O cenário é devastador. Relatos absurdamente trágicos e tristes de pessoas que perderam tudo. Não sobrou nada, não sobrou coisas, vida, documentos e fotos. Não sobrou nada? Anos atrás, tive a oportunidade de entrevistar dezenas de famílias que moram nas margens da Represa Billings, na zona Sul da cidade de São Paulo. Uma conversa em específico me marcou: um senhor morava em uma casa de madeirite com os nove netos, esposa e duas filhas. Quando perguntei para ele o que mais o atravessava naquela situação, ele me respondeu: “Nada, moça. A gente não tem nada, a gente perde tudo, compra, paga por muitos meses e perde, meu medo maior é a vida dos meus netos, agora as coisas a gente dá um jeito”. Isso num cenário de casas invadidas pela água da represa de forma constante, palafitas na cidade mais rica da América Latina.
A comunidade científica vem alertando que, com o aquecimento global ocasionado pelas nossas emissões de gases de efeito estufa, a tendência é de intensificação de fenômenos atmosféricos extremos. Ainda assim, nossos governantes estão pagando para ver.
Cidades inteiras debaixo d’água, mais de 90 mortos, mais de uma centena de desaparecidos, milhares de desabrigados, sem água e sem ideia do que será realmente feito para que suas vidas se normalizem. A situação trágica e triste sem precedentes no Rio Grande do Sul é exemplo de como mudanças na legislação ambiental e a falta de repasses de orçamento para adaptação às mudanças climáticas potencializam os danos provocados pelos eventos climáticos extremos. Parte da população do Rio Grande do Sul não poderá voltar para as suas casas nunca mais. É uma leva de migrantes climáticos de um Estado que trata política climática com negacionismo, e isso é só o começo.
O ano de 2023 será lembrado por retrocessos ambientais históricos no Congresso Nacional. Foram promulgadas as leis 14.701, que afronta vários direitos indígenas – originada do Projeto de Lei (PL) do Marco Temporal -, e a 14.785, derivada do PL do Veneno – o “liberou geral” dos agrotóxicos. Quebrada a barreira, diversos outros projetos de lei do chamado “pacote da destruição” começaram a ser desembrulhados em 2024.
Segundo o levantamento do Observatório do Clima, esse conjunto de propostas, se aprovadas, causarão danos irreversíveis aos ecossistemas brasileiros, população negra, quilombola, indígena, comunidades tradicionais, periferias das cidades, ao clima global e à segurança de cada cidadão. Um “novo pacote da destruição” está na Câmara e no Senado Federal, revigorado e muito mais dinâmico. Conta com propostas recém redigidas e com antigos projetos que ganham fôlego da noite para o dia, muitas vezes tramitando de maneira conclusiva nas comissões, atropelando o regimento e a interlocução com a sociedade civil.
Atualmente, no pior Congresso da história, tramitam 25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) que afetam direitos consagrados em temas como licenciamento ambiental, grilagem, direitos indígenas e financiamento da política ambiental. Há ainda outros que flexibilizam o Código Florestal, legislação sobre recursos hídricos, mineração, oceano e zonas costeiras, sendo que alguns têm alta probabilidade de avanço imediato. Todas as propostas afetam diretamente a vida das pessoas nos territórios.
O grande desafio nos próximos 10 anos, que serão cada vez mais quentes enquanto o aquecimento global atinge patamares mais assustadores, é o nível absurdo de desigualdades sociais geradas pelas mudanças climáticas, que põe em risco qualquer projeto de democracia.
Clima, biodiversidade, poluição e desigualdades constituem um cenário de degradação profunda. O que limita a capacidade da sociedade de receber direitos básicos de moradia, saúde, segurança física, alimentar, hídrica, econômica e emocional.
Há um projeto de “deixar morrer”, contar corpos, fingir que o problema não é grave, distribuir desinformação e derrubar legislações valiosas para a vida – das pessoas e das florestas. Essa tendência já afeta de maneira violenta e dramática os países mais pobres e, neles, as pessoas mais pobres, negras, indígenas, mulheres negras, crianças e jovens.
O Estado mata todos os dias, a cada minuto, jovens negros a bala, mas agora talvez tenha aprendido a matar afogado e de outras maneiras absurdamente violentas. A democracia não é só defender eleição, democracia é direito básico de existência e sem medo de morrer cotidianamente.
O desastre não é natural! É construído no Estado que desrespeita a legislação ambiental. O desastre é parte consciente do projeto político de governos negacionistas ou incapazes de se preocupar com a vida das pessoas e das florestas, afinal elas são indissociáveis. Os desastres são fruto de escolhas humanas e de processos políticos de poder. O conceito de “desastre natural” vem sendo usado de forma recorrente, mesmo por autoridades públicas e jornalistas para justificar tragédias e a inoperância dos governos.
Como colaborar com as vítimas no Rio Grande do Sul
O estado do Rio Grande do Sul tem mais de sete mil famílias quilombolas e aproximadamente 1.300 famílias de comunidades tradicionais de matriz africana e terreiros, muitas delas estão ilhadas, sem acesso à água, energia e alimento. É urgente que todos se solidarizem neste momento e isto serve para todos os cidadãos que estão em suas casas assistindo tudo passar, este evento climático que deixou milhares de famílias desoladas no Estado é responsabilidade de todo o país. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ fez um chamado para arrecadação de doações.
Postado originalmente no site Geledés, por Mariana Belmont no dia 8 de maio. No link: https://www.geledes.org.br/o-desastre-nao-e-natural-e-politico/
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Este texto foi publicado no site Geledés pela Mariana Belmont, no dia 8 de maio.
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https://www.geledes.org.br/o-desastre-nao-e-natural-e-politico/
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Bom dia Magrid, post atualizado e créditos devidamente dados! Obrigada por entrar em contato