Por Fábio de Carvalho. Se os últimos filmes de Kleber Mendonça Filho, Aquarius e O Som ao Redor, eram construídos sob a égide de tensões que dificilmente escapavam do campo virtual de ação dos personagens, Bacurau pode ser lido como a radicalização de algo que ruminava nas pulsões subterrâneas dos filmes do diretor: uma tomada de ação frente a opressões sociais. O filme é robusto na representação de uma violência gráfica e explícita que não haviam atravessado os planos do diretor recifense até então.
Diferenças consideradas, Bacurau é também o único desses filmes que tem como enfoque uma comunidade marginalizada. Em Aquarius a personagem de Sônia Braga ocupa uma posição insólita de não negociação com empreiteiras. Os representantes da empresa se insinuam sobre o edifício da protagonista de maneiras gradativamente mais agressivas, promovendo uma invasão a um espaço de memórias afetivas.
O recorte de classe de o Som ao Redor também se interessa pela interioridade dos apartamentos fortificados da classe média recifense. Há um enclausuramento dos personagens em ambientes fechados que é contraposto com a invasão dos sons que se insinuam sobre o quadro e o contaminam ao redor. A dimensão de uma ameaça eminente se apresenta diferentemente nos dois filmes.
Já em Bacurau, uma pequena comunidade do interior de Pernambuco, há uma constante tensão entre a vida organizada que os moradores do povoado cultivam e forças externas que buscam se apropriar e explorar aquele espaço de resistência. Através de uma multiplicidade de personagens somos apresentados à cidade, seus moradores e suas práticas comuns. A construção da tensão no filme se dá já dentro da expectativa da comunidade que há muito se preparava para lutar pelo seu direito de vida.
Dentro da lógica dos filmes de Kleber Mendonça Filho, fica claro que existirão ameaças externas que procuram se infiltrar nos planos, nos espaços e nos sons. Mas é só quando essas eminências se dirigem a uma comunidade desprovida de visibilidade e “civilidade” que as forças da violência se manifestam com toda a potência gore (explicita) que lhes é possível
A construção do cerco em KMF, ferramenta recorrente de modulação de tensões entre os espaços externo-internos do seu cinema, se constrói em Bacurau na geografia mais árida de sua filmografia, tão comumente voltada para as arquiteturas urbanas. O sertão pernambucano é de veredas e meandros que o espectador não desvela senão pelo conhecimento dos habitantes locais, por seus saberes e práticas tradicionais, ou, pela visualização topográfica dos drones da corporação militarizada que invadirá o povoado. O embate, portanto, é entre duas cosmovisões: uma de interação e convivência harmônica entre natureza e sociedade, a outra de gozo luxurioso pela aniquilação da diferença, do Outro. A problemática existe porque a existência de uma delas requer o extermínio da outra.
O sertão é por excelência o espaço da invenção no cinema brasileiro. Vincular o filme a esse espaço o instaura em diálogo com o imaginário brasileiro de resistência dos modos quilombolas. Canudos, pelos olhos militares de Euclides da Cunha, assombra a ordem e progresso brasileira pela suposta qualidade messiânica de seu líder. Mas, o que o autor de fato encontra é um povo de cosmovisão dissidente.
Um povo que se ergue para a construção de uma experiência coletiva de liberdade da hegemonia coronelista, Canudos – e isso é pouco refletido – é, além de uma rejeição da República e sua política violenta e excludente, uma diferente experiência de consciência. A escrita euclidiana é polifônica, barroca; são os recursos de linguagem encontrados para expressar a crise da experiência sensível que emerge conflituosa entre um desejo positivista republicano e o tremor do delírio de um povo resistente. Delirar, em Canudos, e também em Bacurau, é inventar expressões de resistência.
O filme, que começa com a trajetória de um caminhão pipa, introduz o espectador à comunidade pelos olhos de Teresa. Durante a procissão que vela o corpo de uma anciã, testemunhamos os tremores de seu caixão convulsionando e transbordando água. Os delírios, em seus planos flashes, são interferências em imagens outrora comuns. No seio da representação da experiência comum à Bacurau se apresenta o conflito nos planos entre duração e legibilidade, ou seja, a quantidade de tempo necessária para que o espectador faça a leitura clara dos elementos presentes nos planos. Se, como assim nos parece, os moradores da comunidade estão recorrentemente sobre os efeitos de alucinógenos, o filme nos mostra isso com essas rápidas imagens que furam a coerência de leitura de uma sequência em andamento. O filme dá forma a uma experiência sensível dos personagens: um conflito de estados de consciência.
Quando o filme termina sua introdução à paisagem e personagens de Bacurau, os indícios do cerco – conflito principal da trama – se amplificam na chegada dos motoqueiros mascarados. A montagem opera alternada entre as interações na cidade, e os dois moradores da comunidade que encontram corpos baleados em um sítio próximo. Os forasteiros, um casal branco e sudestino, entram num estabelecimento de onde pendem grandes pedaços de carne do teto. As interações são contaminadas por uma artificialidade no rosto de Pacote, um verdadeiro cangaceiro da era digital, que intui a podridão do que está por vir.
Até esse ponto, as convergências de encenação entre Bacurau e as outras obras de KMF eram muitas. Mas é justamente no momento em que KMF finalmente flagra a violência que urgia no subtexto que o filme contribui com seu gesto mais inventivo. Quando os forasteiros executam a sangue frio os moradores de Bacurau, a imagem corta para uma perspectiva topográfica. Vozes distorcidas pairam sobre o acontecimento num tom de gameficação fazendo piadas sádicas: a imagem do inimigo.
O gesto de distanciamento dos diretores ao incorporarem um mecanismo visual militar no momento em que a violência irrompe na tela nos parece ser também a maneira mais nítida de localizar o papel do oprimido e do opressor em Bacurau. A verticalização dominadora do ângulo de visão torna insignificantes os corpos no chão. Pequenos pontos numa imagem digitalmente programada e operacional. A execução, mesmo se inesperada ou voltada ao corpo de uma criança, não traumatiza a consciência daqueles que desumanizam para neutralizar: condição do funcionamento da máquina de aniquilamento corporativo da milícia estrangeira.
O corte entre o regime de imagens convencional do filme e essas imagens inimigas informa que pelos planos de sua composição, e não pela continuidade de um mesmo registro tradicional, Bacurau opera conflitos dentro de si mesmo. Ora terror, ora faroeste, ora cinema novo, ora imagens militares, encontramos a preservação da diferença entre diferentes registros imagéticos que podem operar sem engolirem um ao outro. Bacurau deve muito aos filmes de gênero americanos, mas na hora de flagrar a violência dos imperialistas ele faz sua escolha. Mostrando-nos as imagens que o inimigo produz, o filme nos diz: é assim que eles nos veem. Para eles, não somos nada além de sinais digitais.
O diretor, como um escolhedor, tem a capacidade de nos lembrar a todo tempo: isso é cinema, isso é cinema. Poderíamos mergulhar nas imagens perigando não construir nossas diferenças em relação a elas – passivamente consumidores – não nos perguntando a quem servem as imagens do cinema de gênero americano. Mas, a vitória de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles está na iconoclastia que vigora quando diretor-espectador fazem o contrabando referencial do próprio repertório das mídias. Bacurau é farto de momentos de apropriação de um código amplamente assimilado, mas encontra voz própria ao instituir claramente a quem serve e por quem é feita cada imagem. Os diretores, na forma do filme, não estão com os opressores. Eles flagram os opressores em todo seu sadismo.
A obra passa de personagem em personagem, construindo uma inteligência coletiva entre os moradores do sertão. Os diretores transitam entre as perspectivas preservando a confluência própria desse corpo social. Cada inserção dinamiza o sentido do filme; não há homogeneização. Cada personagem é construído em suas peculiaridades, criando multiplicidade dramática. Quando os moradores testemunham as imagens do crime de Pacote, flagrado por câmeras de segurança, o filme, de novo, nos apresenta o senso de diferença muito clara das imagens registradas pelas forças opressivas. São imagens digitalizadas, verticalizadas, que servem a uma descontextualização das necessidades do povo invisibilizado.
A violência da comunidade de Bacurau é necessária, da negatividade, da diferença. A violência da milícia estrangeira é da assimilação, da impossibilidade de existência do Outro. Os americanos são sádicos, as execuções são fetiches pornográficos. Os moradores de Bacurau produzem uma violência de outra ordem. Há uma qualidade ritualística nessa, na qual os estrangeiros da milícia são executados com um senso de dever. Por horas, o filme sugere uma linha tênue que separa a necessidade da violência e a fascinação dos personagens com sua potência empoderadora.
O Lunga, refugiado com seus capangas no que parece ser uma barragem desativada, é esse contraponto. Os personagens inferem que Lunga já fez muito pelo povo, mas ele está à margem da margem, vivendo escondido e criminalizado. Sua caracterização extravagante funda um híbrido entre o cangaço, o corpo queer e a hiperviolência. Ele é como uma força tremenda que precisa ser invocada de seu repouso. Seu pacto com Bacurau é de proteção, mas ele não consegue existir em harmonia com o povoado dada a sua desmedida. Um paroxismo do gesto de resistência, Lunga é a faca de dois gumes da violência.
Não parece possível a possibilidade de uma representação da vingança sem algum fascínio pela violência. Ela é o pavio curto que impreterivelmente deve explodir no cinema de gêneros como faroeste e thriller. O espectador em cinema aguarda a liberação das barragens da catarse, e é de certo alívio moral que os seus olhos estejam do lado certo – o entusiasmo na cena em que um agente americano tem seus miolos explodidos por uma espingarda. Quando Lunga é invocado de sua barragem seca, sabemos que os limites serão transgredidos não por abundância, mas por uma necessidade proveniente da escassez. A violência como ferramenta de transformação. Quando começa o filme sabemos que os moradores de Bacurau sabem disso há muito tempo. Celebramos a tomada de ação!
Os mais populares representantes das recentes aproximações do cinema brasileiro às realidades marginalizadas, segundo o crítico Victor Guimarães, visam “um apaziguamento da brutalidade do mundo num envelope atraente, que dava ensejo ora a uma barbárie glamourizada e palatável, ora a um humanismo dócil e inofensivo.”*.Esse diagnóstico, que parte do pensamento de Ivana Bentes de uma cosmética da fome, está na tessitura de filmes como Central do Brasil e Cidade de Deus..
Bacurau tem conquistado um grande público, mas, diferente do apelo comercial dos exemplos cosméticos, ele se utiliza do cinema de gênero de forma muito eficaz para uma apresentação inventiva do mundo. Ele está a serviço de uma luta de liberdade, e não a favor da apresentação de personagens oprimidos na realidade e que tem esse lugar de opressão restituído através da dramaturgia.
Nesse caso temos uma violência que liberta. Um movimento aberrante; Bacurau é um monstro delirante.
Fábio de Carvalho é monitor do Centro de Crítica da Mídia e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.