Por Marcelle Primo.
Quem nunca baixou o Tinder que atire a primeira pedra. Desde 2013, temos em nossos bolsos esse modo digital de conhecer pessoas mundo afora. E desde que somos humanos tentamos seduzir e conquistar nossos pares. Que os usuários do aplicativo editam o que os outros devem saber sobre eles, isso já sabemos. Faz parte dos modos de apresentação no cotidiano, como nos disse Goffman no século passado. O que continua um mistério é por que as pessoas são levadas a acreditar que o que está escrito no espaço de descrição é um fato ou uma verdade. Quando eu me descrevo, qual é a mágica para ter likes?
O enunciado do perfil é parte do processo de se lançar virtualmente no espaço digital, como fazemos em uma carta, diria Landowski. O usuário que descreve a si mesmo com a intenção de chamar a atenção de alguém também almeja ser encontrado por um outro. O jogo é duplo. Isto posto, a convocação de um outro sujeito pelo texto não garante que haverá́ correspondência e muito menos a correspondência desejada. É um processo tentativo e não um resultado previamente vitorioso. É um ato de presença por meio da ausência. É assim que a persuasão dos textos do perfil se direciona para o percurso da manipulação de um tu ausente de um eu. Por conseguinte, o sujeito enunciatário é implicado no texto, mas de uma maneira não dialógica: são as debreagens, os agentes textuais, e não a pessoa de carne e osso, que fixam o enunciatário como uma presença no discurso.
É a partir desse sujeito, o sujeito do texto, que temos uma receita na qual os ingredientes são desejos, afetos, interações, encontros, muitas respostas negativas, algumas fantásticas, desencontros e uma tonelada de frustração em finas camadas. A cereja fica ao gosto do usuário e não é sempre que o resultado da mistura termina em casamento. Tivemos que sacudir os neurônios até chegar ao problema de “Qual é o éthos do perfil do aplicativo Tinder?”. Retire o éthos, a palavra exótica da questão, e podemos fazer a seguinte tradução: e aí, como alguém diz de si para um outro em uma apresentação, padronizada, como a do perfil do Tinder? Diante dessa questão, procuramos por um método razoável que nos possibilitasse extrair o comunicacional da mídia Tinder. A priori, a vereda que pisamos foi a do tecido social, suas idiossincrasias e seus modos de interagir. Não ficamos satisfeitos. Faltava algo. Mudamos a perspectiva e fomos em busca do texto, o quê o texto diz, sem nos preocuparmos com os aspectos sociológicos em torno do que foi dito. A aproximação mais afiada nos deu mais ânimo e tivemos a coragem de destrinchar como o texto diz o que está escrito por meio do estudo, com o método da semiótica francesa, dos artifícios de engendramento de sentido.
O método que utilizamos para investigar os perfis foi mezzo quantitativo e mezzo qualitativo. Para selecionar o corpus fizemos uma coleta de dez perfis por dia, durante dez dias, no mesmo local e horário entre 21h30 e 22h em um raio de 15Km na cidade de Belo Horizonte. Registramos o perfil pesquisador, um participante apagado, com as seguintes características: um nome feminino, um perfil de gênero feminino, 30 anos, sem fotos e sem texto verbal disponível para a procura de pares de gênero masculino e feminino de 20 a 59 anos. Coletados os perfis foram separados em 23 categorias encontradas na filtragem. Depois fizemos as somatórias máximas e mínimas de categorias preenchidas até encontrarmos os nove perfis mais significativos do corpus.
O lado qualitativo da investigação ficou para a análise das qualidades de expressão e do conteúdo dos perfis selecionados: as cores usadas, quais são os objetos e seu enquadramento nas imagens, as características psicológicas, os modos de vestir, as cores, os acessórios, as descrições verbais e o modo de se descrever. Tudo isso agrupa-se para o todo da linguagem sincrética verbovisual que o possível par entra em contato pela plataforma da rede social.
Percebemos durante o recolhimento das amostras que os textos exibiam características em comum: a formatação, visto que todos possuem recursos iguais para serem produzidos, e o conteúdo. Os conteúdos das apresentações confluem, de diferentes maneiras, para um tipo de texto no qual um sujeito faz uma boa impressão de si mesmo para manipular um outro sujeito do qual se espera uma reação que corresponda às expectativas de ser atraente para alguém. Diante dessas convergências, o perfil é um tipo de texto que atribui ações de transformação dos sujeitos e dos estados dos seus sujeitos pelo percurso narrativo do destinador-manipulador, também conhecido como percurso da manipulação, e seus quatro tipos: tentação, sedução, provocação e intimidação.
Por esse motivo, notamos que a figurativização da linguagem visual é a via da credibilidade do perfil, tanto pelo efeito estético de realidade quanto pelo poder simbólico que oferece ao texto. É a imagem que dá a chance de fazer o actante narrativo ser tangível: é a confirmação do enunciado, seja sincrético ou visual. A linguagem visual é o termo de prova para que o discurso seja verdadeiro aos olhos do outro. Só uma descrição verbal pode não ser suficiente para o convencimento. Falta algo. Falta ver para crer porque a palavra, o discurso, pode ser instrumento de falseamento.
Por fim, com as recorrências dos perfis analisados percebemos que o éthos do Tinder é a imagem dada pelo papel temático do conquistador. Essa imagem imutável de conquistador/conquistadora é a imagem, o éthos, das interações de todos os perfis para aqueles que se cadastram na plataforma. O que é variante dentro desse éthos do conquistador são as figurativizações dadas aos atores dos discursos e os tipos de manipulação usados para persuadir o enunciatário.
Eu sei, os termos são muito técnicos, mas eu posso explicar isso para que todos compreendam: se o Coelho da Páscoa tivesse um perfil no Tinder, como seria? Creio que na descrição estaria escrito o seguinte:
“Sou felpudo, macio e gostoso de agarrar
Tão grande quanto as minhas orelhas só a minha cenoura
Tenho Fama de quem termina o serviço rápido, mas é só a entrega dos ovos de chocolate!
Quero uma parceria para ser mãe dos meus filhotes. Muitos. Muitos.
Muitos mesmo
Adoro ser pai
Insta: @felpudaorealoficial
E nas imagens disponíveis desse perfil temos um coelho, com trejeitos humanos, em locais diversos como na praia, de sunga e boné entre as orelhas; dando um pulo na piscina com o foco da câmera voltado para o rabo aparado como um pompom que está aparente por cima da bermuda; em frente a Torre Eiffel segurando uma taça e oferecendo um brinde ao seu interlocutor; deitado na cama, dando uma piscada com uma cenoura na boca e na banheira, tomando banho, com os pelos molhados, de orelhas baixas puxadas para trás e sensualizando com o rosto e corpo.
Dentro do universo que o coelho apresenta, o que está descrito é possível na linguagem do perfil de um Coelho da Páscoa. Sabemos que esse coelho é um coelho que viaja o mundo e possui modos de ser que se assemelham ao dos humanos e seus hábitos. Nessas condições, essas dadas pelo sujeito do texto, o coelho não só existe como diz sobre si com tamanha propriedade que a sua existência animada é crível. As imagens, que não foram disponibilizadas, mas foram retratadas, causam uma ruptura: o texto não possui correspondente visual. Logo, podemos duvidar da real existência desse coelho já que ele não aparece e não possui a materialidade que eu possa ver, para crer, em seu discurso.
Entenderam agora por que o sincretismo do perfil do Tinder é o que permite que você seja levado à sério? Sem o visual, o verbal é esvaziado e os likes não vem. Portanto, não se esqueça: a congruência entre palavra e imagem é o segredo do sucesso no perfil!
Referências:
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
LANDOWSKI, Eric. O semioticista e o seu duplo. In: LANDOWSKI, Eric e OLIVEIRA, Ana Cláudia. Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo: EDUC, 1995, p. 239-265.
Marcelle Primo é mestra em Comunicação Social pela PUC Minas.