Por Gustavo Fernandes.
Para o autor Goethe, o que passou, passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre. A transitoriedade do ser humano, de suas relações e das fases de sua vida é, portanto, inevitável. Tudo que ainda não é passado, um dia será. No entanto, em alguns casos, faíscas do passado podem ser tão vívidas quanto o próprio presente, e até mesmo assumir a forma de um refúgio em tempos de dificuldade. Esse é o cerne de O Dia de Jerusa, curta-metragem de 2014 escrito e dirigido por Viviane Oliveira e estrelado por Débora Marçal e Léa Garcia.
O filme narra a jornada de duas mulheres distintas ao longo de um dia específico, que passa a ser de grande importância para ambas. Uma delas é Jerusa, uma senhora que, sozinha em sua casa silenciosa, prepara a comemoração de seu aniversário de 77 anos de idade. Paralelamente, a jovem Silvia se apronta para um longo dia de trabalho, que consiste em realizar uma pesquisa domiciliar sobre o uso de sabão em pó. O dia das duas personagens acaba se tornando um só quando Silvia bate à porta de Jerusa para realizar sua pesquisa, e a senhora começa a discorrer naturalmente sobre diversos eventos de sua vida de forma entusiasmada.
Já na cena inicial, o filme consegue delinear, de forma poética, as principais intenções de sua premissa. Arrastando seu carrinho de compras, Jerusa caminha de forma serena por uma rua silenciosa, indo na contramão de um carroceiro desfocado ao fundo. Já no plano seguinte, o consagrado João Acaiabe é enquadrado como o homem puxador da carroça. Enquanto um homem carente declama fervorosamente o poema Minha Mãe, de Luís Gama, o trabalhador encarnado por Acaiabe é esbarrado pela jovem Silvia, que caminha apressadamente rumo a seu trabalho. Não coincidentemente, o momento é marcado pela voraz declamação do verso “Uma hora a gente se encontra”. Pronto: o destino das duas mulheres responsáveis por guiar a trama já foi traçado. Assim como uma frágil senhora tentando alcançar uma lata de lixo é responsável por conectar sutilmente os protagonistas da Trilogia das Cores do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski, o carroceiro de Acaiabe é incumbido de unir dois trajetos distintos em O Dia de Jerusa.
O paralelo estabelecido entre as duas protagonistas é ainda mais forte e eloquente se forem considerados os contextos de suas primeiras aparições. Enquanto Jerusa abre o filme com um sorriso sereno no rosto ao puxar um carrinho de compras ao longo de uma rua tranquila, Silvia tem sua primeira aparição em meio a um turbilhão de acontecimentos no mesmo espaço: o carroceiro se dedica ao trabalho (a construção do futuro) enquanto um casal de moradores de rua tem relações íntimas (o desfrute do presente) e, concomitantemente, um homem declama um poema com paixão e fervor (o resgate do passado, haja vista o conteúdo do saudoso poema recitado). Enquanto Silvia lida apressadamente com a construção de seu presente e futuro, as maiores preocupações de Jerusa são suas memórias – tão presentes e reluzentes em seu coração quanto seu próprio presente desbotado e inerte.
O nítido estresse de Silvia em sua cena de introdução ao público é, aos poucos, justificado pelo roteiro. O ambiente de trabalho da jovem é caótico, opressivo e nada acolhedor. Suas colegas da empresa demonstram, a todo momento, insensibilidade e nervos à flor da pele. Nas ruas, a personagem é assediada por um homem entrevistado, mas não reage. Muito pelo contrário: Silvia dá continuidade à execução de seu trabalho, demonstrando resignação em relação ao ocorrido, como se fosse algo corriqueiro com que tivesse que lidar diariamente. A personagem é encarnada por Débora Marçal, que imprime de forma exitosa toda crueza com que Silvia lida com as adversidades do cotidiano. Aos poucos, no entanto, a atriz desconstrói a carapaça emocional que envolve a jovem pesquisadora, permitindo que ela renasça emocionalmente durante seu emblemático encontro com Jerusa. Encontro que, inclusive, é marcado por um lampejo de esperança em relação a um futuro profissional menos opressivo para a moça.
Jerusa, por sua vez, não se mostra tensa ou estressada em momento algum. Sempre energética e cheia de vigor, a senhora aniversariante é interpretada com força e carisma por Léa Garcia. Através de uma performance poderosa, a veterana indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes de 1957 por sua atuação em Orfeu Negro, encarna com intensa paixão todo o entusiasmo otimista da personagem, que exerce influência emocional até sobre a apática Silvia.
Quando chega à casa de Jerusa, Silvia assume o compromisso de não estender sua pesquisa sobre sabão em pó por mais de quinze minutos. Seu objetivo logo cai por terra ao perceber que a aniversariante está excessivamente contente com sua presença. Cada pergunta feita por Silvia como parte do trabalho é uma engrenagem que movimenta a memória de Jerusa, que, como resposta, externa suas lembranças com furor e intenso saudosismo. Silvia, por sua vez, fica cada vez mais sensibilizada com os relatos da anfitriã, sentindo-se gradativamente mais imersa em suas memórias.
A direção de arte, assinada por Laura Carvalho, opta por trabalhar o aspecto visual de maneira uniforme, integrando todos os personagens através da coloração de suas vestes: sempre brancas ou em tonalidade creme, dialogando com a baixa saturação que caracteriza a direção de fotografia, assinada por Thiago Quadrado e Tulio Ferreira. A escolha da paleta de cores não poderia ser mais adequada, afinal, para o ser humano, o presente é nítido, vívido e repleto de tons e nuances. Já o passado tende a ficar cada vez mais disforme e desbotado conforme o tempo passa, se tornando memória – e não mais que isso. Dessa forma, o visual impõe, a todo momento, um questionamento acerca do tempo: e quando o agora for pretérito? Ele reluzirá, ou será apenas mais uma memória no vácuo do esquecimento?
Segundo o conhecido ditado de Goethe, não importa o quão luzente seja a lembrança, ela continua sendo, inevitavelmente, uma lembrança. O filme é encerrado por um delicado plano que dialoga com o de abertura: a gratificante despedida de Jerusa e Silvia. Ao fundo, o carroceiro continua sua jornada. Existe uma possibilidade de as duas se encontrarem eventualmente? Talvez, mas isso não importa. Ambas as personagens agora esboçam serenidade e gratidão pelo tempo que compartilharam, e o filme é justamente sobre isso: o reconhecimento da vivência e sua finitude. Ao término, O Dia de Jerusa já é uma lembrança na mente do espectador. Mais importante que isso, no entanto, é sua capacidade de, enquanto lembrança luzente, permanecer como uma vívida chama de conforto no coração do público. O curta-metragem assume, para o espectador, a forma daquilo que foi o próprio aniversário de 77 anos de idade para Jerusa: um momento de conforto e acolhimento, mesmo que em meio a um presente desbotado, inerte e solitário.
Gustavo Fernandes é monitor do CCM e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.