Por Gáudio L. F. Bassoli e Paula G. Simões.
Tá no Ar: A TV na TV é uma série de humor da Rede Globo de Televisão, criada por Marcelo Adnet e Marcius Melhem. O programa estreou em 10 de abril de 2014 e seguiu com temporadas em 2015 e 2016. Cada episódio começa com uma “interrupção da programação”, parodiando a vinheta do plantão de jornalismo e o “toque de 5 segundos”. No episódio de estreia, aparece uma das recorrentes paródias com as faixas etárias indicativas, avisando: “esse programa não é recomendado para quem tem claustrofobia”. O programa simula uma zapeada frenética, como se o telespectador estivesse assistindo à televisão com outra pessoa tendo o controle remoto na mão. Quando a mudança de canais finalmente para, uma faixa no canto inferior indica o nome do programa, semelhante à televisão paga. Assim acontece a transição entre os curtos esquetes.
A estreia em 2014 rendeu à Globo a primeira colocação na audiência, com 9,6 pontos de média, segundo dados levantados pelo IBOPE na Grande São Paulo. A audiência diminuiu ao longo daquela temporada na televisão, mas foi sucesso pela internet, tendo mais visualizações no canal G1 do que as novelas da Globo (Castro, 2014), carro chefe do entretenimento e da própria emissora. A composição do programa, “um misto de esquetes sobre TV, política e comportamento cujo estofo principal é o noticiário e a cultura pop” indica que o público do Tá no ar “seria o jovem ou adulto (18 a 45), escolarizado, em sintonia com o que acontece dia a dia no mundo” (Coelho, 2016).
Na discussão que se segue, fazemos uma breve consideração sobre a televisão como um dispositivo para, em seguida, propor um paralelo (repetido várias vezes pela crítica jornalística) entre o Tá no ar e o TV Pirata, além de uma discussão sobre as tensões da ideologia profissional dos humoristas com a TV, tensões que aparecem inclusive pelas possibilidades e limites da midiatização no cenário em que a televisão, não tendo “morrido”, ainda ocupa um lugar central em nossa cultura.
Televisão como dispositivo
Em A televisão levada a sério, Arlindo Machado (2001, p. 10-11) alega que a televisão pode ser abordada como um dispositivo audiovisual através do qual uma civilização pode exprimir seus próprios anseios e dúvidas, as suas inquietações, as suas descobertas, os voos de sua imaginação, as suas crenças e descrenças. Nesse sentido, como sugeriu Stuart Hall (1972), a televisão está associada à “querela da sociedade consigo mesma” (p. 72).
A origem do termo dispositivo remete à Michel Foucault, sendo sua obra caracterizada como uma “filosofia dos dispositivos”: “a preocupação principal de Foucault é com os dispositivos de controle e com os modos pelos quais eles atuam nas relações, nos mecanismos e jogos de poder” (Alzamora, Silva, 2014, p. 77). Leitores do “pai do conceito”, Deleuze e Agamben respondem, cada qual ao seu modo, à pergunta “o que é um dispositivo?”. O primeiro diz ser “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear […] composto de linhas de natureza diferente” (Deleuze, 1990), enquanto o segundo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2005), até mesmo – e especialmente – a linguagem.
A televisão é um dispositivo, “uma vez que os meios, a mídia ou ainda os media – forma que tem sido empregada em textos acadêmicos para ressaltar o caráter plural do termo – implicam em dimensões materiais […] e imateriais” (Alzamora, Salgado, 2014, p. 112). A dimensão material é aquilo que pode ser nomeado como suporte, enquanto a imaterial refere-se aos conteúdos, significados, interpretações, enfim, ao simbólico (idem). Claro, é preciso reconhecer que “o interesse pela noção de dispositivo no âmbito dos estudos comunicacionais se refere à flexibilidade do conceito e às suas possibilidades de adaptação a variados objetos e propósitos” (Alzamora, Silva, 2014, p. 79). Nem sempre no viés foucultiano do controle, há uma procura de perceber o sistema de relações, o que implica alguns desafios metodológicos, levando em conta que o conceito “expande mais que recorta empirias, […] amplia mais que especifica enfoques” (idem, p. 80). De nossa parte, dispositivo interessa para pensar as linhas de força observáveis na TV no cenário de midiatização.
Os dispositivos constituem uma rede integrada, o que acontece há muito tempo no caso da mídia. Mesmo antes do surgimento da internet, a TV já realizava intercâmbios com a mídia impressa, o rádio, o cinema, entre outros. Por exemplo, como lembra Silva (2015, p. 4), há muito televisão e jornalismo têm uma relação simbiótica: “a TV precisa de visibilidade e usa o espaço do jornalismo impresso para obter status de seriedade; o jornalismo usa a popularidade da programação da televisão de forma comercial, a fim de ampliar a vendagem”. Mas agora a integração acontece de uma forma muito específica.
Midiatização, entendida aqui tanto como “processos sociais específicos em certas instâncias (política, entretenimento, aprendizagem)”, quanto como, ao nível macro, “midiatização da própria sociedade” (Braga, 2007), nos ajuda a dar conta do cenário contemporâneo. Se a mídia e suas interações estão se tomando o “processo interacional de referência” (Braga, 2007) na contemporaneidade, é natural que as mídias dialoguem entre si e afetam umas às outras. Por isso, lembramos aqui como foi recorrente o diagnóstico de que a internet iria “matar a televisão”. O que é comum, pois, quando surge um novo dispositivo midiático, se profetiza a morte dos anteriores e, por exemplo, já se disse que a escrita mataria a oralidade, a televisão mataria o rádio e o cinema, entre outros exemplos de prognósticos mal-sucedidos. Ao invés de a televisão morrer, como era previsto por vários estudiosos e observadores, o que aconteceu foi uma adaptação e uma simbiose com as novas tecnologias de comunicação (Borges, Lopes, 2015; França, 2009; Miller, 2009). Observar como isso se deu especificamente no humor paródico, apontando rupturas e continuidades, é uma contribuição que pretendemos desenvolver aqui.
Humor paródico: rupturas e continuidades
Estamos chamando de humor paródico aquele que faz autorreferência à TV (Duarte, 2004), entendendo paródia como “repetição com diferença” (Hutcheon, 1985). Embora o humor paródico possa ser observado em quadros de imitação de programas como a Praça é Nossa, os expoentes disso que poderíamos chamar de um subgênero do humor foram atrações da Rede Globo: TV Pirata, Casseta & Planeta, Urgente! e, recentemente, Tá no ar: a TV na TV. Pelas comparações feitas pela crítica jornalística entre o primeiro e o terceiro, bem como por semelhanças facilmente observáveis, investimos em algumas considerações sobre ambos.
Um destaque do Tá no ar: a TV na TV foi a realização de piadas tidas como proibidas pela Globo, como, por exemplo, falar dos concorrentes, ironizar anúncios publicitários, reproduzir acusações de que a rede mente e manipula. Logo no primeiro episódio, Silvio Santos foi imitado, a propaganda de carne da empresa Friboi foi alvo de brincadeira, um personagem vlogueiro ativista foi criado para cumprir a função de criticar os próprios quadros do programa e a emissora. Sobre “essa liberdade não convencional”, o criador Marcius Melhem, em entrevista ao portal IG, alegou não ter tido problema algum: “na verdade, ficam umas coisas no ar que a Globo não deixa isso ou aquilo, mas isso nunca chegou (para nós), não foi uma questão. A gente foi fazendo o que achava que era legal fazer”. Curiosamente, embora a brincadeira do ataque “institucional” à Globo seja novidade, na década de 1980, o TV Pirata já fazia tanto paródias de anúncios publicitários (como do famoso comercial do primeiro sutiã) quanto referências às emissoras concorrentes e suas atrações (como Balança, Mas Não Sobe, paródia do global Balança Mas Não Caí e da Praça é Nossa, do SBT). A ridicularização do “politicamente correto” (hoje no vlogueiro Militante, antes no Piada em Debate), além do apelo ao nonsense também estavam lá. Quais seriam, então, as diferenças dos “piratas” para os humoristas hoje “no ar”?
Segundo Briglia (2015), “toda a tecnologia e interatividade proporcionada, na contemporaneidade, pelas relações com a internet, não puderem ser exploradas pelo elenco de Guel Arraes”. É um aspecto a se destacar: o Tá no ar teve expressiva audiência “virtual” e isso tem suas razões de ser. O público típico do programa interage consideravelmente na internet como também este é um produto criado tendo a internet como uma realidade e (talvez mais e melhor do que outros de sua própria emissora) uma possibilidade. O formato, especialmente o tamanho dos quadros, ressalta essa impressão. “São esquetes bem curtos, e, ao fundo, costurando tudo, ainda corre a brincadeira do zapeamento. É a era do picotamento, da pouca paciência, da atenção escapando” (Kogut, 2014).
Com esse recurso, o Tá no ar inscreve-se numa tendência contemporânea do humor, que, no caso brasileiro, parece ter como exemplo paradigmático a produção do canal Porta dos Fundos do site YouTube. A duração curta e talvez o próprio conteúdo mais ácido e crítico são recursos que potencializam o compartilhamento em redes sociais – estratégia que parece ter tido considerável pré-meditação (especialmente levando em conta a autoria de Marcelo Adnet, que já utilizava as potencialidades da internet em seus tempos de TV paga, na MTV). Último aspecto, não menos importante, é o conteúdo exclusivo que Tá no ar disponibiliza na internet, como ocorre também com muitos outros programas da Globo hoje.
O contraponto entre internet e televisão integra o que poderíamos chamar de uma ideologia profissional dos humoristas – nos termos de Martín-Barbero (2009), parte das lógicas de produção onde se situa o campo de tensão entre exigências do sistema produtivo e a iniciativa e criatividade. O humor na televisão (aberta) sempre foi visto com muitos limites – tanto pela própria forma de produção quanto (principalmente) pelos impedimentos editoriais. Tanto na fala dos criadores do canal Porta dos Fundos ou em improviso protagonizado por Marcelo Adnet no canal do também humorista Marcos Castro, encontramos os comediantes problematizando essas condições de produzir para a TV em contraponto à internet. A web seria livre de censuras, podendo-se fazer humor crítico e, na medida do possível, polêmico; enquanto na TV não se pode falar sobre minorias, nome de marcas, palavrão, política. Ao que parece, o imperativo por audiência exigiria fórmulas e limitaria o gênero em um meio, não em outro.
Sem entrar aqui no espinhoso terreno da importância de “limites do humor”, interessa argumentar que ter a internet como “aliada”, no caso do Tá no ar, não blindou o programa de sofrer críticas e ameaças muito similares às que o TV Pirata sofreu há quase 30 anos. Enquanto Chico Anísio dizia que sua empregada não entendia as esquetes do programa de Guel Arraes, o produtor Boni alega que 90% das pessoas não entendem as piadas de Adnet. Enquanto TV Pirata teria corrido o risco de sair do ar pelos estranhamentos que suas inovações causaram, Tá no ar é apresentado no portal G1 não na seção de humorísticos, mas como uma série, sempre sob sensação de que uma temporada seguinte pode não acontecer.
Se o gênero humorístico continua marcando com força seu espaço, mantendo no lugar de patinho feio quem apresenta alguma dose de ousadia e inovação, é sinal que a TV não está morta, pelo contrário, está bem viva. Aliás, mesmo quem cria na internet reagindo a uma alegada falta de espaço na televisão, não deixa de tematizar e estar na TV (de novo, estamos falando do Porta do Fundos, de sua inserção na programação da Fox e de esquetes como O que você faria?).
Assim, se a televisão está sendo midiatizada, perpassada por outras lógicas institucionais que não as tipicamente suas, vale notar, a partir do humor, como ela continua sendo um agente importante no processo de midiatização da sociedade, inclusive atravessando lógicas institucionais de outras mídias. Mesmo que “em transição” (Freire Filho, 2009), a televisão é (e talvez não deixe de ser, pelo menos por um bom tempo) um dos pilares de nossa cultura (Maigret, 2010).
Paula Simões é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Comunicação Social pela UFMG, possui Graduação (2001) e Mestrado em Comunicação Social pela mesma instituição (2004).
Gáudio Bassoli é mestrando do programa de pós graduação de Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais. Possui graduação em Comunicação Social habilitação em Jornalismo, com formação complementar em Psicologia (2013), e habilitação em Relações Públicas (2014), pela mesma instituição.
Referências
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