se dar bem. Não tem condição de todo mundo ter acesso às mesmas coisas de forma igualitária. Capitalismo não prega isso. Prega que você tem que explorar o outro pra se dar bem. A miséria é lucrativa. A morte da população negra é lucrativa. Isso acontece desde que a gente é colônia. Desde sempre isso aconteceu no Brasil; essa juventude sendo exterminada nas comunidades. Em 500 anos, a gente viveu 400 praticamente com o povo sendo escravizado. Não teve nenhum programa de reparação de danos pra população negra. A única medida que se teve até hoje pra poder reparar esses danos causados foi a cota, que eu considero uma medida-merda, de verdade. Mas é a única medida que se tem. Se eu acho que é uma medida avançada para poder retribui os danos causados a população negra? Não. Está longe de ser. Nós somos 55 % da população e estamos discutindo cota de 20%, não é nem meio a meio. Estamos discutindo 20%. E 20% de cota no Brasil mudou e estrutura do país completamente. Eles estão desorientados por que não aguentam ver preto e pobre alcançando acesso informação. Isso desestrutura o pais porque eles acham que preto e pobre tem que estar na senzala até hoje. Só que a gente está aí, né?

Alguém tem que ser explorado pra alguém se dar bem. Não tem condição de todo mundo ter acesso às mesmas coisas de forma igualitária. Capitalismo não prega isso. Prega que você tem que explorar o outro pra se dar bem. A miséria é lucrativa. A morte da população negra é lucrativa. Isso acontece desde que a gente é colônia. Desde sempre isso aconteceu no Brasil; essa juventude sendo exterminada nas comunidades.

Apesar de ser arranha-céu, Renegado sonha com os pés no chão. Reconhece avanços, celebra vitórias, aponta para tímidos, mas significativos, processos de inclusão. Mas a luta permanece. “A gente está em tempos de guerra. E vai ficar pior, muito pior A gente está vendo a questão da recessão chegando, e esse governo golpista aí está suprimindo tudo que a gente teve acesso nos últimos tempos. E todo mundo está achando que vai passar batido. Mas está deixando passar batido porque está numa situação confortável, ainda. O que aconteceu: uma população que não acessava dinheiro começou a acessar, começou a ter condição. Só que agora, com essas medidas que estão sendo feitas, a população vai voltar a viver em recessão. Vai descer mais. E quando a periferia desce mais, começa a passar fome. E quando a favela passa fome, o asfalto sangra. Sequestro relâmpago, assalto, mais pivete no centro da cidade. São reflexos do que vamos enfrentar daqui para frente. A polícia já está mais na rua com ação repressiva, já está chegando na comunidade. Na moral, se está ruim, vai ficar pior. Espero que eu esteja errado”.

Eu acho muito importante trazer essa consciência negra para a faculdade. Às vezes falta isso. É um espaço elitizado, não adianta fechar os olhos e fingir que não está acontecendo. Eu estudei numa escola pública ao lado de uma favela, só quem vive isso sabe como é a realidade. Trazer essa realidade aqui, para que as pessoas não precisem viver isso para enxergar, é muito importante. A gente sabe que o racismo no Brasil ainda é uma coisa gritante. Então, para mim, só o fato de você estar aqui, já me dá vontade de chorar. É a questão da representatividade. A gente precisa ver mais pessoas negras nos lugares. E vai ter preto na faculdade sim, querendo ou não.

Stephanie Reis, estudante de jornalismo

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Juliana Gusman é graduanda do curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e monitora do Centro de Crítica da Mídia