Por Roberto Barcelos. Pensar sobre cinema é analisar como representações influenciam espectadores e formas de significar o mundo. Em espaços alternativos às produções realizadas pelo audiovisual televisivo, assuntos considerados tabus para muitos são tratados com uma visão crítica e delicada por diretores e roteiristas. Logo, o gay no cinema e suas diversas facetas podem ser enxergados como um ato político de representatividade.
As formas de representação de personagens gays no cinema são elementos fundamentais para fomentar debates sobre sexualidade, principalmente em um país como o Brasil, onde o assunto ainda é extremamente cercado pelo conservadorismo. De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia, 343 pessoas LGBT+ foram mortas no país em 2016. A insegurança é algo comum para qualquer pessoa que não seja heterossexual ou cisgênero e, portanto, é necessário atentar o olhar para as imagens que surgem no audiovisual, principal meio de comunicação da sociedade brasileira.
É frequente a reprodução de estereótipos, principalmente das grandes produtoras que focam em criar filmes mais comerciais e popularescos. Neles, a figura do homossexual é comumente enxergada como um objeto cômico durante a narrativa, com trejeitos exagerados e caricatos. Porém, não podemos considerar essa forma como a única que o cinema encontrou de mostrar personagens que não fazem parte de uma realidade heterossexual e machista que a indústria propõe. Existem tentativas de aprofundar o entendimento da sexualidade e transformá-la em uma força motriz potente para diversas tramas.
É o caso do longa-metragem “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, adaptação feita pelo diretor Daniel Ribeiro do curta “Eu Não Quero Voltar Sozinho”. No filme, Leonardo (Guilherme Lobo) é um garoto cego preso em uma típica rotina escolar que é transformada quando um aluno novo, Gabriel (Fábio Audi), começa a fazer parte da sua vida. O romance entre eles surge gradativamente durante o desenvolvimento do roteiro, evidenciado pelas incertezas do protagonista e seus sentimentos juvenis confusos.
Leonardo e Gabriel não parecem se preocupar em assumir sua sexualidade, uma vez que o filme é pautado na dúvida e na inocência do desejo deles, com a premissa de o amor ser cego. Entre a rotina da atividade das escolas e ida de volta para a casa, detalhes dos momentos entre os dois vão construindo lentamente o afeto, principalmente no caso do Leonardo. Alguns diálogos são marcados por suas dúvidas constantes, intensificadas por não conseguir compreender a possibilidade de estar gostando de alguém do mesmo sexo.
Entre as cenas do filme, percebemos as habilidades do diretor com o domínio da câmera para descrever a situação dos personagens principais. A cena do beijo de Leonardo e Gabriel propõe uma ligação entre os sentimentos que precisavam ser liberados. A câmera foca, primeiramente, em um plano médio tornando o cenário opaco, com os personagens em close durante o beijo. O som torna-se seco, apenas com o movimento dos lábios enquanto é entregue para os espectadores a concretização do romance, em um primeiríssimo plano que evidencia aquele momento como algo apenas dos dois; nada mais importa.
É possível analisar as instituições presentes na obra como menos conservadoras, mas é problemático que a representação do lugar onde os dois personagens do filme frequentam seja a de um espaço em que os alunos não sofrem qualquer tipo de agressão – não apenas física – por apresentar um comportamento considerado proibido. De fato, muitos adolescentes enfrentam situações conflituosas no processo de aceitação de sua sexualidade por causa do tratamento agressivo recebido por terceiros. Logo, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” cria uma realidade distante daquela vivida por homossexuais, pautada na dificuldade que enfrentam de se aceitarem e serem aceitos.
Em contraponto, há a construção da homossexualidade proposta em “Tatuagem” (2013), dirigido por Hilton Lacerda. Arlindo Araújo (Jesuíta Barbosa) é um soldado raso apelidado de “Fininha”. Preso pelo conservadorismo da década de 70, o jovem acaba conhecendo, por via do irmão de sua suposta namorada, o teatro-cabaré Chão de Estrelas, onde Clécio Wanderley (Irandhir Santos) cria e encena shows debochados que desafiam qualquer forma de autoritarismo e censura.
A prisão de Fininha é revelada quando o diretor apresenta o personagem no quartel general onde vive, entre as barras de ferro dos beliches do dormitório. A escolha do plano cria o entendimento de ele estar preso, mesmo que compreendido apenas em seu subconsciente. Divergente às cores cinzas do quartel, o cenário onde Clécio está presente é comumente rodeado pelas cores tropicais da praia ou difusas de sua casa de show. O impacto de dois mundos separados pelo progresso e o regresso se colide com o desenvolver do romance.
Como ditadura reprimia qualquer movimento considerado desviante ou contra os bons valores da época, em diversos momentos da narrativa os personagens são confrontados por não fazerem parte da cultura heteronormativa, o que resultou na violência dos militares contra o Chão de Estrelas. Essas forças repressoras, ausentes em “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, são evidenciadas em “Tatuagem”, em diálogo mais afinado com a realidade vivida pelo grupo social.
Assim, por mais que “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” seja capaz de suprir uma falta que existe no cinema, há necessidade de criticá-lo por construir uma realidade que não dialoga com as dificuldades enfrentadas pelos homossexuais. Isto posto, nota-se que existe uma desarmonia entre o que é representado no cinema e a experiência da vida cotidiana. Cada imaginário construído projeta entendimentos sobre o mundo ao criar consensos e fortalecer estereótipos. É necessário incentivar perspectivas críticas sobre o cinema, que precisa suprir uma falta sem alienar as condições sociais que muitos precisam encarar.
Roberto Barcelos é graduando do curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e monitor do Centro de Crítica da Mídia.