Por Nanda Rossi. O “Filme Da Minha Vida”, lançado em agosto deste ano, é o terceiro longa de direção de Selton Mello. Baseado no livro “Um Pai de Cinema”, do chileno Antonio Skármeta, o filme conta uma história ambientada nas Serras Gaúchas nos anos cinquenta. Os pontos a serem discutidos passam, aqui, por três eixos: a forma, a estrutura (como parte da própria forma), e a temática. A forma e a estrutura, elementos principais do filme, sustentam e fazem do longa o que ele primeiramente é: uma beleza dotada de grande dose de poesia. Mas que não apagam, afinal, a problemática no conteúdo — a maneira como a temática foi conduzida e principalmente concluída: a estereotipização das personagens femininas e o machismo de um pai vangloriado que acaba por ser tratado de forma leviana.
O longa conta a história do jovem Tony Terranova (Johnny Massaro), professor de francês na escola da cidade. Tony estudou fora e, ao voltar, passou por um trauma: seu tão querido pai subiu no trem e foi embora para a França sem expor claramente seus motivos. Desde então, Tony e sua mãe precisam lidar com o abrupto sentimento de ausência. A pessoa mais próxima da família, Paco (Selton Mello), é uma figura masculina que no começo do filme se faz de ombro amigo. Tony, individualmente, precisa equilibrar sua tristeza com as descobertas da juventude e do retorno à cidade. Interessado em duas jovens irmãs, Luna (Bruna Linzmeyer) e Petra Madeira (Bia Arantes), ele acaba se envolvendo com a primeira. Em meio às poéticas aventuras com Luna e com seus alunos, Tony descobre que seu pai não foi bem sincero em relação ao pouco que disse ao partir. Com o choque da revelação paterna, ele precisa amadurecer e decidir o rumo da família.
Para falar sobre a forma, é preciso dizer, inicialmente, que Selton mostrou que sabe fazer cinema. Com a fotografia de Walter Carvalho e direção de arte de Claudio Amaral Peixoto, ele homenageia o cinema como admirador ao mesmo tempo que se garante como feitor. Em um filtro sépia, cria-se um ambiente de nostalgia e memória. Aqui estão os elementos nos quais recaem quase todos os elogios ao filme. A Serra Gaúcha nos anos sessenta é tão aconchegante que, mesmo sem nunca se ter pisado lá, é possível sentir saudades do lugar. Os enquadramentos e planos silenciam as vozes que ainda ousam dizer que brasileiro não sabe fazer cinema. Aqui, se manda na câmera e se faz com ela o que quiser, do clássico à uma dose de experimentação.
Som e imagem são aliados: a força do primeiro não é ignorada e, por isso, o segundo ganha força. Uma risada que se transforma no barulho do fósforo ao raspar na caixinha; um som que vaza e faz com que a cena seguinte comece mesmo antes da imagem surgir; Luna que dança uma música clássica que toca na cabeça de Tony e o faz levitar. A mise-en-scène se faz tanto na atuação quanto nos detalhes que câmera e edição de som constroem. A trilha sonora, brasileira e francesa, muitas vezes acaba até por distrair o espectador imerso na nostalgia jovem-guardesca. Imagens e sons fazem do filme uma poesia, uma dança que leva a tristeza embora.
Além dos elementos já citados, a estrutura também cria dança na história. De um lugar melancólico, a primeira parte do filme faz insurgir a tristeza angustiante — onde será que está o pai do menino? Porém, no momento em que Tony decide que é a hora de finalmente viver sua vida, no lugar da tristeza entra uma leve aventura vintage. Apesar da revelação do pai de Tony — que traz o filme para uma breve noite escura e chuvosa, assim como o estado emocional do personagem — o sentimento contente permanece. Talvez aqui esteja a ilustração dos problemas de conteúdo: a partir da revelação, deveria retornar a longa tristeza do começo.
O pai de Tony engravidou outra mulher. Eis o motivo de sua partida, que não foi para longe, visto que ele estava o tempo todo na cidade ao lado, palco das principais aventuras de Tony. A figura da mulher que ele engravida não é uma surpresa, visto que o estereótipo que carrega é tão grande que só poderia ser a femme fatale da cidade, aquela que ousou ficar com um homem casado. Petra é sexy, é linda, e seduz o tempo todo. Petra nada mais é que isso. Todas as mulheres do filme poderiam ser muito mais — se houvesse a preocupação de fazer personagens femininas complexas. Luna, por sua vez, é a manic pixie dream girl, termo em inglês que descreve a menina que veio para namorar o garoto meio esquisito. Completamente dentro dos padrões de beleza, sua estranheza reside nos gostos artísticos. Sempre em função do homem, essa personagem existe para mostrar a ele coisas incríveis do mundo, enquanto usa roupas coloridas e não é fútil como todas as outras garotas do mundo — mesmo sendo exatamente do mesmo padrão de beleza que elas. Não há a necessidade de importar para o cinema brasileiro os estereótipos femininos repetidos à exaustão no cinema americano. A ideia não era fazer algo além de Hollywood?
A mãe de Tony, enfim, é coadjuvante. A história é sobre filho e pai. O que ela sente é pouco mostrado. Há uma vontade de saber se ela vai finalmente conhecer alguém novo ou se vai simplesmente ter mais cenas no filme. Ficou claro que não é sobre ela. Como o livro, o filme é sobre o pai. Mas um pai que erra e é vangloriado pelo erro merecia mesmo tudo isso? O filme se encerra com uma narração de Tony, elogiando o fato do pai ter se escondido na cidade para cuidar sozinho do filho que teve, por preocupação com a mãe do bebê, mas principalmente por não querer sujar a imagem da esposa dele. E assim o filme se encerra, com um pai herói, que traiu, fugiu, abandonou, não conversou, e teve que acabar escondido cuidando do filho porque é assim que as coisas são quando se erra: é preciso lidar com as consequências, e fazê-lo não te faz um herói, pois é o mínimo.
O filme, em conclusão, é sobre um pai idealizado pelo filho. Aquele homem maravilhoso não existe. É de uma estética belíssima, mas a tão elogiada contemplação poética e livre de incômodos não funciona para qualquer espectador, é sorte de garotos como Terranova. O que não pode se perder aqui, todavia, é essa qualidade da forma. Fica o desejo de que as mulheres possam vê-la sem ter que se preocupar com o machismo presente no filme.
Nanda Rossi é graduanda do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas. É monitora do Centro de Crítica da Mídia.