Por Bruno Costa. A escrita de Janet Malcolm trabalha no limite da não ficção. Criativa, original, cuidadosa com as palavras, dotada de voz marcada e marcante, a jornalista possui amplo repertório cultural e capacidade de engajar o leitor. É quase surpreendente que Malcolm não tenha se tornado uma ficcionista. E por que ela não se tornou? Em um pequeno texto de Quarenta e um inícios falsos (Companhia das Letras, 2016), “Reflexões sobre a autobiografia de uma autobiografia abandonada”, ela responde que não é imaginativa o suficiente, precisa das histórias que já pululam por aí. Tentando uma analogia, modo de expressão tão caro a Malcolm, poderíamos comparar seu trabalho de composição com o de uma maquetista, alguém cujo talento está em ordenar de modo preciso um ambiente de modo a fornecer uma reconstrução da realidade. A diferença é que, ao invés de estáticos, os personagens do seu mundo são vivamente animados. Como em uma maquete, o mundo que ela apresenta é uma duplicação que será julgada por sua capacidade de mimetizar o mais precisamente o ambiente escolhido, e nisso também ela se sobressai. Outra de suas qualidades que a aproximam de uma demiurga é sua capacidade de síntese, de congelar aquele instante fatal que recobre de novos sentidos o mundo que está sendo observado. Essa capacidade de fixação, como sabem alguns dos personagens mais célebres que, por escolha ou não, habitaram seus mundos, é poderosa e muitas vezes definitiva.
Malcolm é uma artista que se apropriou de uma forma, o jornalismo, para expressar sua visão de mundo.
Mas devemos parar com a analogia por aqui, pois é de uma escritora que estamos falando, uma escritora que realiza todos esses truques pela linguagem, instrumento que domina e sempre usa ao seu favor. E, em busca de incrementar seu arsenal, ela incorporou uma arma poderosa que se tornou sua marca registrada, a primeira pessoa. Se pudéssemos definir uma rubrica incontestável de sua escrita, seria este “eu” que irrompe por suas longas reportagens – timidamente em seus primeiros trabalhos, depois completamente à vontade em sua fase madura. Na manipulação deste elemento algo exótico ao jornalismo, ela modela um tipo de não ficção que lhe permite transcender o mundo de onde ela parte, criando uma prosa que não se restringe à mera reportagem ao incorporar elementos ensaísticos marcados. Por vezes, em algumas passagens iluminadas, perdemos de vista o conteúdo e nos quedamos a observar sua delicada construção formal, seu fraseio elegante, sua capacidade de simultaneamente entrar e sair do texto. Se há um aspecto do seu trabalho que está quase imune a críticas é o aspecto formal, a beleza e precisão de sua prosa, a elegância com que ela tece a sua escrita quase faz esquecer do conteúdo ácido e potencialmente explosivo de seus trabalhos.
Quase faz esquecer, mas não faz, e aqui não há como evitar sua escolha pela não ficção e pelo jornalismo em particular. Pois Malcolm é, antes e acima de tudo, uma repórter, alguém cujo trabalho principal e cuja fonte de sustento é um mundo que já lá está antes de você alcançá-lo, embora ele não permaneça exatamente no mesmo lugar depois que Malcolm passe por lá. Mesmo em seus livros mais distantes do jornalismo, Lendo Tchekhov (Ediouro, 2005) e Duas vidas: Gertrude e Alice (Paz e Terra, 2008) o interesse principal dela é pelo factual, pelos rastros da realidade que ela pode seguir, ainda que esses sejam escassos ou de segunda mão, como no caso desses dois livros. Em outro, investigando um tema árido e de difícil compreensão, como em Psicanálise: a profissão impossível (Zahar, 1983), ela conduz o leitor pelas excentricidades e idiossincrasias de um profissional.
Do jornalismo, ela também tem uma predisposição para o chocante e o imediato, nem que seja para fisgar o leitor para dentro do seu mundo. Uma vez lá, ela pode exercer sua serenidade e mediar as situações inusitadas, cômicas e trágicas que nos vai apresentando, como, por exemplo, em Nos arquivos de Freud (Record, 1983). Ali vemos o vetusto guardião dos arquivos, Kurt Eissler, e o bufão Jeffrey Masson se envolverem numa novelesca contenda enquanto Malcolm conforma para nós um assento em posição privilegiada. Como ela mesma ressalta em “Reflexões sobre a autobiografia de uma autobiografia abandonada”, o relacionamento do “eu” jornalístico com seus personagens, na maior parte das vezes, assemelha-se ao relacionamento de um juiz com seu réu ao pronunciar uma sentença condenatória. Entretanto, ela não dispõe e não se contenta em apenas julgar, pelo contrário, opina, comenta, escolhe lados, sem se esconder jamais no conforto da terceira pessoa. O “eu” está aqui e ali, humaniza e confere uma autenticidade própria ao seu trabalho sem, na maior parte das vezes, eclipsar aqueles que são os grandes atores do drama em questão, os personagens.
Existe um equilíbrio delicado aqui, pois este “eu”, que invade o relato e trespassa as fronteiras mal guardadas do jornalismo tradicional, corre o risco de tomar conta da história, brilhar e ofuscar, exatamente por ocupar um lugar vedado aos atores – afinal, ele tem o privilégio de entrar e sair da trama sem que esta sofra grandes consequências. Ademais, na condição de mediador e narrador, o “eu” tem o domínio do enredo apresentado, ainda que não possa interferir na história que se desenvolve para além do seu controle. E se existe alguma ética profissional que Malcolm professa é esta: não interferir na história, nos fatos que se desenvolvem. No mais, ela não tem a classe em grande conta, se os jornalistas não inventam é porque são pouco imaginativos, não por um determinado compromisso ético com a verdade; se escutam é porque têm algum interesse; se demonstram compaixão é porque esperam obter algum segredo oculto. Manipular a vaidade humana parece ser, na visão de Malcolm, o maior poder de um entrevistador.
Esta reflexividade constante sobre seu trabalho é admirável e transforma suas grandes reportagens em lugares privilegiados para ponderação sobre o fazer jornalístico, além de acusar uma capacidade autocrítica quase não vista nesse campo. Seu narrar, entremeado por paradas e reflexões em primeira pessoa, só reforça esta característica decisiva. De fato, se existe um aspecto essencial em sua obra, vista como um todo, é exatamente esse jogo de se colocar na posição de julgador e julgado, de conseguir ser ao mesmo tempo uma observadora fria e sagaz, que congela o instante fatal, e uma autora parcial, que não consegue jamais se desvencilhar completamente de suas convicções e posicionamentos. Um leitor de Janet Malcolm sabe que ela é uma mulher dentro de uma sociedade sexista. Seu “eu” tem uma história que é contada aos fragmentos em seus diversos textos, especialmente quando esta história interfere em seus vaticínios sobre situações e pessoas com as quais está envolvida. Vemos isso claramente em A mulher calada ou em Duas vidas: Gertrude e Alice. Assim, mesmo que ela não coloque em pauta suas questões identitárias, como sua condição de judia, elas permanecem ali e deixam-se ver e ouvir ao longo dos seus textos.
Ela não tem os jornalistas em grande conta: se eles não inventam é porque são pouco imaginativos, não por determinado compromisso ético com a verdade; se escutam é porque têm algum interesse; se demonstram compaixão é porque esperam obter algum segredo oculto. Manipular a vaidade humana parece ser, na visão de Malcolm, o maior poder de um entrevistador.
Esta conquista só se realiza em sua plenitude na não ficção, pois sabemos que bem perto daquela narradora (ou para muitos amalgamada àquela narradora) está uma pessoa. Esta humanização completa do narrador é vedada à ficção, pois mesmo o mais crível dos narradores ainda será um ente criado e sem vida fora do texto. No seu caso, esta projeção para fora torna Janet Malcolm, a pessoa, uma jornalista temível, muito certamente por sua capacidade implacável de registrar quaisquer indiscrições e apanhar o mais cauto interlocutor em contradição. Por outro lado, sua capacidade única de modelar o barro da realidade a torna potencialmente uma porta voz poderosa para alguns silenciados ou obliterados, como a advogada Sheila McGough, protagonista de um de seus últimos livros, ou a biógrafa Anne Stevenson, escritora silenciosa e talentosa trazida para o centro de A mulher calada (Companhia das Letras, 2012).
Entretanto, contrariamente a alguns jornalistas que se incubem da condição de defensores de alguma causa ou de algum grupo marginalizado em específico, ela não parece ter nenhum compromisso especial com os esquecidos ou com aqueles com pouco ou nenhuma visibilidade midiática. Quem aparece mais constantemente em seus textos é, se não outra, a própria Janet Malcolm. Nesse ponto, ela é como uma grande ficcionista que atrai seu público mais pela assinatura e pelo estilo inconfundível do que por um tema de especial relevância social ou pública. Nesse aspecto, talvez caibam mesmo algumas críticas. Por vezes, Malcolm parece mesmo confinada num mundo um pouco elevado, acima dos pequenos dramas do cotidiano ou das grandes mazelas sociais. Fotografia, psicanálise ou mesmo as biografias, alguns de seus temas preferidos, dificilmente têm apelo imediato ou grande importância social. Mas será que devemos mesmo criticar um artista por escolher os caminhos de seus pincéis? Porque o que Janet Malcolm faz é arte, e nisso resta pouca dúvida. Nas mãos de outros escritores menos talentosos, suas reportagens provavelmente seriam consumidas pela própria lógica de obsolescência programada do jornalismo. Aos seus cuidados, os retratos que ela compõe provavelmente sobreviverão (e alguns já sobreviveram) pela maneira única e singular pela qual ela apresenta seu conteúdo. De algum modo, ela é uma artista que se apropriou de uma forma, o jornalismo, para expressar sua visão de mundo. Para aqueles que defendem um jornalismo engajado, ela será vista como vã, elitista e autocentrada; para aqueles que apreciam a reflexão, o refinamento e a autocrítica, Malcolm pode ser vista como uma artista única que abalou as estruturas do campo. Dificilmente, no entanto, você deixará um livro dela incólume e sua visão sobre o jornalismo provavelmente nunca será a mesma.
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Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. Tal como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em ser tema de um escrito não ficcional aprende – quando o artigo ou o livro aparece – a sua própria dura lição. Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do “direito do público a saber”; os menos talentosos murmuram algo sobre ganhar a vida.
(Abertura de O jornalista e o assassino, de Janet Malcolm. Trad. Tomás Rosa Bueno. Companhia das Letras, 2011)
Bruno Costa é pós-doutor pela UFMS e pós-doutor junto ao Programa de pós-graduação em Comunicação da PUC Minas. Possui graduação em Jornalismo pela PUC Minas e mestrado em Comunicação Social pela mesma instituição. Possui doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2011).