A reflexividade dos fios expostos: contra-hegemonia no documentário Laerte-se

Por Juliana Gusman.

Embora tímida, Laerte Coutinho é uma figura midiática intensamente explorada. Para além de seu prestígio profissional, sua transgeneridade lhe rendeu reportagens, capas de revistas e entrevistas em diversos programas de televisão. Em 2017, tornou-se alvo da câmera de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva, diretoras e roteiristas do documentário que transforma seu nome em verbo. “Laerte-se” retrata, ineditamente, aspectos da vida da celebrada cartunista, mulher trans que viveu 57 anos como homem. No país que mais mata transexuais, transgêneros e travestis no mundo, Laerte se coloca como notável ativista da causa e acreditamos que a maneira como sua militância artística, corporal e política é representada neste filme pode conflagrar importantes discussões sobre abjeção, humanização, diferença e, claro, gênero.

“Laerte-se”, a nosso ver, se configura como um documentário reflexivo, a partir da classificação proposta por Nichols (2010). Costura certa opacidade em sua malha narrativa, explicitando sua artefatualidade e assumindo-se como um ponto de vista sobre real. Para o autor, a reflexividade desse tipo de filme pode ser acionada a partir de uma perspectiva política – que procura contestar concepções de realidade socialmente sedimentadas – ou formal – que fomenta a problematização de “nossas suposições e expectativas sobre a própria forma do documentário” (NICHOLS, 2010, p. 205).

Politicamente, “Laerte-se” tenta alargar sentidos do corpo gendrado que enfrenta, erigindo outras possibilidades de ser mulher, usualmente ignotas. Brum e Barbosa aspiram revelar as fissuras do corpo ambíguo da cartunista através de cenas que retratam diferentes formas de construção da personagem como mulher, assim como as contradições que insurgem durante esse processo. Filmam, por exemplo, os cuidados de Laerte durante o banho, adotando um tipo de enquadramento orientado para a representação de sujeitos heteronormativamente femininos. Essa escolha, ao fazer emergir uma arquitetura corporal não normativa, potencializa suas especificidades sem colocar em xeque uma feminilidade supostamente inacabada, mas certamente existente.

A incompletude assola, também, outras esferas da vida da artista. Está presente em sua relação com a casa e o trabalho, repletos, segundo a própria personagem, de “falhas” e “fios expostos”. Percebendo a relação especular entre essas dimensões e o corpo de Laerte, Brum e Barbosa buscam apreender, também, as lacunas de seu lar e de seu ofício, assim como tentativas de superá-las, relacionado essas três instâncias imageticamente. Apesar da aparente insatisfação da cartunista, são os fios expostos de seu corpo, de seu trabalho e de sua casa que permitem que ela desestabilize aquilo que pode ser considerado normal. Assim como uma casa que sempre carece de manutenção, ou uma produção artística viva que está sempre se acaudilhando pelas mutáveis questões de seu tempo, um corpo nunca estará plenamente resolvido, seja ele heteronormativo ou não. São as brechas de um corpo que existe instavelmente como mulher que colocam em cheque a objetividade de qualquer outro. E por saber disso, a artista hesita, mas encarna o impreciso, que é, também, sua possibilidade de existência.

Em termos de formato, Brum e Barbosa avocam, também, os seus próprios fios expostos, elegendo estratégias discursivas contrárias ao modo expositivo frequentemente associado ao documentário mais tradicional, que “realça a impressão de objetividade” (NICHOLS, 2010, p. 176) e que remete à imparcialidade dos repórteres de noticiários. Preferem uma narrativa mais fragmentada, sem linearidade cronológica e até mesmo argumentativa. Excertos filmados ao longo de três anos são embaralhados em um ir e vir constante, permitindo que o documentário e as questões por ele provocadas fiquem sempre no presente e, portanto, sempre em aberto. Ao abrir mão da transparência e da objetividade total, reclamando os traços deixados pela mediação, as documentaristas parecem querer romper com perspectivas totalizantes e simplificadoras de representação, elaborando um discurso engajado com modos de transmissão de uma verdade que é sempre enigmática (PIGLIA, 2015) e, também, perspectiva. O relato reconhece sua parcialidade e, portanto, confronta discursos que pretendem mascarar posicionamentos, frequentemente alinhados a valores hegemônicos.

O filme não ambiciona a palavra final sobre a identidade mulher de Laerte, mas deixa o espectador se perder nesse interminável quebra-cabeça de peças faltantes. Por meio de uma postura reflexiva e autocrítica, o documentário desafia suas insuficiências. Confere visibilidade a um corpo, por vezes abjeto, sem tentar aprisioná-lo em rígidas categorias classificatórias. “Laerte-se” é uma obra comprometida, dessa forma, com o embate pela afirmação não predatória das diferenças.

Referências

AYER, Flávia. BOTTREL, Fred. Brasil é país que mais mata travestis e transexuais. Estado de Minas, Belo Horizonte, 9 mar, 2017. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especial-dandara,852965/brasil-e-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml>.

LAERTE-SE. Direção Lygia Barbosa da Silva e Eliane Bum. Produção: Alessandra Corte e Lygia Barbosa da Silva. Roteiro: Lygia Barbosa da Silva, Eliane Brum e Raphael Scire com a colaboração de Nani Garcia. São Paulo: TrueLab para Netflix, 2017.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2016.

PIGLIA, R. La forma inicial. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editorial, 2015.

 

Juliana Gusman é graduada no curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.

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