Por Carlos Eduardo Noronha.
27 de março de 1990. Naquela terça-feira, se você sintonizasse sua TV no canal 6, iria embarcar numa chalana rumo ao Pantanal. Nos 216 dias de viagem, conheceria Zé Leôncio, Juma, Filó, Jove, Maria Marruá, Juventino, Velho do Rio, Bruaca e diversas figuras que passaram a fazer parte do dia a dia das pessoas naquela época. A região, por muitos ainda desconhecida, despertou atenção de imediato – tanto pela beleza singular quanto pelo sabor de mistério. Mistério que se consolidou através de lendas, como a da mulher que se transformava em onça e a de um velho guardião que andava por aquelas terras em forma de sucuri.
Criada e escrita por Benedito Ruy Barbosa, Pantanal esteve no ar de 27 de março a 10 de dezembro de 1990. Com direção de Jayme Monjardim, a primeira versão da obra contou com 216 capítulos produzidos e exibidos pela Rede Manchete. Teve Cláudio Marzo, Cristiana Oliveira, Marcos Palmeira, Cássia Kis, Marcos Winter, Paulo Gorgulho, Jussara Freire e Almir Sater nos papeis principais, vivendo grandes personagens que passaram a fazer parte do imaginário e da memória afetiva do público.
Inicialmente eu não tava escalado pra fazer o “Pantanal” e eu tava contratado da Manchete. Aí eu fui falar com o Jayme Monjardim, fui pedir pra ele. Falei: “Jayme Monjardim, eu quero fazer alguma coisa nessa novela porque eu quero conhecer o Pantanal, eu quero ir pro Pantanal”. Aí ele falou: “eu vou te arranjar algum personagem. Mas tá difícil agora porque tem três gerações, o elenco é difícil de escalar e tal”. Mas aí ele me arrumou um personagem e falou: “olha, só entra no comecinho da novela. Você faz o pai”. E entrava no comecinho da novela. Depois ele desaparece no meio do mato e quando ele reaparece ele é um velho. Aí eu fui lá fazer só esse personagenzinho, esse iniciozinho. Mas aí eu gostei tanto do Pantanal que eu cheguei pro Jayme e falei: “ô Jayme, por que eu não posso ser esse velho também? Eu boto uma peruca, uma barba, pô! Você vai ter que arranjar um ator parecido comigo pra fazer ele ficar velho, eu fico velho, pronto!
Cláudio Marzo
Trinta e dois anos depois da exibição original, Pantanal está de volta à telinha como uma grande homenagem de Bruno Luperi ao avô, o grande Benedito Ruy Barbosa. Através de um remake, Luperi vem adaptando a obra que, desde segunda-feira (28), ocupa o horário nobre das 21h – substituindo Um Lugar ao Sol, de Lícia Manzo. É a chance do público mais nostálgico relembrar a saga de José Leôncio, ao mesmo tempo em que as novas gerações poderão conhecer a icônica Juma Marruá. Tudo isso mostrado em meio a maior planície alagável do mundo.
Poder viver isso profissionalmente com ele [Benedito Ruy Barbosa], no começo da minha jornada, é uma lição atrás da outra. Eu tô encarando isso como um pós doutorado em teledramaturgia.
Bruno Luperi
A REALIZAÇÃO DE UM SONHO
Logo depois que terminou Cabocla (1979) Benedito Ruy Barbosa foi convidado pelo amigo Sergio Reis a conhecer o hotel-fazenda que estava construindo no Pantanal. Como não conhecia a região e precisava descansar, aceitou de imediato. O avião que transportava os dois pousou praticamente na cozinha do amigo cantor.
À noite, após uma tarde de pescaria, Sérgio pegou o violão e começou a cantar algumas modas. Ao mesmo tempo, Ruy conversava e conhecia os peões que ali se reuniram. Depois de muita cantoria, bebedeira e comilança, foram dormir. Ou melhor, tentaram. O calor abrasador e a quantidade de mosquitos infernizou aquela que poderia ter sido uma ótima noite de sono e o princípio de grande ressaca.
Incomodado com tudo isso, Ruy se postou em uma espreguiçadeira nas margens da lagoa O Pouso da Garça que, em épocas de inundação, quase entrava pela varanda da casa. Pegou no sono. Acordou com o dia raiando, o sol nascendo no horizonte, frente a um céu enorme que se transformava num misto de vermelho e roxo, vermelho e amarelo, vermelho e laranja.
De repente, como se Deus fosse o maestro de uma grande orquestra e cronometrasse “1, 2, 3, 4!”, todos os pássaros começaram a cantar em saudação ao dia que, naquele momento, nascia diante dos olhos do autor. Araras, tuiuiús, colhereiros… Energia surreal, espetáculo da natureza.
De repente, Sergio Reis aparece e, de acordo com registros, transcorreu-se um diálogo que resultou na decisão de Ruy fazer uma novela no Pantanal. Sergio Reis, é claro, morreu de rir, boquiaberto com a loucura do amigo.
Diálogo entre Ruy e Sérgio, durante amanhecer na beira da lagoa O Pouso da Garça:– O que tá fazendo aí, palhaço? – Pô Sergio, dormi aqui. – Cê é louco rapaz? Tá dormindo aqui, na beira da lagoa?! – O quê que tem pô? Tem problema nenhum, nem mosquito me incomodou. – Não Ruy! Podia sair uma sucuri, te pegar aqui pelo pé. Ninguém podia te acudir. Na mata do lado tem um monte. – Poxa Sérgio, nem pensei nisso. (risos) Sérgio, você tá vendo esse nascer do dia, esse começo de vida aqui, que acontece todos os dias? – O quê que tem? Tô acostumado, vejo isso todo dia. – Eu vou fazer uma novela aqui. Eu quero mostrar isso pro Brasil. – Ahh! Cê tá ficando louco. – Sérgio, se você conseguir fazer uns dez chalezinhos aqui, onde cada um puder receber quatro ou cinco pessoas, eu vou fazer uma novela aqui.Fonte: YouTube |
Chegando a São Paulo, o autor escreveu as mais de cem páginas da sinopse intitulada Amor Pantaneiro. Apresentou com grande expectativa para a TV Globo que resolveu não bancar a produção. “Pantanal foi a realização de um sonho, porque durante sete anos, quase oito anos eu tentei fazer na Globo e não consegui”, conta Ruy Barbosa em entrevista ao programa Donos da História, do Canal Viva.
Meu dia começava 6 horas da manhã e acabava meia-noite. A minha mulher falava: “Ruy, você lida com quarenta e dois personagens, noite e dia, durante tanto tempo. E se esquece que você tem cinco meninos”.
Benedito Ruy Barbosa
Em 1990, quando acompanhava a filha Edmara em uma reunião na Manchete, o autor apresentou a sinopse para Adolph Bloch, diretor da emissora. Bloch comprou a ideia e levou o projeto adiante. Ruy pediu demissão da Globo, comprou setenta e cinco botas para o elenco se proteger das cobras e, durante o tempo que esteve no canal 6, escreveu um dos maiores sucessos da teledramaturgia nacional.
O HOMEM LIGADO À NATUREZA
Os capítulos iniciais de Pantanal já revelaram pequena parte da essência da obra e o que o público pode esperar. Com direção artística de Rogério Gomes e fotografia de Walter Carvalho, a adaptação conta com nomes de peso da teledramaturgia contemporânea revivendo papeis marcantes. Renato Goés e Marcos Palmeira como Zé Leôncio, Juliana Paes como Maria Marruá, Enrique Díaz como Gil, Osmar Prado como Velho do Rio, Irandhir Santos como Juventino, Murilo Benício como Tenório e Alanis Guillen como a nova Juma Marruá. Além desses, Almir Sater e Paulo Gorgulho, que estiveram na primeira versão, voltam na pele de novos personagens.
A Juma vai ter sangue. Ela pulsa. A Juma, pra mim, é o Pantanal, ela é essa natureza viva. Vamos recontar essa história no Brasil de hoje, esse Pantanal de agora, pro brasileiro de hoje. Então, realmente, tá sendo uma missão pra todo mundo. Eu tô realmente entregue.
Alanis Guillen
Juliana Paes imprimiu tanta personalidade à sua Maria Marruá que é quase impossível separar atriz da personagem. Suas sequências no primeiro capítulo, em que corta cana junto do marido e do filho, faz o telespectador mais nostálgico viajar até 1996 quando, no mesmo horário, a boia-fria Luana (Patrícia Pillar) desempenhava a mesma função em O Rei do Gado, de mesma autoria. Impossível não ser fisgado pelo olhar e pelas expressões de Maria e, com isso, não mergulhar no drama da personagem.
Fiz umas manchas de sol, rugas, concentrei em volta dos olhos e boca, deixei o queixo também com rugas, com efeito sutil e eficaz para a câmera que estava sendo usada. Sem contar que, no Pantanal, existe uma luz natural dourada e super clara. Temos que levar em consideração essa parte técnica também. Deixamos a sobrancelha dela [Juliana] crescer e colocamos um megahair cacheado, descuidado, na cor marrom e com uns fios brancos. Ela tinha que parecer uma mulher sem cuidados devido a sua história de vida tão sofrida. Ela vive isolada na tapera, não tem vaidades. Usamos maquiagem de efeitos especiais nas mãos, para registrar as marcas de serviços físicos pesados.
Valéria Toth (caracterizadora)
Destaque também para Juventino, vivido por Irandhir Santos. O homem sensível, ligado à terra e à natureza – elementos comuns na obra do autor – é representado de forma genuína. Ao longo do tempo sua figura torna-se base sólida para o homem que seu filho, Zé Leôncio, vai se tornando; em paralelo aos contornos místicos que o personagem vai adquirindo.
Não menos importante, vale ressaltar o Gil construído por Enrique Díaz. A personalidade impressa pelo ator nos remete ao típico trabalhador retratado por Benedito Ruy Barbosa ao longo de suas obras, principalmente àqueles que fizeram parte do núcleo de boias-frias de O Rei do Gado (1996) e dos imigrantes italianos de Terra Nostra (1999). A posse de terras volta como tema central e com devido destaque.
Vale ressaltar, também, a cenografia – a cargo de Alexandre Gomes – e a fotografia imprimida por Walter Carvalho. A casa de Zé Leôncio, por exemplo, é a mesma usada na primeira versão e também pode ser comparada à da fazenda de José Inocêncio, o coronel da zona cacaueira de Ilhéus em Renascer (1993). O diálogo entre a câmera e a luz natural do ambiente produz clima agradável e quase que nostálgico – o que produz a sensação de acolhimento e de estramos revivendo uma memória distante e afetuosa.
OS FILHOS DOS FILHOS DOS NOSSOS FILHOS
A primeira versão de Pantanal também ficou marcada pela trilha sonora. A música tema de abertura, composta e cantada por Marcus Viana, servia de pano de fundo para uma mulher que se transformava em onça.
Agora, temos uma abertura igualmente marcante. Cantada por Maria Bethânia, manteve-se a mesma letra. Soma-se a isso a viola de Almir Sater. A abertura concentra uma identidade visual em relação ao todo, e mescla imagens verticais e invertidas do bioma. Bonito de ver, bom para sentir.
ABERTURA DE PANTANAL (2022)
AUDIÊNCIA E REPERCUSSÃO
O primeiro capítulo de Pantanal foi ao ar na última segunda (28) e teve grande repercussão nas redes sociais. Só no Twitter, a novelas e atores que fazem parte do elenco ocuparam a liderança por cinco horas como os assuntos mais comentados.
De acordo com a coluna da jornalista Patrícia Kogut, a trama registrou média de 28 pontos de audiência em São Paulo, com picos de 30 por volta das 22h24 – superior à média de 25 pontos no capítulo de estreia de sua antecessora.
Pantanal vai ao ar de segunda a sábado, por volta das 21h20. Se perdeu o capítulo anterior, basta ir até o Globoplay, plataforma de streaming da Globo.