Novela da Rede Globo fez críticas a perspectivas da elite no Brasil, mas acabou por reproduzir a ideia da corrupção generalizada como DNA brasileiro.
Por Ester Caroline Rodrigues Pinheiro.
A televisão constitui um âmbito decisivo do reconhecimento sociocultural do desfazer-se e do refazer-se das identidades coletivas, tanto as dos povos como as de grupos. A melhor demonstração desses cruzamentos entre memória e formato, entre lógicas da globalização e dinâmicas culturais, é constituída sem dúvida, pela telenovela.
Jesús Martín-Barbero
A telenovela “Pega Pega”, exibida pela Rede Globo entre 2017 e 2018, teve sua trama inspirada pelo momento político em que o Brasil se encontrava, em que vários casos de corrupção foram publicizados, com a prisão de políticos e empresários. O próprio título da novela remete à ideia de ‘pegar’ os que estariam fora da lei, o que é confirmado no decorrer na trama, que expõe, em sua narrativa, a corrupção de forma generalizada. “Pega Pega” também debateu a idealização do exterior e a desvalorização do Brasil, junto com o pensamento segregacionista da elite e da classe média em relação à chamada classe C. Essas características são parte do que define um “mito de brasilidade” que, para Jessé Souza (1), é uma espécie de mito moderno, um imaginário social que foi “internalizado” como algo indissociável da personalidade dos brasileiros. É uma maneira de explicar o Brasil por meio de traços como corporeidade, afetividade e confiança interpessoal, que, afirmam a ideia de insuficiência ocidental, de caráter postiço e inferior em face às nações desenvolvidas (2). O culturalismo conservador “é a forma moderna por excelência de produção de um sentimento de ‘solidariedade coletiva’. Essa idéia de cordialidade e ‘sentimento grupal’ traz uma aversão ao conflito e à crítica, gerando assim uma ‘fantasia compensatória’” (3), ou seja, apesar de nossa alegada corrupção em massa, na política e em outros âmbitos, somos mais “calorosos, humanos e sensuais.”
Logo debaixo de “cordialidade e harmonia” há a ideia patrimonialista de que o brasileiro não sabe distinguir o público do privado, e que sempre encontra um “jeitinho” para resolver e tirar proveito pessoal das coisas.
A naturalização dessas ideias hegemônicas passa pelos meios de força simbólica da sociedade, que abrangem, por exemplo, as ficções audiovisuais. Elas atuam na formação da identidade coletiva e contribuem, assim, para o modo como nos relacionamos uns com os outros no cotidiano. Para Roger Silverstone (4), essa mediação influencia as atitudes pessoais e o modo como formamos a nossa vida social e política. Por isso, a análise dessas narrativas e do modo como elas colocam em circulação representações de nossa identidade é de suma importância para compreendermos aspectos de nossa sociedade.
A telenovela “Pega Pega”, veiculada na faixa das 19 horas pela Rede Globo, foi exibida entre seis de junho de 2017 e oito de janeiro de 2018. Escrita por Claudia Souto, com colaboração de Daniel Berlinsky e outros, “Pega Pega” é de gênero híbrido, entre a comédia romântica e o policial. O título inicial dessa ficção seria “Pega Ladrão”, mas a emissora preferiu trocar para “Pega pega” para evitar referência mais direta ao cenário político brasileiro, em que a corrupção foi alçada, por meio de uma narrativa também midiática, à condição de principal mazela de nosso país, com acusação geral de políticos e empresários, envolvidos em roubos, lavagem de dinheiro e compra de silêncio (5).
Da mesma forma que “o folhetim como um arado espectral” (6) refletia consciências e níveis sociais no século XIX, a telenovela também herda sua função mais referencial, sendo considerada, no Brasil, fonte de informação. Apesar de a novela ser ficção, ela desenvolve-se estimulada pelas questões sociais mais candentes e acaba reproduzindo e confirmando na narrativa um discurso jornalístico. Talvez, como escreveu um Renato Janine Ribeiro, exista uma superioridade, na televisão, da novela sobre o noticiário. A cultura brasileira tende a se expressar melhor na dramaturgia popular do que no próprio fazer jornalístico (7). Glória Perez (8), autora de telenovelas no Brasil, comenta sobre esse discurso telenovelesco que perpassa o informativo: “Em um país como o nosso, onde as instituições são tão frágeis, costuma-se cobrar das novelas o que tem de cobrar das instituições: que elas eduquem, por exemplo […]”.
Em “Pega Pega”, a trama gira em torno de um roubo de quarenta milhões de dólares a um hotel de luxo na praia de Copacabana, o Carioca Palace Hotel. Na narrativa, os próprios funcionários, até então de confiança do dono, planejam o roubo, com envolvimento da polícia federal, e ficam com o dinheiro. Durante a noite de estréia da telenovela, que aconteceu nos Estúdios Globo, parte do elenco relacionou a trama com o atual momento do país. Claudia Souto, a autora, disse que a proposta era fazer um debate ético com bom humor, sob o ponto de vista das pessoas comuns. Embora usualmente a chamada novela “das oito” da Rede Globo seja a mais conhecida como “pedagógica”, a narrativa de “Pega Pega” também assumiu esse lugar e explorou temas que têm repercutido na sociedade brasileira, como a noção de corrupção generalizada, despotismo do patrão sobre empregados, principalmente sobre funcionários negros, e a idealização do exterior. A trama também retrata o ‘jeitinho brasileiro’, que se refere à atitude do indivíduo de sempre querer ser superior, se dar bem, tirando proveito até de situações pequenas e insignificantes, mas que infringem a lei e a moral. “Devemos pensar duas vezes antes de subornar o guarda, jogar papel no chão… são as pequenas atitudes que fazem a diferença e a novela fala sobre isso. É quase um spin-off do Jornal Nacional”, afirmou Marcelo Serrado (9) que fez o Malagueta, funcionário que arquitetou todo o plano do roubo ao hotel. O ator também interpretou o juiz Sérgio Moro, no filme “Polícia Federal: a lei é para todos”, outra obra que aborda a corrupção no Brasil sobre o caso Lava Jato, mas que se pretende mais documental.
Para alguns, contudo, a telenovela brasileira não teria a função de educar, mas de entreter, o que o ator Marcos Caruso, que interpretou Pedrinho, o dono dos milhões de dólares roubados, em “Pega Pega”, afirma. Para ele não há uma relação direta da trama com os acontecimentos políticos. “A gente não toca nas questões políticas que estão acontecendo. Falamos sobre um roubo de um hotel e nos limitamos a isso. Não acredito que exista uma metáfora que questione a vida que estamos levando. A gente não tem essa preocupação, nosso trabalho é de ficção, conclui” (10).
Entretanto, é preciso ressaltar a dualidade da telenovela como gênero cultural. Ela nasce como produto ficcional, com origem folhetinesca e melodramática, mas com vínculos com temas sociais. Logo, é ainda preciso identificar, refletir e relativizar sua possível potencialidade crítica, de cunho pedagógico, nesse processo de narrar a sociedade.
Três características do mito conservador em “Pega Pega”
A análise que fizemos da telenovela, tendo como questão a reprodução de um culturalismo conservador, foi baseada na composição dos personagens e no discurso. Houve um recorte na trama a partir da divisão entre capítulos iniciais, intermediários e finais. Logo após, os discursos que possibilitaram apreender a questão do culturalismo conservador foram transcritos.
A partir dessa transcrição, foi possível observar a reprodução de três características do culturalismo conservador: a corrupção generalizada; o pensamento segregacionista da elite através do preconceito em relação à chamada classe C; e a idealização do exterior. O que buscamos problematizar é se essas características do mito são do discurso da telenovela ou se elas estão sendo expostas na trama em tom crítico.
A personagem Sabini, interpretada por Irene Ravache, era uma das acionistas do hotel. Caracterizada como uma senhora idosa, branca, de classe média alta e suíça- brasileira, ela foi a personagem mais emblemática da novela devido a suas falas preconceituosas em relação à chamada classe C (que era composta, predominantemente, por personagens negros), e devido à idealização que ela faz do exterior. O fato de a personagem ter dupla nacionalidade é importante, posto que no decorrer da trama ela critica e compara o Brasil à Suíça. Sabini é relevante personagem para análise, considerando o seu discurso como um possível modelo crítico dessa idealização do exterior.
A corrupção generalizada é explícita por personagens que ocupam diferentes classes sociais. Júlio, por exemplo, interpretado por Thiago Martins, era um funcionário do hotel que participou do roubo de dois milhões de dólares, mas, apesar do envolvimento no crime, se arrependeu e devolveu a parte de dinheiro que havia recebido. Após responder à justiça, no decorrer da trama, ele repreendeu suas tias, Elza e Prazeres, por terem furtado vários itens do hotel, e pediu para que elas os devolvessem. Nas instituições, o “jeitinho” também foi praticado, como no caso dos policiais federais que eram corruptos ao ponto de burlar documentos para benefício próprio, além de estarem envolvidos em assassinatos.
Sabini, em um dos capítulos finais, repreendeu seu filho Dom por fazer a escolha honesta: “meu filho, você é um homem justo, ético, mas nos negócios nem sempre devemos ser 100% corretos. O mundo empresarial é rendido às regras do jogo.”
A “ralé brasileira” – classe social tida, pela elite, como sem condições sociais, morais e culturais – foi representada em “Pega Pega” como vítima de preconceito, praticado principalmente pela personagem Sabini. Em uma cena, Sabini fica presa no elevador com Tânia, empregada negra do hotel. Após a camareira ficar sem ar, Sabini diz a Tânia: “respiração boca a boca eu não faço.”
Tânia: “eu sou um ser humano também, a senhora não tem coração?”
Sabini responde: “Não, não tenho. E você não é um ser humano igual a mim, não.”
Outro momento que ilustra essa não aceitação da chamada classe C foi após a empregada negra da casa de Lígia, amiga de Sabini, apresentar seus biscoitos caseiros de forma mais pessoal. Sabini disse a Ligia: “Eu acho os empregados do Brasil tão abusados! Só porque dormem em nossas casas, eles acham que são da nossa família, isso é um absurdo! Eles são pagos para nos servirem, só isso.”
Lígia: “É claro, até porque amigos a gente contrata pessoas de um nível mais alto, personal trainers, um maquiador.”
Quando Sabini responde a Cristovão, o eletricista do hotel, o porquê de ela não querer que ele continue a sair com seu filho Dom, ela critica a classe denominada por Jessé Souza de “ralé”: “[…] eu estou tentando ser o mais gentil possível, para não ferir o Senhor, eu sei o que é melhor para o meu filho, agora saia […] Por favor, olhe para você, olhe só para você! Não é uma companhia aceitável para pessoas da nossa classe. E eu não criei meu filho na Suíça para ficar bebendo cerveja, fritando sardinha com a classe C desse país.”
Novamente a personagem Sabini, a que mais representou o preconceito na trama, fala com Tânia, sobre o possível relacionamento dela com seu filho Dom: “ […]eu não quero meu filho namorando uma moça pobre como você, não quero! Não tem cabimento,você não tem nível para ser vista ao lado dele, não tem!”
Sabini, em outra cena, fala com Pedrinho, o dono dos milhões de dólares roubados, sobre o relacionamento dele com uma motorista de taxi, Arlete: “Eu não acredito que você esteja apaixonado com alguém que não tem nada a ver com o nosso nível social.”
Arlete interrompe: “Ele é meu namorado”.
Sabini comenta: “Isto que ele tem com você chama-se curiosidade, pesquisando, por lógica, tipo: como são e como vivem as mulheres de baixa renda desse país?”
A telenovela “Pega Pega”, ao exibir o culturalismo conservador, pode ter potencialidade crítica, na medida em que encena características que têm sido naturalizadas e veladas da sociedade. Ela reflete a complexa estrutura social brasileira, de um país hierárquico e patrimonialista, características que fortalecem a idéia de que o “jeitinho brasileiro” é traço da identidade e da cultura nacional. Logo, o conteúdo da telenovela perante a questão do culturalismo conservador é ambíguo. A ideia da corrupção generalizada, do “jeitinho” como chave comportamental brasileira, é assumida pela telenovela. Nesse ponto, ela internaliza o discurso do culturalismo. Mas, ao representar o preconceito de classe e a idealização do exterior pelas falas e atitudes principalmente de Sabini, a telenovela o externaliza de forma crítica. Isso porque a personagem foi construída na negatividade, como vilã, logo o seu discurso na estrutura melodramática deve ser recebido criticamente pelo espectador.
É preciso separar o discurso da personagem Sabini do discurso mais amplo da telenovela, entendendo a complexidade da narrativa, em uma dimensão não só da fábula (a história contada), mas dos próprios mecanismos do meio do qual se fala. O pensamento segregacionista da elite e da classe média e a questão da idealização do exterior foram na verdade criticados por terem sido representados, sobretudo, pela vilã Sabini. Essa forma de enunciação traz a possibilidade de reflexão sobre o discurso.
Logo, é preciso considerar a dualidade da telenovela brasileira que, apesar de sua matriz genérica melodramática, traz temas importantes na sociedade para debate. “Pega Pega”, especificamente, expõe de forma crítica características que o “mito brasilidade” busca encobrir, como o segregacionismo por parte da elite à “ralé” brasileira e a idealização do exterior, mas acaba por reproduzir a ideia da corrupção generalizada como DNA do brasileiro, no que a telenovela reproduz o culturalismo conservador.
Referências
1 SOUZA, J. A tolice da inteligência brasileira – ou como o País se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015.p.59.
2 SERELLE, M. Crítica do culturalismo conservador: mídia, narrativa e mediação no Brasil. Projeto de Pesquisa Chamada MCTI/CNPQ Nº 01/2016 – Universal.
3 SOUZA, J. A ralé brasileira – quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.p.32.
4 SILVERSTONE, R. Complicity and collusion in the mediation of everyday life. New Literary History. Vol. 33, No. 4, 2002.
5 MEDEIROS, L. em Foco, portal IG Globo, 2017. Disponível em https://www.otvfoco.com.br/globo-bate-o-martelo-e-registra-nome-de-sua-proxima-novela-das-7/. Acesso em: 10 de out. 2017.
6 MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
7 RENATO, R. A política dos bons costumes. In: NOVAES,A. Muito além do espetáculo,São Paulo: editora Senac, 2015. p.140.
8 PEREZ, G. Em entrevista a BERNARDO, A; LOPES, C. A seguir, cenas do próximo capítulo – As histórias que ninguém contou dos 10 maiores autores de telenovela do Brasil. São Paulo, 2009. p.129.
9 SERRADO,M. Em entrevista a TOLIPAN, H. Jornal do Brasil, 2017. Disponível em: < http://www.jb.com.br/heloisa-tolipan/noticias/2017/05/24/atores-de-pega-pega-soltam-o-verbo-sobre-politica-etica-e-roubo/>.Acesso em : 3 de nov.2017.
10 CARUSO, M. Em entrevista a TOLIPAN, H. Jornal do Brasil, 2017. Disponível em:<http://www.jb.com.br/heloisa-tolipan/noticias/2017/05/24/atores-de-pega-pega-soltam-o-verbo-sobre-politica-etica-e-roubo/>>. Acesso em: 3 de Nov.2017.
Ester Caroline Rodrigues Pinheiro é aluna do 4º. período de jornalismo e bolsista CNPq de iniciação científica.