Eu não sou seu negro: o racismo daqui e o racismo de lá

Por Pablo Moreno Fernandes Viana. O Oscar 2017 foi marcado por um momento de transição na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. Desde as críticas por conta da ausência de representatividade negra nos filmes indicados à premiação em 2016, muito se discutiu a respeito da temática. Isso refletiu nos indicados de 2017: pela primeira vez na história, vários atores e atrizes negros concorreram em diversas categorias. Filmes com temáticas direcionadas aos negros disputaram estatuetas, diretores negros foram indicados, além de haver representantes também em diversas categorias técnicas. Um grande passo rumo a uma maior inclusão e representatividade na principal premiação do cinema comercial no mundo.

Dentre os indicados, cabe destacar a categoria de Melhor Documentário de Longa Metragem: três filmes que abordavam questões raciais foram indicados. Dentre eles, o filme “Eu não sou seu negro”, de Raoul Peck. A obra aborda tensionamentos raciais nos Estados Unidos, desde a luta por direitos civis até questões relativas à cidadania e consumo no final do governo do presidente Barack Obama. Realizado a partir do manuscrito não-finalizado Remember this House, do escritor norte-americano James Baldwin, o documentário apresenta também a luta e a morte de três ativistas dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. A morte dos três ativistas é abordada por Raoul Peck, sob a perspectiva de James Baldwin, com narração de Samuel L. Jackson.

Medgar Evers, Malcom X e Martin Luther King foram importantes nomes na luta dos negros norte-americanos e, ainda que tivessem formas específicas de se posicionar em suas militâncias, têm em comum o fato de terem sido assassinados. Além da trajetória de Baldwin com os três ativistas, o documentário aborda também como os meios de comunicação estadunidenses, mais particularmente a televisão e o cinema, representam o negro em suas narrativas. A partir da perspectiva de Baldwin, o documentário convoca o espectador à reflexão sobre a consciência acerca da negritude, em função da subrepresentatividade do povo negro nos filmes. Abrange os estereótipos de comportamento associados a negros em função de como estes são apresentados na televisão (seja em conteúdos ficcionais ou em programas de auditório).

A obra dá luz, ainda, à inserção dos negros na política, colocando em debate discussões de Baldwin sobre um eventual presidente negro nos Estados Unidos. Falecido em 1987, o escritor não pode viver esse momento na história norte-americana, mas isso é apresentado no filme a partir de imagens da posse do presidente Obama, em 2009.

Outros tópicos abordados dizem respeito às iniciativas de integração entre negros e brancos, demonstrando as reações violentas geradas a esses esforços. Os responsáveis pela reação às iniciativas de integração foram instituições religiosas, elites e até mesmo políticos. Passados esses tensionamentos, o filme discute aspectos relativos à inclusão dos negros no universo do consumo, importante instrumento de construção de cidadania nas sociedades capitalistas. Quando essas questões são abordadas, começam a ficar mais explícitas diferenças entre o racismo da sociedade norte-americana o racismo brasileiro.

O Brasil viveu durante muitos anos o mito do “homem cordial”, conceito fundamentado por Sérgio Buarque de Holanda. Este mito fez com que houvesse o senso comum de que o brasileiro é cordial, inclusivo, tolerante e integrado. No entanto, tais características desaparecem quando observamos os desequilíbrios e desigualdades que constituem nossa sociedade.

Atualmente, já se discute a ideia de um genocídio do povo negro no Brasil. Os dados do mapa da violência comprovam que entre 2002 e 2012, o número de homicídios de jovens brancos apresentou queda significativa: um decréscimo de 32%. Ao mesmo tempo, por outro lado, os homicídios de jovens negros, que já eram maioria, cresceram nos mesmos 32%. Destaca-se nesses dados que o número de homicídios de negros cresceu mais de 10% somente no último ano do levantamento. A partir daí têm surgido debates sobre a adoção do termo genocídio para essas mortes, uma vez que o crescimento em níveis tão assustadores de assassinatos de jovens negros sinaliza para a ideia de aniquilação ou destruição de um povo. A discussão, no entanto, ainda fica relegada a meios de comunicação voltados para temáticas negras, como o Instituto Geledés, por exemplo (GELEDÉS, 2015). A morte, em números superiores, do povo negro em comparação aos brancos sinaliza para uma das faces do racismo brasileiro: abordagens policiais mais recorrentes e violentas, conforme a vivência do povo negro pode relatar. Cabe também concluir que a concentração dos negros em periferias aumenta o risco de exposição a crimes violentos, que resultam em morte.

Em complemento à violência,  acrescenta-se o encarceramento do povo negro. O Brasil é o país com a segunda maior população carcerária do mundo, dado que por si só já é alarmante. No entanto, cabe destacar que do total dos presos do país, 61,67% é de pele negra ou parda, como colocado pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Esse número é bastante superior ao correspondente da população negra no país, que totaliza 53,63% (POLITIZE-SE, 2017). Observar esses dados permite inferir que, além de estar submetido a um maior risco de situações de violência, o negro é enquadrado com mais recorrência no estereótipo de criminoso. Pergunte a um negro quantas vezes alguém atravessou a rua ao passar por ele. Pergunte a um negro se já foi orientado a se “vestir melhor” para não ser confundido com um bandido. Pergunte a um negro se já foi orientado a agir de forma mais discreta para não chamar atenção. Destaca-se aí um atributo cruel do racismo brasileiro: Aos negros, cabe o rigor da lei e a negligência da justiça.

Ilustra a diferença de tratamentos destinados a brancos e negros o caso de Rafael Braga, ex-morador de rua, preso por porte de desinfetante durante as manifestações de 2013. À época, o jovem foi preso, condenado a 4 anos e 8 meses em regime fechado, mas teve sua prisão relaxada em 2015, recebendo o benefício à prisão domiciliar. No entanto, cerca de um mês depois, foi preso novamente, dessa vez por tráfico de drogas e associação ao tráfico por portar 0,6g de maconha e um morteiro (CARTA CAPITAL, 2017).

Há que se dizer que se Rafael Braga foi preso cometendo delitos, cabe a ele o rigor da lei. No entanto, um exemplo recente prova a diferença desse tratamento. Ganhou destaque nos veículos de comunicação a notícia de que o filho de uma desembargadora do Mato Grosso do Sul (Breno Fernando Solon Borges) foi preso em posse de 130kg de maconha, munições de fuzil e uma pistola 9mm. Enquanto Rafael foi preso, recebeu o benefício à prisão domiciliar e foi preso novamente – sendo desta vez condenado por tráfico – Breno ficou apenas três meses preso. Por determinação da Justiça, foi transferido para uma clínica psiquiátrica (CARTA CAPITAL, 2017).

Dois pesos, duas medidas. A quantidade de drogas apreendida com o filho da desembargadora é 216,67 vezes superior ao que portava Rafael. Isso sem falar na diferença dos artefatos bélicos presos com os dois. No entanto, para Rafael, coube o rigor da lei. Para Breno, a condescendência de quem precisa de amparo e proteção. A diferença entre eles? A origem familiar e a cor da pele. Mais recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de liberdade para Rafael Braga.

Apesar de uma série de políticas afirmativas implementadas no Brasil durante os anos 2000, o abismo social entre negros e brancos é escandaloso. Nas Universidades, os negros são minoria: seja entre alunos, mais ainda entre professores. Sobre isso cabe destacar a campanha feita Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, que perguntava: “Quantos professores negros você tem?”. O convite à reflexão promovido pela campanha vinha acompanhado da hashtag #nãoécoincidência.

Não é coincidência. Nas universidades: Quantos professores negros? Quantos alunos negros? Na política: Quantos deputados negros? Quantos prefeitos negros? Quantos presidentes negros? Quantos senadores negros? Nos negócios: Quantos empresários negros? Quantos milionários negros nas listas dos mais ricos? Nos meios de comunicação: Quantos protagonistas negros em telenovelas? Quantos protagonistas no cinema nacional contemporâneo? Quantos seriados abordando temáticas negras? Quantos galãs negros em capas de revista? Em outra direção, perguntamos também: Quantos presidiários? Quantas abordagens policiais violentas? Quantos homicídios? Quantas perseguições por seguranças de estabelecimentos? Quantos ‘mal-entendidos’?

Em debate realizado pelo grupo de pesquisa Mídia e Narrativa, em parceria com o Centro de Crítica da Mídia da PUC Minas, no dia 4 de agosto de 2017, algumas dessas discussões foram colocadas em pauta. A exibição do documentário de Raoul Peck, acompanhada de debate com professores, pesquisadores e discentes suscitou algumas questões, chamando a atenção dos alunos brancos presentes para o chamado “teste do pescoço”: Ao adentrar em algum ambiente, vire o pescoço para um lado, depois vire para outro. Quantos negros estão ali? A representatividade condiz com a realidade da população brasileira? A partir dessa consciência é possível dar início a uma reflexão sobre a institucionalização do racismo brasileiro, que ocorre disfarçado de “mal entendido”, “meritocracia” ou da acusação de “falta de interesse dos negros em ocupar os espaços”.

Reconhecer a existência do racismo é o primeiro passo em busca de um debate mais qualificado sobre ele. A partir daí, abre-se espaço para um amadurecimento e a busca por políticas que promovam a igualdade e que corrijam dívidas históricas de um dos países que aboliu de forma mais tardia a escravidão. Enquanto houver a hipocrisia nesse debate, o racismo velado e institucionalizado continuará persistindo.

Para finalizar, retornando à ideia inicial desse texto, abordamos o filme Estrelas além do tempo, que concorreu a três prêmios no Oscar de 2017. A obra debate as contribuições de três mulheres negras para o programa espacial norte-americano na década de 1960. Apesar de todas as dificuldades provocadas pela segregação racial e de gênero, as mulheres tiveram importância histórica fundamental para o programa, apesar do silenciamento histórico sobre sua participação. A fala de uma das personagens ilustra um sentimento bastante comum para os negros no Brasil de 2017. O país adota práticas de racismo velado e institucionalizado e cabe aos negros concluir: “Sempre que temos uma chance de avançar, eles mudam a linha de chegada”.

Kam-pix-February-9-2017

Pablo Moreno Fernandes Viana é Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC Minas e membro dos grupos de pesquisa Mídia e Narrativa (PUC Minas) e GESC3 (Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação Cultura e Consumo) da USP.

Referências:

https://www.geledes.org.br/o-genocidio-da-juventude-negra-no-brasil/

http://www.politize.com.br/populacao-carceraria-brasileira-perfil/

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/caso-rafael-braga-justica-reforca-a-segregacao-racial-no-brasil

https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/documentario-eu-nao-sou-seu-negro-brasil.html

http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-face-e-os-numeros-do-novo-congresso/

https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/racismo-na-midia-entre-a-negacao-e-o-reconhecimento-4304.html