Por Míriam Santini de Abreu e Gislene Silva. O VI Seminário Mídia e Narrativa, com o tema Emergências: novas realidades e as mídias, pautou-se pela constatação de que as mídias têm, historicamente, apagado sujeitos e espaços sociais. Outras narrativas, tanto à margem como em articulação com os meios de comunicação estabelecidos, vêm valorizando vozes até então silenciadas. Entre elas estão as mídias que produzem jornalismo contra-hegemônico, que tem potencial para fazer o trabalho de tradução das experiências sociais que se contrapõem aos modelos hegemônicos ditados pelo capitalismo global, na perspectiva teórica de Boaventura de Sousa Santos.
O trabalho de tradução correlaciona-se com dois outros conceitos do Souza Santos, sociologia das ausências e sociologia das emergências. As formulações do autor criticam o modelo dominante da racionalidade ocidental e ampliam a compreensão do mundo e as formas como nele se cria e legitima o poder social. A proposta de Sousa Santos nutriu-se de um projeto de investigação sobre experiências de movimentos sociais e de organizações não-governamentais para combater a globalização neoliberal e o capitalismo global. O conjunto de conclusões é extremamente rico para se pensar o jornalismo. O autor constatou que 1) a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que aquelas consideradas as importantes pela tradição científica e filosófica ocidental; 2) esta experiência é amplamente desperdiçada; 3) para combater esse desperdício, é necessário um modelo diferente de racionalidade e, como consequência, de ciência social (SANTOS, 2002: 238). Assim, ao modelo de racionalidade dominante, denominado pelo autor de razão indolente, ele propõe outro, o de razão cosmopolita, que se funda nos três procedimentos sociológicos citados: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução.
A sociologia das ausências implica o movimento de dilatação do presente, trazendo à tona as alternativas/experiências ignoradas, invisibilizadas nas ciências sociais convencionais, tirando-as da condição de não-existência e alçando-as à condição de alternativas às experiências hegemônicas na disputa política. A este movimento soma-se outro, o de contrair o futuro, caminho sinalizado pela sociologia das emergências, que abre um leque “(…) de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão construindo no presente através das actividades de cuidado” (SANTOS, 2002: 253).
Essas sociologias, afirma Santos, estão estreitamente ligadas porque quanto mais o mundo revelar experiências disponíveis, mais experiências possíveis irão se concretizar no futuro. E entre os campos sociais que o autor considera os mais importantes para essa multiplicidade e diversidade se revelarem estão os de comunicação e informação, que inclui 1) os fluxos globais de informação e os meios de comunicação social globais e 2) as redes de comunicação independente transnacionais e os meios independentes alternativos (SANTOS, 2002: 260).
No vasto campo aberto por sua proposta, Santos também delineia o caminho para novas formas de pensar e de conceber sentidos para a totalidade social em suas inesgotáveis formas de expressão. O caminho é o que ele denomina trabalho de tradução, procedimento que permite a inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo disponíveis e possíveis, aumentando o campo das experiências como um todo para melhor se avaliar que possibilidades elas abrem para confrontar a globalização neoliberal, não no futuro, e sim no presente.
O trabalho de tradução se dá sobre saberes (entre duas ou mais culturas com preocupações semelhantes e diferentes respostas a elas) e sobre as práticas e seus agentes (os saberes aplicados, transformados em práticas e materialidades). Santos afirma que a tradução é um trabalho intelectual, político e também emocional, por se relacionar com o inconformismo diante de uma carência decorrente de conhecimentos ou práticas incompletas ou deficientes. Os tradutores de culturas devem ser o que o autor designa como intelectuais cosmopolitas, encontrados entre dirigentes de movimentos sociais e ativistas de base.
E o jornalismo e os jornalistas? Podem também se afirmar neste trabalho, traduzindo as experiências sociais que se contrapõem aos modelos hegemônicos ditados pelo capitalismo global? A resposta é afirmativa e se concretiza no jornalismo contra-hegemônico, que tem mais potência para efetivar o trabalho de tradução da experiência ignorada pela mídia hegemônica.
A concepção de jornalismo contra-hegemônico tem sido desenvolvida partir da obra de A. Gramsci, apontando a necessidade de uma imprensa e de uma prática jornalística que, mais do que críticas, se pautem por uma construção contra-hegemônica no capitalismo. A pesquisadora Cátia Guimarães (2015) seguiu este caminho ao trabalhar com o conceito de jornalismo contra-hegemônico no entendimento de que há limites nas estratégias que se colocam no campo do chamado jornalismo alternativo, muitas das quais buscam apenas diversificar ou promover “boas práticas” de informação, conhecimento ou entretenimento, de forma descolada das lutas concretas de transformação da realidade, ou limitam-se a uma guerra de versões com a mídia hegemônica, no movimento de genericamente apontar seu caráter manipulatório. A autora considera essas iniciativas importantes, mas insuficientes para a disputa de hegemonia.
Ao investigar o conjunto de princípios, técnicas e orientações éticas que moldaram o fazer jornalístico que se legitimou como prática social e profissional, a autora identificou duas características deste modelo que possibilitam a reflexão sobre como erigir uma prática jornalística contra-hegemônica. A primeira é a concepção de objetividade que, no jornalismo hegemônico, se confunde com a busca de neutralidade. A segunda é a ideia de atualidade como fragmentação da realidade social.
A autora mostra como a consciência imediata ou empírica, o senso comum, e suas manifestações no cotidiano, na vivência das contradições entre a concepção de mundo e a realidade concreta, são o fértil caminho em que o jornalismo que busca ser contra-hegemônico pode encontrar a sua especificidade: “Até porque é no terreno das contradições imediatas, vividas e sentidas, mas também traduzidas, organizadas e ressignificadas por práticas como o jornalismo, que se dá a luta de classes” (GUIMARÃES, 2015: 234). É a partir deste cotidiano socialmente compartilhado que o jornalismo contra-hegemônico pode se dirigir aos sujeitos, incluindo-os em uma coletividade não fragmentada no movimento histórico.
Essa perspectiva condiz com o conjunto de conceitos de Souza Santos e pode abrir espaços críticos que, no jornalismo, visibilizem as experiências sociais que a mídia hegemônica ignora e que constroem outros/novos caminhos de emancipação humana.
Gislene Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós-doutorado na ECA/USP (2009) e Universidad Complutense de Madrid (2016). Líder do Grupo de Pesquisa Crítica de Mídia e Práticas Culturais.
Míriam Santini de Abreu é graduada em Comunicação Social pela UNISINOS, especialização em Educação e Meio Ambiente pela UDESC e mestrado em Geografia pela UFSC. É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC.
Referências
GUIMARÃES, Cátia Corrêa. Jornalismo e luta de classes: desvendando a ideologia do modelo informativo na busca da contra-hegemonia. Tese apresentada à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/ images/stories/download/pct/ 2016/Mencoes-Honrosas/Servico- Social-Catia-Correa-Guimaraes. PDF>. Acesso em: 24 out. 2017.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002: 237-280. Disponível em http://rccs.revues.org/1285.