A sobrevivência do broadcast: TV aberta, democracia e cultura no Brasil

Por Felipe Muanis

A televisão aberta tem sofrido ao longo dos anos com a concorrência das mais variadas formas e mídias, que a obrigam a se reinventar e tecer estratégias de autoafirmação tanto no campo dos negócios como do imaginário, demonstrando a necessidade de validar sua importância diante do público e da crítica. O importante papel generalista do broadcast, ainda incompreendido por muitos,  faz com que o sistema goze de vitalidade, a despeito da proliferação de discursos que atestam sua decadência ou mesmo extinção. Mas seriam acertadas essas previsões sobre seu fim?

Apesar de ser difícil falar de uma televisão broadcast como algo único, já que existem inúmeras televisiografias, em lugares distintos, que atestam singularidades das emissoras, é possível esboçar aqui algumas perspectivas tanto em um sentido mais amplo como em estratégias locais, especialmente no Brasil.

O primeiro aspecto a ser considerado nessa discussão é a necessidade metodológica de sempre levar em consideração os distintos espectros da TV pública e da TV comercial, na medida em que agregam organizações, objetivos e resultados distintos. São estratégias inaugurais e opostas de broadcast, adotadas em diversos países que asseguraram, assim, distintos modelos e trajetórias televisivas. Ainda que existam países que iniciaram suas transmissões de televisão através de canais públicos – como na Europa – e que tenham paulatinamente aberto o mercado ao longo do tempo para canais privados tanto de broadcast quanto de narrowcast, a inauguração da televisão como um serviço público ou privado criou toda uma lógica de relação da televisão com seus espectadores que, a partir dessa experiência, desenvolveram percepções específicas do que é televisão. Desse modo, pode-se constatar um entendimento distinto de televisão em países europeus e em um país como Brasil, por exemplo. Enquanto na Europa há uma noção do protagonismo de uma TV pública, que vem perdendo força para uma TV privada, mas que gera uma percepção de complementaridade entre os serviços, no Brasil, a TV pública é uma experiência sempre incompleta e híbrida. Ela é entendida equivocada ou oportunamente pelos seus gestores políticos e críticos apenas como um modelo de TV estatal. O problema é a quem interessaria uma TV realmente pública e aberta no Brasil? Algo para ser aprofundado, posteriormente, em outro estudo.

Esse é um dos pontos que sugerem a grande dificuldade de uma democratização das comunicações no Brasil, visando especialmente a televisão aberta. É preciso vencer a percepção, difundida de maneira irresponsável, que uma TV pública é desnecessária e que qualquer regulamentação na TV aberta representa retrocesso e censura. A origem desse discurso está na própria percepção que o grande público tem da televisão, insuflado por noticiários um tanto criminosos e corporativistas que se apressam em atacar e desmobilizar qualquer ação que pretenda, de fato, tornar a televisão mais democrática. Mas essa percepção vem da gênese de nossa televisão. O fato de ter nascido aberta e privada no Brasil, ter alcançado sucesso e ganhado a adesão popular e relevância cultural para o país durante esse tempo, em que pese as frequentes críticas sobre ela vindas de analistas, acadêmicos, intelectuais e políticos dos mais variados espectros, fez com que a nossa televisão seja entendida essencialmente não como um modelo, mas como o modelo. Dessa maneira, a complementaridade seria desnecessária e a demanda por ela, a ser assegurada por lei (lembrando que a que vigora hoje no Brasil data de 1962, portanto antes mesmo do surgimento da TV em cores) é facilmente entendida como uma intervenção inoportuna – quando não como autoritária.

É preciso vencer a percepção, difundida de maneira irresponsável no Brasil, de que uma TV pública é desnecessária e de que qualquer regulamentação na TV aberta representa retrocesso e censura.

Assim, o primeiro passo para o fortalecimento da TV aberta é garantir essa complementaridade, democratizá-la, tornando seu espaço gratuito em uma importante arena de discursos plurais e de diversas origens, contextos, técnicas e poéticas. Se a essência do broadcast é o grande público, como observa Dominique Wolton, ainda que este público seja uma projeção, a TV aberta tem que absorver essa variedade e cumprir o seu papel com a participação da produção independente na construção e veiculação de imaginários

Se a essência do broadcast é o grande público, como observa Dominique Wolton, ainda que este público seja uma projeção, a TV aberta tem que absorver essa variedade e cumprir o seu papel com a participação da produção independente na construção e veiculação de imaginários.

Ao mesmo tempo, uma TV aberta que cumpra esse papel, seja ela pública ou privada, não pode se limitar às tradicionais assimetrias nos vetores de produção de discursos. O que se observa historicamente na televisão brasileira não é nada muito diferente do que se reclama ainda hoje em relação ao desequilíbrio que há na importação de conteúdos audiovisuais majoritariamente provenientes dos Estados Unidos, ocupando telas e programações, não apenas diminuindo o espaço da produção local, mas impedindo que programas feitos aqui ganhem o mercado externo, como já sinalizara o Relatório MacBride em 1980. Ou seja, há uma centralidade da produção na região sudeste do Brasil e na distribuição desses conteúdos para o resto do país, enquanto as outras regiões produzem pouco porque são prioritariamente afiliadas das grandes emissoras e tampouco oferecem produções locais competitivas que tenham a possibilidade de ganhar espectro nacional através das cabeças de rede das grandes emissoras nacionais. Estas poderiam transmitir nacionalmente também produções locais, pluralizando mais uma vez os discursos e desenvolvendo a indústria televisiva brasileira. Tal estratégia é danosa tanto para o público, que tem uma percepção do país muito centrada no que os autores de televisão do sudeste urbano priorizam, quanto para a atividade econômica da televisão, que se enfraquece no interior, gerando menos programas, consequentemente menos empregos. Sem demanda, pouco se oferece em formação por meio de cursos profissionalizantes para esse fim e em universidades com cursos de comunicação e pesquisa em televisão.

Existe uma centralidade na região sudeste do Brasil, que distribui seus conteúdos para o resto do país, enquanto as outras regiões produzem pouco porque são, prioritariamente, afiliadas das grandes emissoras. Tal estratégia é danosa tanto para o público, que tem uma percepção do país muito centrada no que os autores de televisão do sudeste urbano privilegiam, quanto para a atividade econômica da televisão, que se enfraquece no interior.

E tampouco a TV pública deve repetir essas estratégias assimétricas, devendo obrigatoriamente se constituir a partir de um modelo de múltiplos vetores discursivos que sejam distribuídos nacionalmente. No Brasil, essa ainda é uma experiência tímida para uma televisão que, sendo pública, deveria repensar e não simplesmente reproduzir o mesmo modelo dos canais abertos comerciais.

Deve-se lembrar, contudo, que é inegável uma particularidade muito positiva da televisão aberta brasileira. Ao contrário de muitos países em que o horário nobre é preenchido justamente por filmes dos Estados Unidos ou formatos de reality shows europeus e norte-americanos, deixando pouco espaço para a produção local, o Brasil ocupa boa parte desse tempo com produções nacionais, as telenovelas, que se asseguraram como uma forte expressão cultural brasileira e que se tornou a referência de modelo a ser seguido por emissoras que perseguem a líder no país. Ainda que haja muitas críticas sobre as telenovelas e suas formas de representação da diversidade de gênero e dos estratos sociais brasileiros, entre outras (o que poderia ser corrigido com a variedade de discursos e fortalecimento de produções locais), elas são importantes como uma bem-sucedida reserva de mercado de produto brasileiro nas telas. Mas para considerarmos que a televisão brasileira mostra o seu povo na tela, tal como afirma, ela não pode se restringir a apenas um produtor, um canal, um discurso, é necessário que se dê um passo adiante na ocupação desses espaços com produções nacionais. Se a gente se vê por aqui[1], é importante que o grande público veja mais do que apenas a própria emissora de televisão que veicula sua visão de mundo particular.

A competição e o medo de perder território junto à audiência trazem historicamente benefícios para a TV aberta brasileira. No fim da década de 1970, antes de sua crise e de entrar em decadência, a extinta Embrafilme percebeu a importância de ampliar a produção de conteúdo nacional para a esfera eletrônica e criou um programa de pilotos para séries de televisão que, de acordo com o professor Tunico Amâncio, não colheu os frutos esperados. A TV Globo respondeu, à época, com as séries brasileiras: Aplauso, Plantão de Polícia, Carga Pesada e Malu Mulher, programas de inegável qualidade e atualidade social, que ainda hoje se mantêm relevantes e se destacam na televisiografia brasileira. Mais recentemente, com a lei de obrigatoriedade de conteúdo nacional nos canais de narrowcast brasileiros, novos programas televisivos de qualidade foram produzidos por produtoras independentes e exibidos pelos canais de assinatura, dialogando com uma poética e um texto mais ágeis que o das habituais telenovelas. Feito por uma nova geração de autores televisivos, essas séries dialogam com o ritmo de séries estrangeiras e com a televisualidade tributária do cinema, resultando em produtos considerados diferenciados na televisão. Não por coincidência, a TV Globo reinaugurou, pela mesma época, a faixa de horário de minisséries às 23 horas, em que temáticas e abordagens mais sensíveis recebem tratamento cinematográfico da imagem, com bons resultados.

Ainda é pouco. Esses produtos inovadores surgem na esteira de ameaças externas que põem em risco o modelo de negócios de uma TV aberta, mas, no fundo, excludente. O mesmo acontece no telejornalismo, quando a maior interferência aos discursos nos programas de telejornais vêm, não de dentro, mas de fora, da internet. Esta se torna uma espécie de ágora virtual onde as mais distintas versões e discursos proliferam, forçando também uma resposta do telejornalismo das emissoras abertas tradicionais. Se, durante muito tempo, fechar-se em seus discursos era uma característica da TV aberta no Brasil, cada vez mais se observa a cobrança para que haja abertura de fato, por uma questão de sobrevivência, sob pena de perder a competitividade e credibilidade. Sua abertura deixa de se limitar a uma figura retórica e se confirma como uma necessidade e inevitabilidade pela cada vez maior permeabilidade de discursos e concorrência com outros meios, como a televisão stricto sensu – o cabo e o narrowcast –  e o que podemos chamar de uma televisão expandida – o VOD e mesmo algumas plataformas de vídeo e programação na internet.

A televisão no Brasil necessita de fato se abrir, principalmente por uma questão ética, mas também por sobrevivência e relevância. Sua capacidade generalista cumpre um papel ainda essencial na sociedade, pela sua capacidade de mover os discursos terciários, os comentários, as notícias, o boca a boca, conforme afirmou John Fiske, possibilitando uma esfera pública eletrônica. Esta, por assim dizer, ainda potencializada pela intensidade da internet, das redes sociais e o crescente hábito de se ver televisão sob uma nova espectatorialidade: a de uma segunda tela complementar em que o espectador comenta, com um grande número de pessoas, muitas vezes desconhecidas, o que acontece no ato da transmissão. A enorme potencialidade da TV aberta deixa claro o seu grande diferencial que garantirá a sua sobrevivência. É a partir de uma inclusão cada vez mais democrática em sua programação, de discursos, autores e regiões produtoras, que a TV aberta privada e pública, especialmente no Brasil, pode dar o seu grande passo rumo à renovação.

As discussões pautadas na série Malu Mulher sobre a condição da mulher dos anos 1980  (divorciada, que criava filhos sozinha, vítima de violência doméstica e dona do seu próprio corpo e que problematizava questões como o aborto) continuam atuais na sociedade. Infelizmente, apesar de tantos avanços dentro e fora da tela, mais de 30 anos depois, Malu Mulher continua uma série revolucionária e, talvez, impossível de ser produzida nos dias de hoje. Retrocedemos?

A televisão, em especial a aberta, precisa ser de fato livre, democrática, para que todos a produzam e se vejam representados nela. Em tempos de retorno de um conservadorismo sombrio em diversos países e inclusive no Brasil, cabe a essa televisão ser efetivamente aberta, sob pena de perder interlocução, relevância e seu potencial de refletir o grande público.

[1] Slogan de chamadas da TV Globo no ano de 2001.

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Felipe Muanis é professor visitante DAAD no Institut für Medienwissenschaft na Ruhr Universität Bochum, Alemanha, e do IMACS – International Master of Audiovisual and Cinema Studies. É professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF  e do Departamento de Cinema e Vídeo da mesma instituição. Coordena o ENTELAS, grupo de pesquisa em televisão, imagem, teoria e recepção. Jornalista, possui graduação e mestrado em Comunicação Social pela PUC Rio e doutorado pela UFMG.   É autor do livro “Audiovisual e Mundialização: televisão e cinema” (2014).