Invasões bárbaras: Rebeca Prado, sua viking Lif e outras mulheres das HQs

Por Carolina Andrade e Rafaella Rodinistzky. Ruiva, de cabelos ondulados, baixinha e com a ponta do dente quebrada. Criadora e criatura se misturam. Essa poderia ser a viking Lif, que habita as páginas dos quadrinhos Navio Dragão, mas a descrição se encaixa também em Rebeca Prado, 26 anos, sua idealizadora, que busca outras representações femininas nesse universo gráfico. Enquanto Lif coleciona escalpos, a belo-horizontina Rebeca coleciona campanhas de financiamento coletivo surpreendentes. Logo no lançamento do livro Navio Dragão, sua primeira iniciativa no crowdfunding, a quadrinista arrecadou aproximadamente 38 mil reais – a meta a ser batida era de 15 mil.

“O personagem que sempre achei mais fácil de criar era alguma coisa próxima a mim. Então, eu pensei algumas características físicas que fossem mais acessíveis, algumas características minhas: cabelos, ser mais baixinha, o dente meio quebrado e tal. Em termos de personalidade, eu queria fazer uma coisa que contrastasse com o traço mais suave, mas que não fosse forçado. Quis, então, trabalhar dentro do universo viking, que é mais bruto. Fui pegando esses aspectos até formar toda uma personagem”, afirma a ilustradora.

Rebeca tem a fala suave como seu traço, gestos calmos e inspira tranquilidade. Perguntamos, então, de onde vem a personalidade de Lif –antissocial, bruta, indiferente aos sentimentos alheios? A autora revela que é introvertida, mas possui um tipo de introversão diferente: lida bem com grandes multidões, fala em eventos como o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) e a ComicCon Experience, mas não sabe o que fazer quando pessoas a abordam cara a cara para conversar sobre seus quadrinhos. Rebeca é figura conhecida nas feiras de artes gráficas de Belo Horizonte, onde, apesar da timidez, conversa da melhor maneira com quem aparece em sua mesa.

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Reprodução

A Lif é o contrário do estereótipo feminino, isso foi proposital? “Ah, para o bom entendedor, meia palavra basta, né? Ela é, sim, fora do estereótipo feminino, ponto. Eu não imponho nada pra ninguém, e é por isso que eu não vou impor uma personagem dentro de um estereótipo”, explica a ilustradora que afirma utilizar das ambiguidades na criação dos seus personagens para despertar a atenção dos leitores.

Para seguir no meio dos quadrinhos, majoritariamente formado por homens, desafiar estereótipos é um ato tanto cotidiano como necessário. Rebeca sente que precisa justificar sua presença ali o tempo todo. “A gente sofre com isso. Às vezes há um comentário disfarçado em tom de brincadeira e a gente fica constrangida. Ou, ainda, a própria forma como as pessoas lidam com a nossa atividade: ‘Ah, o seu trabalho é muito bom pra uma mulher’. Eles pensam que isso é um elogio, mas não é. Não é só uma questão de mercado, é uma questão sociocultural também.”

De fato, o mercado de quadrinhos tem se adaptado à presença das mulheres. Contudo, mesmo com essas novas aberturas, Rebeca explica que ainda há divisões de nicho de trabalho e desvalorização das peças produzidas por elas. “No mercado editorial, há uma visão de que mulher produz coisas pra crianças e para outras mulheres. Essas restrições acabam podando nosso espaço ali dentro”, ressalta a artista.

Para seguir nos quadrinhos, meio majoritariamente formado por homens, desafiar estereótipos é uma atitude tanto cotidiana como necessária. Rebeca sente que precisa justificar sua presença ali, o tempo todo. “`Às vezes dizem que meu trabalho é muito bom para uma mulher. Eles pensam que isso é um elogio, mas não é. Não é apenas uma questão de mercado; é sociocultural também”.

A presença de mulheres nos quadrinhos na capital, mas com reverberações em outras cidades, ganhou peso a partir 2013, com o projeto Zine XXX, que, enquanto era colocado em prática, não se sabia o tamanho do impacto que causaria três anos depois. O Zine XXX foi uma coletânea de cinco fanzines impressos, de 24 páginas cada, ilustrados apenas por mulheres (cis e trans), elaborada via financiamento coletivo e a distância, já que as colaboradoras vinham de todo o Brasil.

Ninguém sabia ao certo a dimensão ou o significado de uma publicação independente feita apenas por mulheres. Hoje sabemos: o Zine XXX abriu portas a quadrinistas, que se consolidaram no mercado: Laura Athayde, Aline Lemos (Desalienada), Gabriela Masson (Lovelove6), Samanta Floor, Sirlanney Nogueira (Magra de Ruim). “Iniciativas como o Zine XXX e outros projetos como a Revista Inverna e o Lady’s Comics são importantes não só porque, digamos, suprem uma lacuna no mercado. Os projetos não apenas criam ou seguem um nicho mercadológico, mas possibilitam espaços para incentivar e fortalecer autoras mulheres”, comenta a belo-horizontina Aline Lemos, contribuinte do Zine XXX, em 2013, e hoje integrante do coletivo de mulheres quadrinistas, ZiNas.

Além do ZiNas, já bastante conhecido no meio gráfico de BH, novos coletivos constituídos exclusivamente por mulheres compõem a cena, como o Lunática e o Senhoritas de Patins. Para as meninas que chegam ao nicho dos quadrinhos, Rebeca se posiciona de braços abertos. “Pra não terem medo da gente, sabe? Porque eu acho que a gente é ensinada, por várias coisas, que a mulher tem que concorrer uma com a outra, que ela tem que competir. Mas não, a gente tá aqui pra acolher, pra ver o trabalho, cuidar e ajudar se precisar. Eu acho que a maior dica de todas, e que ninguém me deu, é coragem, porque vai ter hora que você vai depender só dela e de nada mais.”

De coragem em mãos, Rebeca lutou como uma viking na cena das HQ’s para provar o valor de seu traço. A jovem, que adorava ler quadrinhos e mangás quando criança, desenvolveu ao longo da vida o hábito de ilustrar com traços bem delineados as narrativas fantásticas que criava em sua cabeça. Contudo, toda essa delicadeza nos trabalhos se transformou, segundo ela, em um problema quando ingressou em uma faculdade de Artes Visuais. Rebeca afirma que enfrentou bastante resistência de colegas e professores por ter o desenho mais figurativo, e não experimental, como a academia demandava.

Rebeca conta que um professor de Teoria da Cor (matéria que ela hoje ministra na Casa dos Quadrinhos) a alfinetava: “Esse pano em que você limpa o pincel está mais bonito do que o seu desenho”. Hoje, ela avalia: “Eu adoro o abstrato, mas não consigo lidar com ele no meu trabalho. Talvez as abordagens não tenham sido das melhores na faculdade, e eu acabei perdendo um pouco a vontade de trabalhar. E não só a vontade, fui perdendo a segurança para fazer, porque nada que eu fazia estava bom, nada se encaixava. E, mesmo se eu tentasse outra coisa, não era suficiente, e eu fui falando ‘ah então eu não vou fazer’”.

Somos ensinadas, por várias coisas, que uma mulher tem que competir com a outra. Mas isso não é verdade. Estamos aqui para acolher, para ver o trabalho, cuidar e ajudar, se for preciso. A principal dica é ter coragem. Vai ter hora em que você só dependerá dela, de nada mais

Mas fez. E uma das histórias de reconhecimento profissional que Rebeca conta com efusividade é a de seu encontro com Gail Simone, durante o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de 2013 em Belo Horizonte. Simone foi a criadora da primeira protagonista transgênero das histórias em quadrinhos em uma grande editora, A Batgirl, da DC Comics, durante a fase Novos 52. Além disso, Gail foi a roteirista que mais escreveu HQ’s da Mulher Maravilha e também trabalhou para a Marvel nos números finais de Deadpool.

Apresentações à parte, Gail aterrissou no Brasil para o FIQ e se deparou com uma viking em terras tropicais. “A Gail pegou meu trabalho e me falou que era a melhor coisa que tinha visto no evento. Ela o levou, traduziu as tiras e mantém contato comigo até hoje. Contato mesmo, de chamar no Facebook ‘e aí, como que você tá?’ Eu fico muito, muito feliz com isso. Na hora, fui muito profissional. Mas, depois que ela saiu, eu achei que eu ia desmaiar, meu corpo ficou mole, minha cabeça ficou quente e eu pensava ‘meu deus, o que aconteceu?’. Eu não fui lá mostrar o meu trabalho pra ela, mas ela foi ver, isso que foi pra mim o mais interessante. Esse fato vai superar qualquer coisa ruim que tenha acontecido na minha carreira. Me agarro nisso várias vezes”.

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Foto: Rafaella Rodinistzky

Com uma mente empreendedora, a multiartista transcende seu nicho de mercado profissional e, além de lecionar e criar, ainda colabora com projetos de design e fotografia. Um de seus mais recentes trabalhos vem sendo feito em parceria com a agência de design Amarelo Criativo, onde Rebeca colabora com peças e leciona nos workshops de “Técnicas e experimentações em aquarela”.

“Ela é muito criativa, divertida e excepcionalmente talentosa”, define a dona da agência Amarelo Criativo, Thalita Alves. “Quando começamos a desenvolver os projetos de workshop em BH, nosso objetivo era suprir uma demanda de cursos que faltavam na cidade. Para dar credibilidade a esses cursos, procuramos os melhores dos melhores para lecionar. Durante esse processo, o nome da Rebeca foi citado inúmeras vezes. Marcamos uma reunião para conversarmos e ficamos abismados com o seu portfólio”, conta Alves.

A presença tranquila e alegre é percebida quando se trata da ilustradora. Durante a entrevista, um dos originais que estavam espalhados pela mesa se destacou. O papel tinha uma textura mais espessa, mas não se parecia com um canson – papel de gramatura mais densa, utilizado geralmente para pintura. “Ele é 100% algodão, é praticamente uma camiseta!”, conta Rebeca sorrindo. Diz que quase não os tira de casa, já que o toque dos dedos costuma manchá-los. “Esse aqui foi feito com apenas três cores”, aponta para a figura de um garoto ruivo. Fica difícil imaginar que tantos detalhes contenham apenas três cores, da mesma forma que fica difícil acreditar que um pano de limpeza de pincel fosse melhor que as aquarelas de Rebeca Prado.

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Reprodução

Carolina Andrade é graduanda do curso de jornalismo da PUC Minas. Viciada em música, séries e livros, descobriu no jornalismo um mundo abrangente que a permite se reinventar constantemente e interagir com as artes por meio da escrita.

Rafaella Rodinistzky é graduanda do curso de jornalismo da PUC Minas e encontrou na paixão pelos quadrinhos mais um motivo para escrever. Sobre o assunto, tem publicadas, de maneira independente, a entrevista Desenquadradx, com a cartunista Laerte Coutinho pela revista Farpa (2015), uma matéria especial sobre gênero e quadrinhos, pela revista Transcendente (2014), e uma tirinha pela coletânea Zine XXX (2013).