Por Juliana Gusman.
Em Arábia, filme dirigido e roteirizado pelos mineiros Affonso Uchôa e João Dumans, tudo começa na literatura, cresce na música e se arremata em piada. Conhece a piada do árabe? Aquela em que um avião transportando alguns peões de obra brasileiros, contratados por um ricaço oriental qualquer, cai no meio do deserto do Saara. Após a queda, olham para um lado, olham para o outro, e exclamam a desgraça em riso: “imagina quando chegar o cimento dessa porra”. O personagem Cristiano, interpretado por Aristides de Sousa, se diverte com a anedota tragicômica que alegoriza sua vida. Metonímia do trabalhador oriundo de classes populares, o protagonista do filme vencedor do principal prêmio do Festival de Brasília em 2017 tem sua história contada a partir dessa e de outras memórias, registradas em um caderno descoberto em sua casa logo depois de se estatelar nas ruas de Ouro Preto feito um pacote flácido.
Quem encontra esse caderno é André (Murilo Caliari), um adolescente que acompanhamos na primeira parte do filme. A pedido da tia, vai à casa do desfalecido, já internado no hospital, buscar algumas mudas de roupa para o proletário com olhos embotados de cimento e lágrima. Para sua surpresa, encontra embaixo de pilhas de jornais páginas espiraladas que carregam o testemunho de uma vida severina, dessas que se morre de velhice antes dos trinta. Abandonamos André (ou nos tornamos ele?) e a história mambembe de Cristiano se inicia na palavra lida.
Essa virada narrativa não é mero capricho de estilo. “Seria uma forma interessante de dar a ver o que para nós era politicamente importante no filme, que era mostrar a grandeza da vida das pessoas como os Cristianos”, comenta Uchôa. “Ia ficar mais forte de perceber essa grandeza se a gente marcasse ele, em primeiro lugar, como um anônimo, como um qualquer, como algo marginal que não é relevante o suficiente para ser protagonista de nada. Na segunda metade, o filme entra na história dele e aí inverte-se o processo: ele se torna o protagonista”. Para o cineasta, se optassem por evidenciar, inicialmente, a forma displicente com a qual o mundo trata experiências ignotas, mais potente seria nossa imersão. “Mais forte a gente sentir isso trazido para o primeiro plano”, afirma. Não obstante, queriam que a trajetória de Cristiano pudesse ser encarada como um grande romance. Precisavam, portanto, criar condições para o caderno fosse encontrado, fazendo com que aquela vida fosse percebida como matéria literária.
Mas por que essa preocupação?
Uchôa e Dumans queriam escapar daquilo que identificaram como as duas grandes tendências do cinema brasileiro engajado em retratar a miséria do país. Por um lado, criticavam produções comerciais que exploram o universo da periferia a partir de uma certa chantagem emocional do espectador. “É você comover através de uma espécie de sensacionalismo da dureza da própria realidade. Para nós, nesse momento, isso parecia um pouco falso”, explica Dumans. Por outro, não se contentavam com uma certa acomodação da vertente mais artística, do circuito de festivais, que costuma privilegiar a linguagem do documentário, considerada, nessa mirada, a forma mais justa de mediar a pobreza. Apesar de reconhecerem a importância desse gesto, os mineiros não se regozijavam com uma postura passiva.
Foram escritores como Graciliano Ramos, Oswaldo França Jr., e João Antônio que lhes apontaram uma alternativa mais satisfatória. “Eles se propuseram o desafio de criar uma interioridade, de criar uma subjetividade de personagens proletários que seriam responsáveis por contar suas próprias histórias”, esclarece Dumans. “Aqueles personagens se tornam heróis desses épicos. Existe uma inversão que para a gente foi muito forte. Passamos a discutir literatura brasileira ao longo do processo de produção”.
Tentando arquitetar um “filme literário”, os diretores buscaram retomar a importância de acontecimentos muitas vezes triviais, mas que a partir de personagens como Cristiano ganhariam outra dimensão. “A literatura brasileira, especialmente da primeira metade do século XX, de certa forma enfrentou o desafio de entender que a nossa inventividade, a nossa diferença e a nossa originalidade em termos artísticos residiam também na coloquialidade, na informalidade da língua brasileira. É um gesto de inversão mesmo, de encontrar a força das nossas narrativas no nosso modo de falar”.
Estabelecida a inspiração ficcional, ainda era importante fazer emergir a verdade daquele relato. “A gente foi trazendo a realidade de outras formas, a partir da experiência dos atores, da realidade das locações e do nosso princípio de sempre mudar nossas ideias em função das nossas condições reais. Não é tenta adaptar a realidade às nossas ideias, mas a gente também não queria chegar lá e registrar”, pontua Uchôa. “A gente não acredita no cinema que só registra, como se a linguagem tivesse que ficar discreta, como se o cinema tivesse que ser mais humilde diante do grande poder da humanidade. As duas coisas têm que andar juntas, tanto o cinema como a realidade”.
O maior desafio para encontrar esse equilíbrio foi, justamente, a construção da voz de Cristiano, materializada no caderno lido por André e escutada por nós, espectadores, no off em primeira pessoa, linha que arremata a costura do filme. “O off era oitenta por cento do roteiro”, revela Dumans. “O filme já foi escrito a partir da perspectiva desse personagem que conduzia a narrativa”. Havia uma preocupação, portanto, de como alcançar a forma de falar desse trabalhador, “como fazer ela ser crível, sabendo que a gente ocupa outro lugar”.
Entra em cena Aristides, que, inclusive, levou o prêmio de melhor ator no festival que laureou Arábia. “A gente descobriu que o off é também uma atuação, ele depende de um trabalho de ator”, diz Uchôa. Juninho, apelido do artista revelado no filme anterior dos diretores, A vizinhança do tigre, chegou a escrever um caderno com suas próprias experiências e lembranças durante o processo de elaboração do roteiro. “Esse caderno foi muito importante para gente. E foi importante para ele, que retomou a escrita” (Aristides, assim como outro notável trabalhador brasileiro, deixou a escola na quarta série) “Ele ser convocado a escrever já é um deslocamento que era legal de ver porque era o que a gente queria desse personagem: que alguém que não escreve, escrevesse. Que um peão, alguém que é subordinado, o cara que está ali para obedecer, tenha autonomia de escrever sobre sua própria vida usando e palavra e papel”. Uchôa ressalta que, no entanto, as histórias de Aristides não foram emprestadas a Cristiano. “Os fatos que ele narra não foram usados. O filme não foi baseado em fatos reais. É uma mistura ficcional de diversas influencias, de diversas fontes. A vida real é só um dos elementos. O caderno foi uma forma de entendimento de como seriam as pessoas que geram a história do nosso filme. E essa pessoa é uma pessoa como Aristides, uma pessoa comum, um trabalhador”.
Essas estratégias reforçam que Arábia é um filme, sobretudo, sobre narração. “E toda narração força a gente a imaginar coisas. É sempre um processo incompleto, que precisa do expectador, de quem está ouvindo para se relacionar, para projetar aquilo em uma outra dimensão”, reflete Dumans. “Acho que é uma questão de fazer um filme que possa estimular a imaginação de quem está vendo de alguma maneira, de fazer com que essa pessoa participe daquela história”. Os cineastas sugerem que, apesar das especificidades dos acontecimentos que interpelam Cristiano, suas aflições são, de certa maneira, universais. Relembram a cena em que o protagonista, cansado de trabalhar em fábricas como se fosse máquina, deseja estar em casa bebendo água. “É essa sensação de pensar ‘puta que pariu, o que eu estou fazendo?’ No caso do personagem o trágico é que ele não tem opção de desistência. Ele está preso ao trabalho dele pela necessidade. Ocorre essa impossibilidade de voltar para casa, vamos dizer assim, muito mais dramática”, pondera Dumans.
Mas nem só de asperezas, de palavra escrita e de palavra lida vive Arábia, que também transborda felicidade em palavra cantada. Noel Rosa e Raul Seixas, por exemplo, ajudam a narrar a vez em que Cristiano amou como se fosse a última. Nosso caubói fora da lei, entre plantações de mexericas e beiras de estradas, vai parar numa fábrica de tecidos, como aquela de três apitos, e conhece Ana (Renata Cabral), responsável por lhe fazer acreditar que sua vida valia a pena ser narrada. O romance com a moça encarna, mais do que a necessidade de amor, a imprescindibilidade de reconhecimento. O filme, nos lembra Dumans, também é sobre a importância da conexão.
E não apenas sobre uma conexão entre personagens. No extradiegético, o filme almeja estabelecer ligações com um público que, geralmente, evita esse tipo de encontro. Ao conseguir ultrapassar a redoma dos festivais e apresentar o longa em salas de cinema, Uchôa e Dumans ofereceram um filme sobre realidades abjetas àqueles que são incluídos. “É bom pelo problema social e humano no Brasil hoje. Eles são obrigados a olhar para essas pessoas, a travar um contato visual com Aristides e Cristianos que não eles são convidados a ver. Mas a gente gostaria que tivesse o outro lado também. Só que nosso circuito de cinema hoje não permite”, lamenta Uchôa. “A base do consumo de cultura no Brasil é a exclusão”.
Precariedade em editais de incentivo (especialmente nos últimos anos), altos custos de distribuição e de divulgação e a elitização do consumo de cinema conformam um cenário nada profícuo para filmes independentes de baixo orçamento. Arábia, apesar do sucesso, não conseguiu atingir, com eficácia, as pessoas cujas vidas guiaram o esforço criativo e político da obra. “Enquanto não tiver sala de bairro, enquanto não tiver ingresso a preço popular, enquanto não tiver outras formas de convidar esse público que é a maioria do Brasil, vai ser isso aí”. Mas não desanimam: “A gente vive num país de terceiro mundo, num país fodido, de gente fodida, de muita desigualdade e violência. Meio que não tem jeito. É uma coisa inescapável não tentar reagir a isso de alguma maneira. Pelo menos deixamos registrada uma outra versão da história”. Ao que os Cristianos respondem: “Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague”.
Juliana Gusman é graduada no curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.