Por Pedro Vaz Perez. Não são muitos os diálogos reservados por Jean-Luc Godard a Fritz Lang em O Desprezo (1963). Mas, naqueles momentos em que ouvimos o personagem-ator-diretor, temos a justa medida de um grande homem que enfrentou o fascismo na Alemanha para cair nas mãos tiranas do produtor hollywoodiano. “Anos atrás, uns anos horríveis atrás, os hitlerianos diziam “revólver”, em vez de “talão de cheques”, ironiza Lang ao responder à provocação do capitalista americano Jeremy Prokosch: “quando escuto a palavra cultura, eu puxo meu talão de cheques”.
Última incursão de Lang na tela grande, sua participação em O desprezo é uma reflexão sobre a relação entre cinema e política, bem como uma homenagem do diretor francês a um dos nomes do noir que haviam influenciado, com seus filmes B em Hollywood, a política dos autores proposta pelos jovens dos Cahiers du cinema. O discurso de Godard é claro. Lang enfrentara duas vezes a opressão: o convite de Goebbels para ser o cineasta do Reich, e as imposições comerciais dos grandes estúdios sobre a estética de um artista.
A pesquisa histórica posterior cuidaria de encontrar o passaporte de Lang, que mostrava que ele havia entrado na Alemanha diversas vezes antes de se mudar definitivamente para os Estados Unidos. Como demonstra Luiz Nazário (1999) em ensaio do livro As sombras móveis, ao sair da Alemanha com filme proibido por Goebbels, talvez por orgulho ferido de um grande diretor, Lang teria inventado toda uma história de resistência ao fascismo para esconder e sublimar sua adesão àquela proposta de regime, cuidando para não se tornar mal quisto na América. Uma grande atuação, naquele que seria o papel mais convincente que o diretor alemão performaria ao longo das décadas que separaram sua saída do território fascista, em 1933, até sua morte, em 1976.
Esta narrativa, encorpada pelos filmes antinazistas feitos por Lang em Hollywood, sempre orientou determinada leitura de seus primeiros filmes alemães como portadores de uma crítica ao horror em ascensão – história comprada por boa parte da crítica e da historiografia, como ilustra o exemplo de Godard. Mas a análise atenta dos pormenores dos discursos dessas obras, associada ao contexto histórico, demonstra, como sugere Nazário, que Lang, junto a Thea von Harbou, esposa e roteirista de seus filmes, estava bastante em sintonia com a ideologia do partido nacional-socialista. “Protonazistas”, seus filmes ajudaram a preparar o terreno para a ascensão de Hitler em 1933.
São vários os exemplos possíveis, como a associação entre comunistas e terroristas nos ataques incendiários realizados por um médico expressionista possuído em O testamento do Dr. Mabuse (1933), filme proibido por Goebbels após a ascensão do partido nazista ao poder naquele ano – o apelo sensorial da violência como ferramenta de medo ideológico, até então desejável porque identificada com os comunistas, não era mais bem vista após a chegada dos nazistas ao poder.
Outro exemplo é visto em M. O vampiro de Dusseldorf (1931). Narrando a dupla perseguição de um assassino de crianças pela polícia e por uma espécie de sindicato dos bandidos, seu grand finale reserva um engenhoso traço ideológico. Apesar da genialidade da atuação de Peter Lorre, visto em uma sequência filmada de maneira expressionista, num ambiente escuro e opressor, ele com olhos saltados, num misto de confissão e autodefesa, discursa frente à turba de bandidos que desejam fazer justiça com as próprias mãos. A breve entrada em cena da polícia indica que o criminoso seria eliminado com a pena de morte pela justiça do Estado. O tribunal é visto em poucos segundos: são três pessoas sentadas na corte, numa possível alusão à santíssima trindade. Em seguida, a sofrida mãe de uma das vítimas sugere, de maneira sutil, que “isso” – a pena de morte – não era suficiente: “vocês precisam cuidar das nossas crianças”, pede. Pois a eliminação do criminoso, posterior ao crime, não traria a filha de volta. A conclusão lógica a que chega o espectador apresenta mais uma vez a sutileza de Thea von Harbou, abertamente entusiasta do projeto nacional-socialista: os criminosos em potencial precisam ser exterminados antes que possam cometer seus crimes e prejudicar as famílias de bem. E a decisão soberana sobre quem deve viver ou morrer cabe a ninguém menos que o Estado – fascista. Ainda, como demonstra Nazário, a letra M que marca de branco as costas do protagonista prefigura a estrela amarela de Davi, numa estratégia para destacar visualmente os criminosos em potencial. E o ator de ascendência judaica Peter Lorre, escolhido a dedo pelo casal Lang-Harbou para viver o pedófilo, seguia o estereótipo de judeu perseguido pelos fascistas.
Mas o exemplo mais explícito da ideologia protonazista no cinema de Lang é Metrópolis (1927). Considerado por muitos, com justiça, como um dos mais importantes e audaciosos filmes de Fritz Lang, torna incômodo o trabalho do espectador, que ao mesmo tempo mergulha na delícia da fruição estética de uma sofisticada obra de arte e questiona-se sobre a ideologia problemática da obra. Superprodução, o filme foi também responsável por quase levar a UFA à falência. Realizado no período silencioso, durante o predomínio do expressionismo no cinema alemão, destaca-se pela inventividade da mise-en-scène. Na ausência das palavras faladas, Lang constrói o sentido no filme a partir ritmo da montagem e das composições dos planos. Bons exemplos são as tomadas dos corredores da cidade subterrânea, que conduzem blocos de trabalhadores sem rosto ou identidade; ou o ritmo de aço do progresso autoritário expressado pela movimentação mecânica dos operários na grande máquina, em um belo plano geral, com muita fumaça, grandes blocos e muitas linhas em um rigoroso cenário que mostra a visão de Freder, filho do patrão.
Ficção científica que vislumbra o progresso pelo desenvolvimento maquínico mediado pelo trabalho do homem, Metrópolis apresenta um futuro com gigantes arranha-céus, infinitos viadutos suspensos e grande fluxo de automóveis. Tudo isso, entretanto, suportado pelo trabalho – quase – escravo dos operários que habitam as camadas subterrâneas da cidade comandada com mãos de ferro por Jon Frederer, um empresário-ditador que não mede esforços para disciplinar seus subalternos e mantê-los sob sua vigilância, controlando a tudo e a todos da mesa de seu imponente escritório. Para isso, vale-se do auxilio de um cientista louco. Rotwang constrói um robô com a cara de Maria, uma pregadora messiânica admirada e seguida pelos operários. Em seus discursos, a Maria original profetizava a chegada ao submundo de um “mediador”: um “coração” que poderia integrar as mãos ao cérebro – aqueles que trabalham a aquele que manda.
O robô Maria, por sua vez, apesar de trazer mesmo rosto, é ideologicamente diferente. As expressões faciais, muito bem trabalhadas, bem como a maquiagem, mostram uma face expressionista da personagem, ao contrário da aura angelical da primeira. Como se vê no exame atento da filmografia de Lang, os elementos expressionistas – ao contrário de um Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, todo ele expressionista – sempre são associados aos vilões, demonstrando que estes personagens possuem motivações ocultas, dimensões obscuras, agem nas trevas. A casa de Rotwang, toda marcada por um pentagrama invertido, muito semelhante à estrela de Davi – não fosse também um símbolo de bruxaria –, é a única construção expressionista do filme, de resto dominado por um neoclássico monumental aos moldes nazistas. A versão robô de Maria, expressionista, é portadora de um discurso revolucionário visando à consciência de classe dos trabalhadores e à identificação de sua opressão e más condições de trabalho; uma ruptura entre trabalhadores e patrão. Discurso com forte orientação marxista que inflama os operários à revolução: parar as máquinas, subverter o eixo do poder rumo à libertação. Mas a sutileza da ideologia fascista inserida por Thea von Harbou opera justamente para subjugar o sentimento revolucionário do operariado: as máquinas destruídas estavam ligadas ao controle do sistema hidráulico, fazendo inundar a cidade dos operários, ameaçando de morte suas próprias famílias. O recado é claro: a revolta entre classes é prejudicial a todos, sobretudo aos trabalhadores, podendo culminar na morte de seus filhos.
Desmascarado o robô, na fogueira armada pelos populares, e morto Rotwang – a morte é o único destino possível para comunistas, agitadores, intelectuais ou aos que de alguma forma destoam – a paz social faz-se novamente possível. Braços e cérebro, enfim, se unem. Sem a ameaça dos intelectuais com interesses ocultos, há a reconciliação entre trabalho e capital visando harmonia e paz social – contanto que dentro dos padrões estabelecidos. A ideologia que norteará as bases do fascismo alemão estão postas; o sentimento nacional-socialista, que condena tanto o capitalismo quanto o comunismo, já encontra terreno preparado para consolidar-se.
Reforçando a tônica ideológica do filme, as representações da massa popular são sugestivas. Nos momentos de normalidade, os operários marcham como militares, sempre em grandes e coesos blocos. Não há individualidade expressada nos planos abertos que vemos: os blocos formam o corpo que sustenta o Estado concebido pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. No momento da revolta, entretanto, os mesmos corredores passam a abrigar não mais a massa homogênea, mas a multidão, heterogênea e caótica. O ritmo de aço dá lugar ao caos revolucionário, resultado da agitação das partículas, agora em ebulição. Mas a sutil sugestão ideológica do filme demonstra que a harmonia deve se impor ao ímpeto da turba.
Noção similar de ordem e coesão é vista no congresso do partido nazista em Nuremberg, em O triunfo da vontade (1935), de Leni Riefenstahl, no qual trabalhadores e camponeses de toda a Alemanha, com enxadas na mão, organizam-se como militares enquanto ouvem o discurso do Führer. O contrário do que se vê em O encouraçado Potemkin (1925), filme também trabalhado em seu sentido de propaganda, mas que sobrevive ao crivo do tempo pela genialidade das formas e dos ritmos criados por Sergei Eisenstein. Uma massa coesa só é vista, no filme, quando relacionada aos mecanismos de opressão: seja na violenta ordem imposta no convés do navio visto de cima na primeira parte do filme – também num belíssimo trabalho de composição utilizando linhas e massas –, ou na ritmada e assustadora descida de rígidas botas negras dos soldados do Czar na escadaria de Odessa. Já nos momentos de agitação revolucionária, como na tomada do navio pelos marinheiros de baixa patente, é a desordem dos capacetes brancos que é vista no plano geral do convés, que antes exibia uma uniformidade na disposição daqueles mesmos pontos brancos. O próprio Eisenstein referia-se a suas obras como “filmes de massa”, que incorporavam a ideologia do proletariado vitorioso mediado por uma forte noção da coletividade. Obras que teriam pecado, segundo o próprio diretor, por uma “compreensão da massa como herói” produtora de uma “representação unilateral da massa e do coletivo; unilateral porque coletivismo significa o desenvolvimento máximo do indivíduo dentro do coletivo” (EISENSTEIN, 2002, p. 24).
Walter Benjamin, sempre vinculado a uma reflexão sobre as relações entre estética e política, sugere que
o proletariado consciente de sua classe forma uma massa compacta somente a partir de fora, na mente de seu repressor. No instante em que o proletariado assume a luta de libertação, a sua massa aparentemente compacta, na verdade, já se dispersou. Ela cessa de estar sob o domínio de meras reações; ela passa à ação. A dispersão das massas proletárias é produto da solidariedade (…) a oposição morta e não-dialética entre indivíduo e massa é abolida (BENJAMIN, 2012, p. 301-302).
Para Benjamin, quanto mais compactas são as massas, mais determináveis são suas reações, e por isso, o fascismo, que convergiu para a estetização da vida política, construiu uma “constituição corrupta da massa” no lugar da consciência de classe do proletariado. Em Metrópolis, a massa amorfa de operários incomoda, pois remete a um regime autoritário de trabalho. Mas o seu contraponto, a multidão caótica, elogiada em Eisenstein, é associada sem pudores ao crime e à morte, e por isso indesejada. O discurso nacional-socialista subverte a consciência de classe.
O que as breves análises acima buscam demonstrar é que a imagem forjada por Lang na América contrasta-se com a fatura de suas obras alemãs, engajadas na ideologia nazista. Seja por alienação ou convicção, seu cinema, em parceria com Harbou, teve parte na preparação dos horrores que viriam pela frente. A imagem de um Lang resistente defensor da liberdade, reproduzida por Godard como a justa corporificação da ética na relação cinema e política, não passa um mito construído pelo diretor alemão, encampado sem maiores ressalvas pelas gerações que se seguiram. Apesar das contestáveis inclinações ideológicas de Lang, contudo, suas formas sobreviveram ao tempo como traços de genialidade e invenção, contribuindo para a consolidação da grande arte do século XX.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: DUARTE, R. (org.). O Belo autônomo: textos clássicos de estética. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica; Crisálida, 2012, pp. 277-314.
EISENSTEIN, Sergei. A Forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.