Por Douglas Fernandes e Henrique Perini. A noção de quadrinhos documentais, segundo o professor da UFJF, Felipe Muanis, propõe a articulação entre a forma cultural da HQ, comumente associada ao entretenimento, e a narrativa de não ficção. O termo “serviria para designar um gênero mais amplo, um guarda-chuva, contendo outras abordagens como a jornalística, a biográfica e a do relato de viagem”, assinala. Muanis esteve em setembro, na Faculdade de Comunicação e Artes, para dar uma palestra sobre o tema a convite do CCM.
As HQs documentais surgiram com maior força no final da década de 1990 e tiveram como principal influência o jornalista maltês Joe Sacco. Talvez, por esse motivo, se adote, ainda, a definição de jornalismo em quadrinhos (ou quadrinhos jornalísticos) para tratar de HQs que lidem com o factual. Diferentemente dos quadrinhos chamados de tradicionais (que remetem, na maioria das vezes, ao gibi, às tirinhas cômicas e às ficções de super-heróis), as HQs documentais se apresentam como produções mais robustas, em que aparecerem espaços maiores para o surgimento do homem cotidiano nos enredos. Em Um Contrato com Deus, de Will Eisner (de 1978, considerada a primeira graphic novel), por exemplo, não há referência a personagens dotados de superpoderes ou que se destacam frente aos outros por algum motivo extraordinário. A obra trata, primordialmente, de pessoas comuns.
Os quadrinhos documentais, geralmente publicados no formato de graphic novel, são, de acordo com Muanis, muitas vezes produzidos em preto e branco e almejam a quebra de tabus, buscando, por meio do desenho, uma representação mais ampla que outras mídias não facultam. O desenho permite determinadas imagens (de violência, por exemplo) que a fotografia, cinema ou televisão não podem mostrar por uma questão de “bom gosto”. “Tem coisas que só o desenho vai dar. As demais mídias têm dificuldades em lidar com alguns tipos de imagem”, ressalta Muanis.
Outra influência importante para o quadrinho documental e que merece destaque, segundo Muanis, é o quadrinho underground, surgido nos Estados Unidos na década de 1960. Muanis alega que esses quadrinhos são a base para as HQs documentais. Visualmente, são obras sem cores, onde os personagens eram retratados fora dos padrões, desconjuntados. Este tipo de quadrinho escapa às regras impostas pelas editoras, tanto em seus aspectos gráficos quanto de conteúdo, o que permite uma liberdade maior de “dizer o que não poderia ser dito na sociedade”. Os personagens fogem dos padrões estéticos de beleza (se distanciando do star system estadunidense) e dos padrões de comportamento. Nessas histórias, abordam-se temas como drogas, sexualidade e hedonismo. O underground buscava autonomia para falar de tudo que não podia ser dito nas produções mainstream. Logo, se assumem como produções alternativas, com venda em locais fora do mercado regular, afastando a ideia de que o quadrinho é voltado somente para crianças. A construção do discurso é autorreferente, com o autor assumindo o caráter de personagem nas próprias histórias. Essa personificação do personagem no quadrinho underground busca a desconstrução da imagem idealizada dos personagens clássicos.
“São obras mais densas e que tratam de experiências mais mundanas, onde o autor é o próprio personagem e vive seu cotidiano. “As graphic novel oferecem a oportunidade de atender uma necessidade de narrar as histórias de pessoas banais e suas relações cotidianas, retomando o documental que já aparece desde as pinturas rupestres, passando pelas charges dos jornais”, aponta Muanis.
O quadrinho documental é um dos espaços importantes para a alteridade devido à exposição do autor na história em que ele narra. Para Munais não se trata de narcisismo, mas de “uma necessidade de demarcar um espaço de subjetividade que se torna, para o leitor, alteridade. E isso é menos performance e mais o desejo de trabalhar lugares invisibilizados. Trata-se de reconhecimentos que precisam ser feitos e preconceitos que devem ser superados”. Para o professor, os quadrinhos documentais abordam as relações cotidianas que se apresentam como extraordinárias para uma sociedade que não sabe enxergar o outro, lidar com outro.